quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Livro "Sapiens - uma breve história da humanidade" louva imperialismo, capitalismo e prega o conformismo

 "Quando o bolo crescer, todo mundo vai ganhar uma fatia maior." É assim que Yuval Noah Harari, autor de Sapiens - uma breve história da humanidade, descreve as expectativas dos pobres, em relação ao crescimento econômico. 

Ele acrescenta:
"A divisão de espólios nunca será igual, mas haverá o suficiente para satisfazer cada homem, mulher e criança - até mesmo no Congo."

Essa história do bolo não é nova. Delfim Netto, o então poderoso superministro da Economia, durante a Ditadura Militar, já afirmava nos anos 60: "É preciso fazer o bolo crescer, para depois reparti-lo". Pois é, tem gente que até hoje está na fila, com o pratinho vazio, esperando seu pedaço.  

Harari tem 42 anos, é acadêmico, professor de história, judeu e vive em Israel, onde leciona na Universidade Hebraica de Jerusalém. A construção do livro Sapiens tem um itinerário interessante. Remonta àquela nossa avó de 1 milhão de anos atrás, que teve dois filhos: um deles era símio e outro, humano. 

A partir desse momento, os humanos passaram a se multiplicar, ocuparam toda a Terra (ilhas e continentes), provocaram colapsos ecológicos irreversíveis (ele dá como exemplo maior a Austrália) e assumiram o topo da cadeia alimentar, como espécie bem-sucedida de superpredador.

O autor tem o mérito de discutir a probabilidade de vários tipos de humanos terem coexistido simultaneamente. Ele vê um erro na análise de historiadores que demarcam fases específicas para cada tipo de humano do passado: até determinada data, havia o neandertal; depois veio o "homem da ilha das flores", depois... 

Para o autor de Sapiens, várias espécies de humanos existiram ao mesmo tempo. Ele examina o desaparecimento dos neandertais, com base em duas hipóteses: 1) foram exterminados pelos homo sapiens; 2) misturaram-se aos homo sapiens.

Análises recentes de DNA comprovam que muitos humanos da atualidade têm em seu código genético a presença de DNA neandertal. De qualquer forma, como diz o autor, o homo sapiens não é reconhecidamente tolerante, basta ter uma cor da pele diferente para provocar reações hostis, e a hipótese de os sapiens terem exterminado os neandertais não deve ser de todo desprezada.

O livro começa com informações de impacto:

"Há cerca de 13,5 bilhões de anos, a matéria, a energia, o tempo e o espaço surgiram naquilo que é conhecido como o Big Bang. A história dessas características fundamentais do nosso universo é denominada física.

"Por volta de 300 mil anos após seu surgimento, a matéria e a energia começaram a se aglutinar em estrutura complexas, chamadas átomos, que então se combinaram em moléculas. A história dos átomos, das moléculas e de suas interações é denominada química. 

"Há cerca de 3,8 bilhões de anos, em um planeta chamado Terra, certas moléculas se combinaram para formar estruturas particularmente grandes e complexas chamadas organismos. A história dos organismos é denominada biologia.

"Há cerca de 70 mil anos, os organismos pertencentes à espécie Homo sapiens começaram a formar estruturas ainda mais elaboradas chamadas culturas. O desenvolvimento subsequente dessas culturas humanas é denominado história". 

No desenvolvimento de seu livro, Harari mostra como a "revolução cognitiva" conduziu os sapiens para a dominação do planeta. Ele assinala que somos a única espécie capaz de criar algo inexistente. Inventamos seres metade animal, metade gente. Produzimos estátuas sobre essas criações fictícias. Criamos histórias sobre fadas e monstros. Supomos a existência de deuses.

A comunicação, no entanto, não é exclusiva dos humanos. Os macacos também se comunicam. Às vezes, induzindo ao erro, para se aproveitar de uma situação. O macaco grita: "Cuidado com o leão"; o outro macaco, que estava no chão e ia comer uma banana suculenta, sobe correndo na árvore, apavorado, enquanto o macaco esperto aproveita para pegar a banana abandonada pelo fujão medroso. Apesar dessa esperteza, os macacos são incapazes de criar algo inexistente. Isso, salienta o autor, é uma característica única e exclusiva dos humanos.

Graças à capacidade de se comunicar, de criar histórias e fazer com que outras pessoas acreditem e confiem nelas, a civilização teve origem. 

Harari cita a criação do dinheiro, como uma bem-sucedida obra ficcional dos humanos. O dinheiro veio resolver um problema fundamental que era a questão do escambo. Se sou fazendeiro e preciso de um sapato, quantas vacas valem um sapato novo? O sapateiro, por sua vez, não precisa de uma vaca. Ele já tem uma. Ele gostaria de ovelha, mas quantas ovelhas valeriam a troca por um sapato novo? E se o fazendeiro não tiver ovelha, apenas vacas, como ficaria o escambo?

Harari mostra como a invenção do dinheiro colocou um ponto final nesse imbróglio, chegando até a atualidade em que o dinheiro é algo intangível, quase ficcional. Se todas as pessoas que têm conta em banco, sacassem seu dinheiro ao mesmo tempo, o banco não teria moeda corrente suficiente. Ou seja, aqueles valores, aqueles números nas contas correntes, não existem de fato. São uma ficção  econômica, inventada pelos sapiens

O autor elogia os impérios, o imperialismo e o capitalismo, que, em seu entender, foram essenciais para o avanço econômico, social e político do século 20. Muita gente foi explorada, é verdade, muita gente foi triturada pelo capital, mas foram sacrifícios que valeram a pena. "Podemos não gostar do capitalismo, mas não podemos viver sem ele."

Harari afirma que "a única tentativa séria de governar o mundo de uma forma diferente - o comunismo - foi tão pior em praticamente todos os aspectos concebíveis que ninguém tem estômago para tentar de novo". Ele esquece de mencionar a China - a segunda maior economia do mundo - que é um país comunista, com bandeira vermelha, estrelas e tudo. 

Beleza. Na China, a política é comunista e a economia, capitalista. De qualquer forma, lembrar apenas da União Soviética, esquecendo a China vermelha, é um lapso imperdoável.

Sapiens - uma breve história da humanidade comete outro deslize ao defender uma postura conformista. Para Harari, o budismo tem a melhor resposta para a eterna busca humana da felicidade. Ele cita Buda que concluiu que desejar algo é eternizar o nosso martírio. Quem não deseja será feliz. Ao invés de enfrentar as ondas do mar, a melhor postura é ficar na praia e observar o movimento contínuo de ir e vir das ondas. 

Assim, se você fosse um pobre miserável, vivendo na França em 1789, ao invés de ir para a Bastilha, botar fogo na prisão e derrubar a monarquia parasitária, cortando a cabeça do rei e da rainha, o melhor caminho, talvez, naquele 14 de julho, seria continuar em casa, observando o rei Luis 16 desfilando a peruca nova e a rainha Maria Antonieta mastigando seus brioches amanteigados. Você continuaria pobre, miserável e privado do essencial, mas seria feliz, porque não desejaria nada mais, além de observar poeticamente as ondas quebrando na areia da praia. Poderia até compor uma música: "O mar, quando quebra lá na praia, é bonito, é bonito".    

  
            





quarta-feira, 21 de novembro de 2018

Waze leva a gente passear na Favela de Paraisópolis



Adoro tecnologia. Sou fã dos computadores e afins. Quando era repórter, lá no século passado, sofria escrevendo no papel. A máquina de escrever tinha fita que gastava e precisava ser trocada, justo na hora em que o relógio era nosso maior inimigo. 

Você tirava a lauda da máquina, desesperado para entregar a reportagem ao editor, e ela rasgava bem na metade. Tinha que correr para grudar com durex. Ficava um horror.  

Às vezes, você se lembrava de uma informação importante que precisava entrar no meio da lauda 5. Armado de tesoura e cola, o repórter cortava aqui, grudava ali. O editor corrigia. Anotava com a caneta por cima e o resultado era quase sempre lastimável. 

Com a chegada dos computadores, o texto pode ser alterado à vontade. Tira daqui, sobe ali, altera, volta. Errou? É só retornar ao ponto de origem. Uma maravilha!

E quando você precisava sair do ponto A, em São Paulo, para chegar ao ponto B? 

Nossa, tinha que recorrer ao Guia 135 mil Ruas da Editora Abril. Achava o lugar de destino e ia meio dirigindo, meio olhando o Guia, até bater na traseira daquele caminhão, onde se lia no para-choque: "Pobre é que nem pneu: quanto mais trabalha, mais liso fica". 

Para a nossa alegria, Uri Levine, Ehud Shabtai e Amir Shinar  - três empreendedores israelenses, auxiliados por 80 pessoas, - criaram, em 2008, o aplicativo Waze, uma corruptela em inglês, significando "ways", caminhos.

Em 2012, o Waze chegou ao Brasil e, no ano seguinte, o Google o comprava pela bagatela de 1 bilhão de dólares. 

O Waze sabe a hora que você vai chegar no seu destino. Ele sabe o caminho que você fará e vai informá-lo onde estão os radares, os policiais, os carros quebrados. O Waze é um sabe-tudo do trânsito e similares. 

Na segunda-feira, três dias depois daquela ponte ter caído na marginal Pinheiros, o Waze me levou por um longo passeio por São Paulo. Estive em bairros, que nunca havia visitado. Entrei em ruas que espero nunca mais entrar novamente. Cortei à direita, à esquerda. Subi e desci. Passei por avenidas, por ruas largas e estreitas. Tudo isso em meio a uma chuva inclemente. 

A cereja do bolo foi o Waze ter me levado dar uma volta pela favela de Paraisópolis. Aquilo foi o crème de la crème. O bairro, onde moram 100 mil pessoas, tem ruas estreitas, com carros estacionados em ambos os lados. Comerciantes colocam caixotes e peças de mobiliário para impedir o estacionamento em determinados locais. Não há sinalização, nem bom senso. Os motoristas ficam simplesmente travados, sem poder ir, nem voltar. Caminhões de médio porte não conseguem fazer conversões. Precisam exercitar uma série de manobras árduas, em espaço diminuto.

O Waze é sensacional, mas não é à prova da estupidez humana, nem da omissão das autoridades. 


A circulação é delirante. Imagine você criar o pior sistema de tráfego da história da humanidade? Pensou em algo que não dá certo, que não funciona? 


Pois é, assim é o trânsito na favela de Paraisópolis.

É interessante como o poder público, no caso o Departamento de Trânsito municipal, não faz o menor esforço para pôr ordem na bagunça. Como é um bairro de gente pobre, então, deixa os coitados se ferrarem.

Por que a Prefeitura de São Paulo não se mexe? Não amplia as ruas, não as sinaliza, não transforma aquele desastre urbano, em um lugar digno a seus moradores? 


Resumo da ópera: foram 30 minutos encapsulado na favela.

Em conversa com um prestador de serviço, ele me disse que, quando tem pancadão no bairro, os motoristas ficam presos dentro dos veículos e são obrigados a dormir ali mesmo, esperando o dia amanhecer para se locomover. 

Tecnologia é bom, o Waze é demais, mas tem hora que a gente lembra do caipira de Monteiro Lobato que dizia: "Soltar o saci de dentro da garrafa é fácil, quero ver colocar ele lá dentro de novo".

terça-feira, 20 de novembro de 2018

Tem um espírito dentro do meu celular


O meu celular tem vida própria. Ele manda mensagens. Altera nomes de grupos do WhatsApp. Liga para amigos. Comete desatinos. Faz loucuras impensáveis. Por isso, cheguei à conclusão óbvia: tem um espírito dentro do meu celular.

Um parça fotógrafo me liga e pergunta:

"Cara, que mensagem é essa que você me enviou?"

"Que mensagem?"

"Essa: rpztxxvllkeke czmidlltdnadkk"

"Não fui eu. Foi o celular."

O parça fica um minuto em silêncio e sugere:

"Você já pensou em benzer esse negócio?"

Uma amiga me liga:

"Oi, estou retornando a sua ligação."

"Não liguei para você", respondo prevendo o que tinha ocorrido.

"Ligou, sim. Eram 11h30."

"Então, só que não fui eu... Foi o celular."

"O que o celular queria falar comigo?"

"Não sei. Precisa perguntar pra ele."

Nossa empresa - Escritório de Mídia - tem um grupo no WhatApp, que se chama Escritório de Mídia, é claro. Por que cargas d´água a gente colocaria outro nome? Pois bem, o celular não gostou do nome e mudou para: Kkkdlmbvmelpdldpdkwwwxxvkk. Não contente com isso enviou uma mensagem para todos os participantes do grupo:

"Escritório de Mídia mudou seu nome para: Kkkdlmbvmelpdldpdkwwwxxvkk

Outro dia, fui entrevistar um padre no bairro da Mooca e contei para ele essa história do celular. O padre refletiu. Pôs a mão no queixo e diagnosticou: "É um espírito de um polonês. Usa muitas consoantes".

Na semana passada, o celular encaminhou para o grupo da família esta foto:


A minha filha me ligou preocupada:

"Pai, pegou fogo na casa? Está tudo queimado?"

"Não, filha. O celular estava preso no meu bolso. Provavelmente, ele se revoltou e tirou uma foto do cativeiro..."








terça-feira, 13 de novembro de 2018

Hoje, Trump proibiria Stan Lee de entrar nos EUA


Stanley Martin Lieber, mais conhecido como Stan Lee, era filho de um casal de judeus romenos que havia emigrado para os Estados Unidos e se radicado em Manhattan, Nova York. Se fosse hoje, Donald Trump deixaria Stan Lee na fronteira. Os EUA ficariam sem seu Homem Aranha e os demais personagens da franquia Marvel.

A família de Stan Lee emigrou para os EUA nos anos 1920. Naquela época, ainda fazia sentido o poema de Emma Lazarus que a gente lê no pedestal da Estátua da Liberdade: "Dai-me os seus fatigados, os seus pobres, as suas massas encurraladas ansiosas por respirar liberdade..."

Hoje, Trump envia um exército, fortemente armado, para impedir os pobres, "as massas encurraladas", que vêm de El Salvador, Honduras, Nicarágua de entrar no país. Brasileiros pobres também não são bem-vindos. Mexicanos, em igual situação social, igualmente são jogados do lado de lá da fronteira.

O próprio Trump não teria nascido nos EUA, se sua meia dúzia de parentes imigrantes tivesse sido impedida de passar pela "imigra", como os latino-americanos chamam a polícia de Imigração "border protection".

A foto que ilustra esta postagem refere-se a uma cena do filme Homem Aranha. O criador do personagem - Stan Lee - cruza acidentalmente com Peter Parker (interpretado por Tobey Maguire, de longe o melhor Homem Aranha), em uma rua de Nova York, e fala aquela frase que sintetiza a filosofia dos super-heróis: "Uma pessoa pode fazer uma grande diferença".

Fã de quadrinhos, o Homem Aranha sempre foi o meu preferido. Acredito que todo adolescente se veja representado naquele personagem problemático, mal compreendido, que quer fazer o bem, mas sente-se soterrado pelas dificuldades financeiras e amorosas. Peter Parker é pobre. É explorado no trabalho precário. Sente-se culpado pela morte do tio (culpa, aliás, é o sentimento que predomina na adolescência). E morre de paixão por uma garota, que vai se casar com outro sujeito.

Não sei se foi influência do Homem Aranha, mas participei de movimentos sociais, acreditando, fervorosamente, na mensagem de que "uma pessoa faz a diferença". Quando você consegue reunir algumas pessoas em prol de um benefício comum, em geral, é visto com desconfiança. Como o cinismo impera, é quase inacreditável que alguém possa fazer algo pelos demais sem querer nada em troca. 

A vida me provou que a fala clichê do criador do Homem Aranha pode ser verdadeira. Se você não se omitir, se for à luta, se conseguir reunir pessoas que pensem como você e querem melhorar a comunidade, é possível, sim, fazer a diferença.

O discurso do super-herói pode remeter à individualidade. É verdade. Só que a vida também nos mostra que alguém sozinho não faz coisa alguma. 

Cabe abrir um parêntese. Desde que os homo sapiens aprenderam estratégias de caça conjunta para matar mamutes gigantes e outros mamíferos peludos de grande porte, a história comprova que unidos somos mais fortes. Pesquisadores apontam a extinção dos neandertais como consequência de seu isolamento. Geralmente, o caçador-coletor neandertal andava sozinho e não era páreo para seus primos - os homo sapiens - caçando sempre em grupo e em maior vantagem estratégica e numérica.

Fechando o parêntese, voltando ao Homem Aranha e outros super-heróis, o prazer do consumo de produtos da indústria cultural é sempre vicário. Nós nos colocamos na posição do super-herói que vai realizar algo que, inconscientemente, gostaríamos também de concretizar. 

Quando o Homem Aranha consegue submeter seu adversário, depois de uma luta que parecia perdida; quando Peter Parker seduz Mary Jane, o leitor coloca-se no lugar do personagem e vive as mesmas emoções de forma vicária. Esse é o segredo das HQs, dos contos de fada, das novelas e dos bem-sucedidos filmes de Hollywood.  Mas essa é uma outra história que fica para uma outra vez.

Ademã de leve que eu vou em frente...


   


   

terça-feira, 6 de novembro de 2018

"O fim do livro físico é a vitória da tecnobarbárie"




Autor dos livros Incas venusianos (poesia), O médico das palavras (romance) e coautor de A história sob a terra (arqueologia), o jornalista e escritor Fabio Malavoglia fala nesta entrevista sobre os riscos do desaparecimento do livro físico



Fabio Malavoglia, 64 anos, paulistano, au­tor de três livros, apresentador do progra­ma Rádio Metrópolis na Rádio Cultura FM, considera o fim das livrarias e dos livros físicos “um desastre da cultura, da civiliza­ção, do espírito”.
“Estamos vivendo a época da tecnobarbá­rie. É uma terra arrasada”, ele afirma.
Com sua voz grave e profunda de radialis­ta, sob a proteção de milhares de obras, expostas nas prateleiras da acolhedora Li­vraria Nove Sete, na rua França Pinto, 97, Vila Mariana, em São Paulo, Malavoglia faz um diagnóstico desses novos tempos som­brios. Leia a entrevista, feita por mim com foto de Paula Franco, publicada pelo Infografs, jornal do Sindicato das Indústrias Gráficas do Grande ABC e Baixada Santista:


Quando teve início seu amor pelos livros?
FABIO MALAVOGLIA - Minha família é ita­liana. Fui criado entre livros. Fui e sou deve­dor dos livros. A palavra livro vem do latim liber, que é a parte mais interna da árvore. Livro é, a rigor, uma metáfora da nossa pró­pria alma, aquilo que existe internamente em nós. Se você frequentar as livrarias com devoção, elas vão mudar a sua alma.
Qual a importância do livro para a huma­nidade?
MALAVOGLIA - Há um livro na base de toda civilização. Os chineses têm o Tao Te Ching, os judeus e cristãos têm a Bíblia, os muçulmanos, o Corão. Nessa época de vir­tualização de tudo, a realidade material do livro está ameaçada. É um desastre para a cultura, para a civilização, para o espírito. Toda cultura procurou, ao longo dos sécu­los, materializar as ideias. O artista tem um sonho e corporifica em palavras, em escul­tura, em uma tela. O que a cultura digital faz é desmaterializar tudo. É um desastre que aponta para a dissolução.
Mas com a digitalização isso não aumenta­ria nossa oferta?
MALAVOGLIA - Não, porque você não tem mais escolha. A Netflix, por exemplo, que tem milhares de filmes para serem vistos... Quem determina a seleção da Netflix? São criados perfis virtuais que limitam as esco­lhas. Sem falar que a experiência do livro físico e do livro digital são completamente diversas.
Como assim?
MALAVOGLIA - O contato com o livro físico é próximo do aprofundamento, da contem­plação, da meditação, do pensamento. O livro interioriza. Já o livro digital é diluidor, é voltado para o exterior. As alegadas van­tagens da cultura digital sobre a física são ilusórias. As pessoas oscilam ao sabor dos trending topics, do twitter ou outra boba­gem semelhante.
O que vai ocorrer se o livro físico desapa­recer?
MALAVOGLIA - Essa é uma ameaça à cultura humanista, uma ameaça à nossa liberdade, à realização humana em seu sentido mais profundo. É um desastre que as livrarias estejam fechando e os livros fí­sicos, rareando. É o quadro da tecnobarbá­rie. É uma terra arrasada.
Há algum paralelo na história?
MALAVOGLIA - O Império Romano ruiu diante das invasões bárbaras. O conhecimento, no entanto, foi preservado em mosteiros, em ilhas de cultura, lugares de abrigo no qual a tradição precisou ser resguardada para atravessar um período de escuridão e, posteriormente, dar à luz a Renascença. Estamos na mesma situação.
A civilização está sendo invadida por novos bárbaros?
MALAVOGLIA - As pessoas precisam acordar para o que está acontecendo. Os novos meios de comunicação criam formas de escravidão mental. Nenhum senhor de escravos do século 19 sequer teria imaginado algo semelhante. Você está no metrô, com 100 pessoas no vagão, e todas estão naquele estado de hipnose, grudadas, olhando para uma tela. Os tecnobárbaros querem ocupar a nossa alma. Os bárbaros também eram inimigos dos livros.
A cultura digital emburrece?
MALAVOGLIA - A cultura digital faz você ficar sabendo, aos pedaços, de mil coisas diferentes, mas não se aprofunda e nem chega à raiz. A cultura digital é ignorante. Ela determina esse nosso período de trevas. Precisamos manter nossa fé, coragem e firmeza, porque tem muita tempestade pela frente.
O que pode ser feito?

MALAVOGLIA - Precisamos criar bunkers de cultura. Todos podemos fazer algo, seja pessoal ou profissionalmente. As livrarias são templos de nossa realização humanis­ta. As bibliotecas devem ser preservadas. Necessitamos ter a veemência de fazer algo e transmitir essa necessidade aos nossos filhos. 

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Uma Bienal assexuada


A 33ª Bienal de São Paulo - Afinidades afetivas deve ter sido feita para marcianos. Tem pedra, pedregulho, pedra em pé, pedra deitada, pedra pendurada, pedra que não acaba mais. Você se sente o robô Curiosity, passeando pelo solo arenoso e pelos pedregulhos de Marte.

Não tem seio, pênis, vagina, beijo, casal...Nada! Só pedra sobre pedra. 

A Bienal parece ter ficado com medo de ofender aquele pessoal que tentou proibir a exposição Queermuseu, cancelada em Porto Alegre e reaberta no Rio. "Vamos colocar um monte de pedra, assim ninguém enche o saco", devem ter pensado os organizadores. 

Você vê um quadro interessante. Vai dar uma olhada e parece que faltou inspiração para a autora, que escreveu: "Sem título", "Sem título", "Sem título", em todas as suas obras. Se ela não sabe o que está fazendo, pobres de nós que estamos ali para apreciar o trabalho dela. 

No passado, a Bienal era fonte inspiradora. Pelo menos para mim. Devo confessar que tive empregos pouco criativos na vida. Aos 15 anos, trabalhei em uma adega, carregando caixas de refrigerantes e bebidas. Entre os 16 e os 18 anos, fui pesquisador de institutos de pesquisa. Tocava a campainha na casa das pessoas e o cidadão aparecia com o humor de quem precisa pôr um supositório de purgante. As primeiras dez perguntas ele até que respondia bem. Dali em diante, o sujeito falava: "Escreve qualquer coisa aí. Põe o que você quiser. Se algum perguntar, eu confirmo. Pelamordedeus, me dá licença que preciso fechar a porta". 

Trabalhei em banco. Fui também "auxiliar de contabilidade 4" na Varig, uma empresa de aviação poderosa entre os anos 1950 e 70. Na Varig, a gente passava o dia fazendo lançamentos contábeis. Éramos uns 100 auxiliares. O trabalho era repetitivo, monótono, insuportável.

Como diz o professor de filosofia Merli, na série homônima: "Alguns, os que tiverem sorte, trabalharão em algo que os agrada. Mas a maioria apenas contará os dias que faltam para tirar férias". 

Era assim no Departamento de Contabilidade da Varig: contávamos os dias, as horas, os minutos, os segundos para a sexta-feira, para o próximo feriado. 

Saí da Varig e fui trabalhar em outra empresa de contabilidade, chamada Augustus. O espaço era menor, apertado, claustrofóbico. Sem janelas!

Então, fui visitar a Bienal. Lembro de uma instalação que mostrava um escritório coberto por teias de aranha, com muito pó, onde figuras mumificadas, imóveis, tinham sido congeladas, enquanto batiam carimbo, assinavam documentos, escreviam a máquina. O tempo tinha parado naquele escritório, que lembrava a empresa escura e sufocante de Scrooge, personagem de Dickens que inspirou Tio Patinhas. A rotina de um dia qualquer havia sido preservada para a eternidade. E era um dia sem inspiração, um dia absolutamente comum, sem qualquer importância. Era exatamente assim que eu me sentia. 

Não era mais o mesmo, quando saí da Bienal. Na segunda-feira, a primeira providência que tomei foi pedir demissão do emprego. 

Dias depois, estava trabalhando na Revista Escrita de Literatura, dirigida por Wladyr Nader. Começava aí a minha outra vida, meu renascimento. 

Em todos os anos seguintes, atuando em jornais, nunca mais "contei os dias que faltam para tirar férias". E tudo graças à Bienal.

Lembro de uma Bienal que trazia um projeto individual com cerca de 50 telas exibindo pênis. Havia naquele espaço pintos de todos os tipos, cores e formatos. Imagine o que diriam esses caras do MBL diante de tantas jebas? 

A Bienal me apresentou Gregório Gruber, com seus óleos sobre telas que retratam melhor do que ninguém a solidão da pessoa diante da monumentalidade de São Paulo.

A gente saía satisfeito da Bienal ou, em outros momentos, pensativo, tentando entender determinada peça; em dúvida sobre certa manifestação artística.

Esta última Bienal assexuada, "afinidades afetivas", me deixou com gosto de pó na boca. Não alterou a minha frequência cardíaca. Não me fez rir, nem chorar, nem questionar. É mais ou menos assim que deve ser dar um passeio temático pelo deserto.

Em tempo, a 33ª Bienal vai até 9 de dezembro e é "de grátis".     

   

       

sábado, 3 de novembro de 2018

Como é ser ateu entre 200 milhões de crentes


Simone de Beauvoir dizia que "ninguém nasce mulher, torna-se mulher".  Parafraseando a filósofa, escritora e mulher de Jean-Paul Sartre, diria que "ninguém nasce ateu, torna-se ateu".

O ateu no Brasil tem uma vida difícil. A pesquisa aponta que, entre os eleitores tupiniquins, eles votariam em um negro para a Presidência. Também não veriam problema em eleger uma mulher ou um homossexual para o cargo mais alto do País, mas não seriam capazes de votar em um ateu. 

"Deus é brasileiro", disse um papa certa feita. Somados todos os ateus brasileiros, eles totalizam 740 mil "almas". Menos de 1% da população. 

Em países "menos desenvolvidos de espírito", os ateus são maioria. 85% dos suecos não têm religião. Na Dinamarca, eles são 80% que afirmam não acreditar em um ser superior. 

A propósito, Dinamarca e a Suécia estão na lista dos países "mais felizes do mundo". Certamente, a ausência de religião tem aí algum fator a ser estudado.

Estudei em colégios religiosos. Por isso, só vim conhecer Darwin e a Origem das Espécies, quando era velhinho. O currículo também não mencionava Karl Marx, alguém que só vim a conhecer na pós-graduação. 

No Arquidiocesano dos irmãos maristas, a gente aprendia que Deus criou o mundo em sete dias. Tirou uma costela de Adão para fazer Eva e por aí em diante. O irmão que lecionava biologia ficava numa encruzilhada difícil, quando algum aluno perguntava sobre os dinossauros. A saída mais fácil para o irmão era dizer que "Deus tinha espalhado os restos de dinossauros para os homens se divertirem pesquisando".

Criança era arrastado pela minha mãe para a missa, na época, rezada em latim. Todo aquele cerimonial, aquela parafernália medieval me provocava tédio. Tinha vontade de sair correndo da igreja pra ir jogar bola no campinho com os amigos. Minha mãe dizia que esse desejo de evasão era "o diabo agindo". 

A morte do "filho de Deus" para aliviar a humanidade do pecado original, cometido por Adão e Eva, se tornava sem sentido, depois que os próprios padres nos diziam que "Adão e Eva era uma parábola, uma história antiga sobre o início da humanidade". Não era para levar aquilo a sério, com todas as letras.

O Deus que criava e depois matava quase todo mundo em uma inundação parecia sem lógica. "Se ele é Deus, como é possível se arrepender? Não prever que os homens iam ferrar com tudo", punha em dúvida as passagens bíblicas mais famosas. 

Pragas divinas matavam 14 mil e 700 pessoas, 24 mil...

Na série West Wing, o personagem interpretado por Martin Sheen questiona uma ativista religiosa, que afirma que a homossexualidade é uma abominação, de acordo com Levítico 18:22. 

Sheen passa a questioná-la: "Em Exodus 21:7, diz que posso vender minha filha mais nova como escrava. Ela fala italiano, por isso posso pedir um valor mais alto? Em Exodus 35:2, afirma-se que quem quiser trabalhar aos sábados deve ser morto. A gente mesmo pode matar essa pessoa ou precisa chamar a polícia?".

Sheen lembra que "a Bíblia também afirma que quem plantar vegetais diferentes, lado a lado, deve ser apedrejado até a morte. Em outra passagem, se a mãe usar roupas de cores diferentes deve ser queimada em praça pública".          

Depois de velho, li A Origem das Espécies e lá tem uma passagem bem interessante. O autor, que era clérigo, afirma: "Todos os animais existentes hoje na Terra são originários de animais que existiram anteriormente - inclusive o homem". Era a teoria evolucionista, dando seus primeiros passos, destronando o deus criador e vingativo de judeus e cristãos.

Quando você diz para alguém que é ateu a reação é sempre estranha. Lembro de uma senhora, sorrindo e falando, "mas em Deus o senhor acredita, não é?" 

Mesmo sabendo que sou ateu, amigos me enviam votos de bom dia e boa noite, garantindo que Deus vai me abençoar e me proteger. Outros falam em anjos, andando ao meu lado, mesmo contra a minha vontade. 

Autores contemporâneos têm trabalhado a desconstrução desse ser extraterrestre, onipotente, onisciente etc. Recomendo as obras de Christopher Hitchens (Deus não é grande), Richard Dawkins (Deus é um delírio) e Freud, é claro.  Em Totem e Tabu, Freud faz uma análise, ao mesmo tempo psicológica e antropológica, sobre o nascimento da religião, decorrente do assassinato do pai primevo. 

Agora, o pior em ser ateu é viver em um País, em que o presidente eleito afirma que "Deus está acima de todos". A República ainda é laica, mas, certamente, isso vai ser derrubado nos próximos quatro anos. 

A nota que a gente usa para pagar o pão na padaria vem impressa com a inscrição religiosa: "Deus seja louvado", por ordem e graça do então presidente José Sarney, católico praticante e, recentemente, denunciado 11 vezes pela Procuradoria Geral da República por maus-feitos.

Tenho dito...






   

sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Essa gente ingênua mostrou o seu valor


Lula foi condenado a 12 anos de prisão, por causa de um apartamento onde ele nunca morou, nem nunca foi dele. Dilma foi afastada da Presidência, levando o carimbo do impeachment na testa, não por ser corrupta, mas por culpa de um erro burocrático, chamado "pedalada". Os golpistas seguiram Maquiavel ipsis litteris: "Aos amigos os favores, aos inimigos, a lei".

A mídia arregimentou as massas, saturando telespectadores, ouvintes, leitores, com notícias sobre corrupção. Grupos de extrema-direita, como o MBL, promoveram manifestações.

Indignado com as denúncias da mão grande agindo na Petrobrás, o povo foi para as ruas. Carregou cartazes. Entoou gritos de ordem. "Fora Dilma!", gritavam, com toda a força de seus pulmões.

Esse MBL, que estava por trás das manifestações, seria um movimento de jovens, que tinham assistido à série da Globo Anos Rebeldes e se entusiasmado com formas de protagonismo político?

Tudo indica que não. O MBL, segundo o jornal The Guardian, é um braço tupiniquin do norte-americano Students for Liberty: 

"A Students for Liberty e a Atlas Network receberam financiamento de Charles Koch, que com seu irmão David controla a Koch Industries – a gigante de energia, combustíveis fósseis e petroquímicos dos EUA. 

"Fabio Ostermann, cientista político independente de Porto Alegre, no sul do Brasil, ajudou a fundar o MBL e também foi membro do ramo brasileiro da Students for Liberty. Ele teve aulas no Koch Institute for Human Studies na Virgínia por três meses", informa o The Guardian.

"Meu Deus! Então houve dinheiro norte-americano por trás do solapamento do governo Dilma Roussef?", perguntaria o ingênuo da bermuda, chinelo de dedo e barrigão de fora no churrasco, enquanto beberica o copo de cerveja. 

Para aqueles que usaram broche da estrela vermelha petista na lapela, que colocaram adesivos do PT nas janelas de suas casas, que agitaram bandeiras e participaram de boca-de-urna em prol de candidatos do Partido dos Trabalhadores, o Mensalão e o Petrolão tiveram o mesmo impacto que a facada de Brutus em Júlio César. Para um partido que pregava a ética na política, foi imperdoável. 

Surgiu em cena o juiz Sérgio Moro, que copiou o programa italiano Mãos Limpas, no comando de caça aos corruptos. No Brasil, a operação ganhou o nome de Lava Jato. Coube à Lava Jato processar e prender toda a cúpula petista (Lula, José Dirceu, Delúbio Soares, Palocci, João Vaccari Neto, entre outros). Empresários do porte de Marcelo Odebrecht e dos irmãos Joesley e Wesley Batista, da JBS, também foram alcançados pelo "longo braço da lei". 

O juiz Sérgio Moro deixou de ser um integrante do Judiciário para ganhar perspectiva de super-herói. Moro e o ministro Joaquim Barbosa (que condenou os réus do Mensalão) viraram uma espécie de Vingadores. Eles deixaram a categoria humana para se transformar em personagens de filmes e séries. Barbosa era chamado de "Batman", por causa da toga, que lembrava a capa do homem-morcego.

Vieram as eleições presidenciais de 2018 e o PT construiu um muro de erros. Foi tijolo sobre tijolo de decisões equivocadas. O PT errou ao procrastinar a candidatura de Fernando Haddad. Até o último momento, a última hora, o último minuto, o candidato seria Lula. Só que Lula estava na cadeia. Até o habitante do exoplaneta Ross 128b sabia que Lula não iria concorrer, por causa da Lei da Ficha Limpa. Mesmo assim, o partido insistiu no erro. 

Quem anda nas ruas; quem toma ônibus, trem, uber; quem entra em boteco; quem vai em campo de futebol, na igreja, no shopping; em suma, quem estava vivo e morava no Brasil, sabia que o PT seria um ímã que atrairia o ódio de milhões de eleitores, inconformados com os escândalos de corrupção. 

Se ao invés de Bolsonaro, o PSL tivesse escolhido o Coringa para ser adversário de Haddad, o Coringa se elegeria fácil com 57 milhões de votos. Isto porque o PT está atravessado na garganta. 

A opção mais lógica e sensata seria abrir mão de ter um candidato à Presidência e fechar acordo com alguém mais palatável ao eleitorado, como Ciro Gomes, o Cirão da Massa. Na construção de seu muro de erros, o PT apostou no candidato único, um vice, alçado às pressas para a posição de majoritário. Boi de piranha a ser consumido no pleito.

O PT precisa agora reconstruir sua imagem. Fazer um rebranding. Pedir desculpas. Vestir as sandálias da humildade. Tirar Lula da cadeia e começar de novo. "A luta continua."  

Para muita gente que via Moro como um paladino da Justiça, ao aceitar cargo no governo Bolsonaro, o símbolo maior da Lava Jato parece ter despencado do Céu. Tornou-se humano como nós. Perdeu o grau angelical. Ele era alguém que dizia que jamais entraria para a política e, veja só, foi mudar o governo para ele entrar correndo pela primeira porta aberta. 

Como escrevi em posts anteriores, há jornalistas partidários, que fazem seu nome e sobrevivem na mídia golpista, atacando determinado partido. E há também representantes do Judiciário que fazem política, ocultos pela toga. 

Ao comentar a escolha de Moro para o Ministério da Justiça, Ciro Gomes foi enfático: "Sérgio Moro não é um juiz. É um político que tem fraudado sua toga com intrusões na política".

De fato, ainda não me mostraram a escritura que mostra que Lula é o proprietário do tríplex no Guarujá. Para 47 milhões de eleitores, que votaram em Haddad, a prisão de Lula parece injusta, por ter sido condenado - é sempre bom repetir - por causa de um apartamento que nunca foi dele e onde ele nunca morou.    

    





       

    

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