Articulistas feministas meio que comemoraram a morte aos 91 anos do fundador da Playboy, Hugh Hefner. Suzane Moore, do The Guardian, reafirmou sua opinião sobre o publisher. Suzane chamou novamente Hefner de "cafetão". Em artigo anterior, a mesma Suzane qualificava o editor de explorador de mulheres. Na época, os advogados da Playboy ameaçaram processá-la. Ficou só na ameaça. Para a feminista do The Guardian, Hefner era um homem que "comprava e vendia mulheres para outros homens". "Não seria isso uma definição para cafetão?".
Sou feminista desde que li A resistência do Vietnã, de Ho Chi Minh. O revolucionário vietnamita dizia o seguinte: "Se metade da sociedade é composta de mulheres, então, os direitos entre homens e mulheres devem ser iguais". Isso me parecia tão espantosamente claro e evidente que virei feminista lá por 1970.
Era um tempo bom aquele. Sonia Braga aparecia nua e peluda, no Teatro Bela Vista, cantando Good Morning Starshine na peça Aquarius. Norma Bengell fazia o primeiro nu frontal da história do cinema nacional, em Os Cafajestes. A Seleção tinha um ataque formado por Jairzinho, Gerson, Tostão, Pelé e Rivelino, um dos maiores times que já viu atuar na minha vida.
Só o que estragava era a política. A gente vivia debaixo de uma Ditadura Militar...Com o tempo, a Ditadura foi sufocando, apertando a nossa garganta, tirando o nosso ar até que ficamos com o saco cheio e demos um pontapé na bunda de todos aqueles generais. Como projeto político, social, econômico, cultural, a Ditadura Militar deu errado. E não foi só no Brasil. Deu errado em todos os países. Deu errado sempre. Assim, quem pede o retorno da intervenção militar, faltou na aula de história.
As décadas de 1960 e 70 foram de liberação. A nossa geração detestava as gerações anteriores. Queríamos revirar o mundo de cabeça pra baixo. A música de Marcos Valle, que dizia "não confie em ninguém com mais de 30 anos", era seguida à risca. A pílula anticoncepcional permitia às mulheres se relacionar sexualmente com seus amantes, sem correr o risco de uma gravidez indesejada. O casamento não era mais intocável. Casais se separavam e, a partir de 1977 no Brasil, podiam se divorciar. O mundo ocidental no que se refere a costumes passava por uma tempestade. Vivia-se uma revolução sexual.
Em Paris, liderados por Daniel Cohn-Bendit, o Dany le rouge, os estudantes da Sorbonne e da Universidade de Nanterre dão início a uma revolta estudantil histórica, que iria paralisar a França. A imaginação ao poder; É proibido proibir; escrevia-se nos muros. Na Sorbonne, comentava-se, as pessoas escorregavam em esperma. Nesse clima de liberação, surgiu a Playboy no conservador Estados Unidos.
Quando era adolescente não havia nudes, internet, nem mesmo revistas sobre sexo. A molecada comprava escondido nas bancas os catecismos de Carlos Zéfiro. Eram histórias em quadrinhos, em preto e branco, que mostravam homens e mulheres trepando. E só. Então, surgiu a Playboy que mostrava fotos coloridas de mulheres nuas, em poses sensuais. Outras revistas - Status, Ele Ela, Sexy - aproveitaram a onda e foram disputar o público masculino nas bancas. Além das mulheres nuas, as publicações traziam entrevistas interessantes, contos, resenhas de livros. Eu lia regularmente Ele Ela, gostava particularmente das narrativas em primeira pessoa.
Anos mais tarde, seria colaborador da Sexy, a convite de Felix Fassone, marido da amiga e companheira de DGABC, Rosangela Espinossi, uma das editoras mais competentes com quem tive o prazer de trabalhar. Na Sexy, veja como é a vida, tive meus dias de Carlos Zéfiro.
A Playboy nunca foi a minha preferida. As mulheres eram tão retocadas, tão maquiadas, tão produzidas, que não pareciam reais. Isso bem antes do photoshop virar moda. As matérias da Playboy brasileira visavam um público classe A, gente que pedia informações sobre turismo do tipo "gostaria de fazer uma viagem volta ao mundo em 80 dias, dinheiro não é problema". Ou seja, a revista e meu poder de consumo não tinham qualquer parentesco.
O que me incomodava mesmo na Playboy era o dono dela, Hugh Hefner. Aquele chapeuzinho dele de piloto de iate aposentado, aquele ridículo robe de chambre de veludo vermelho, o cachimbo poseur, aquelas multidões de loiras clonadas, a mansão onde se vivia uma eterna festa crônica, as coelhinhas com o rabinho falso espetado no traseiro...Hefner representava um pesadelo cafona, com o qual eu não queria proximidade.
Voltando ao início, Hugh Hefner seria um cafetão? A ofensa é atraente, mas não, real. Se Sebastião Salgado tivesse inimigos, um deles poderia chamar esse monumental fotógrafo de "cafetão de pobres". É forçar muito a barra. Hefner criou um produto, que atendeu uma demanda de seu tempo e sua geração. Enfrentou a censura e o conservadorismo norte-americano. Criou um império. E como todo império tornou-se decadente. Com as vendas em queda, a desesperada Playboy produziu edições até sem suas outrora tão cobiçadas nudes. A Playboy, quem diria, acabou vestida.
sexta-feira, 29 de setembro de 2017
quarta-feira, 27 de setembro de 2017
A corrupção nossa de cada dia
Não sei a quem surpreende a notícia de que o Brasil tem "os piores políticos do mundo", segundo manchete de hoje da Folha, baseando-se em levantamento do Fórum de Davos. Se os fatos comprovam que a classe política foi comprada pelo poder econômico, para atender interesses que não são os da população, existe no intestino das relações sociais brasileiras um sistema de corrupção latente, crônico, que não pode ser deixado de lado.
Hoje mesmo: entrei no estacionamento do shopping, obedecendo à sinalização. O luminoso mostrou que havia uma vaga disponível naquele piso. Entrei. Vi a vaga, indicada pela luz verde, e quando fui fazer a manobra, surgiu uma senhora na contramão. Ela acelerou e ficamos embicados. Um olhando para o outro. Ela abriu a janela e perguntou: "Vai parar aí?". Eu disse: "A senhora está na contramão". Ela saiu acelerando, muito irritada, me mostrando aquele dedo malvado.
Na rua onde fica meu escritório, o departamento de trânsito colocou umas três placas informando que ali é proibido estacionar. É aquele famoso "E" cortado por um X. Todos os dias - repito - todos os dias, mas todos os dias mesmo, a rua fica cheia de carros estacionados, debaixo das placas de proibição.
Como a gente pode exigir honestidade da classe política, se diariamente rompemos regras básicas de civilidade e enviamos sinais de corrupção consentida, enfiada em nosso DNA?
Exemplos singelos. A grande questão é que o poder público - mergulhado em falcatruas e esquemas bilionários - não faz a parte dele. A classe política que comanda o poder público não cumpre com seus deveres. A prefeitura chega na sua casa com o carnê do IPTU. Você vai ao banco e paga direitinho. Você cumpre seu dever de cidadão. Já a prefeitura não faz a parte dela. Ela não faz o dever de casa. As ruas são esburacadas; a sinalização, precária; as calçadas, armadilhas. Fora os demais serviços que nunca funcionam quando você mais precisa deles. Um dia caiu uma árvore em cima de casa e não vinha ninguém retirar. Era uma árvore colossal. Majestosa. O peso dela esmagava lentamente as telhas e a sustentação. Os bombeiros diziam que era responsabilidade da Defesa Civil e a Defesa Civil empurrava o problema para os bombeiros. Um deus nos acuda.
O que adianta falar em combate à corrupção, quando 51% dos professores da rede estadual de ensino de São Paulo já foram agredidos. O professor apanha na sala de aula. Apanha no recreio. Apanha na saída da escola. Quem leciona para crianças de 6 a 14 anos, na prática, é um separador de brigas. Esses números, divulgados pela Apeoesp, nos informam o inegável: a base social do Brasil está corrompida. A gente sabe que o aluno agressor vive em um cenário devastado pela miséria e exclusão. E, lá em cima, o poder público fecha os olhos e a Secretaria de Educação não dá a mínima para o mestre agredido, que se sente desprotegido e abandonado.
Um fim de mundo. E o pior é que é o lugar onde a gente vive.
segunda-feira, 25 de setembro de 2017
O jornalismo e a areia movediça
As séries não foram inventadas pela Netflix. Sinto informar. Quando era menino, no século passado, assistia ao seriado Jim das Selvas, estrelado pelo atleta, campeão de natação e ator Johnny Weissmuller, que ganhou fama nos anos 30 no papel de Tarzan. Obeso e decadente, na série produzida no fim dos anos 40, Weissmuller percorria a selva africana a bordo de um modelito safari.
Foi Jim das Selvas que me apresentou uma armadilha da natureza chamada areia movediça. Os vilões, quando caíam na areia movediça, desapareciam lentamente. O corpo ia descendo, mergulhando, bem devagar, até restar uma mão mexendo os dedos em sinal de desespero, que sucumbia à natureza cruel da areia. Quando era a vez de Jim das Selvas se enfiar na areia, ele era salvo por uma chimpanzé esperta, a Chita.
Na vida real não há areia movediça assassina. Ela só existe no cinema. Se você cair em um poço de areia movediça, dizem os especialistas, não se apavore. Você vai acabar saindo na boa.
Acordei hoje de manhã pensando em jornalismo e como a profissão é parecida com areia movediça. Penso até em escrever um livro que vai se chamar Prego na areia sobre a instabilidade profissional que existe nessa área. Em todas as redações que estive, havia sempre aquela ameaça pairando sobre as nossas cabeças. Não era só o medo de perder o emprego. Existia a possibilidade concreta de o próprio jornal fechar as portas. O que se comprovou de fato, algumas vezes.
Meu primeiro emprego na área foi na Revista Escrita de Literatura, pilotada pelo escritor Wladyr Nader. A Escrita encerrou a versão impressa e hoje, graças ao incansável Wladyr, que bate escanteio e corre na área para cabecear, existe em versão digital. Depois, fui trabalhar na Proal - Programação e Assessoria Editorial, com Manuel Chaparro. A Proal mudou de comando e fechou as portas em 1983.
O Diário Popular, criado em 1884, iria desaparecer como marca em 2001, após ser adquirido pelas Organizações Globo. Como escrevi neste blog, estive no Dipo entre 1984 e 1990, nos embalos da "última redação romântica". Trabalhei também nas redações da TV Manchete e da Folha da Tarde. Ambas mortas e sepultadas. O Jornal da Tarde, criado em 1966 e extinto em 2012, foi outra redação por onde passei. Estive lá entre 1999 e 2002, quando o JT tentava sair da areia movediça. Não deu certo e o JT sumiu para sempre.
Uma redação por onde passei e que ainda sobrevive é a do Diário do Grande ABC. Em breve, vou relembrar esse período, extremamente criativo e satisfatório. O DGABC foi o jornal que me deu muita satisfação profissional. Fiz várias colunas bem-sucedidas, reportagens especiais que produziram impacto positivo e a maior parte de minhas recordações são de muito trabalho e bons momentos. Infelizmente, houve uma briga intestina no melhor estilo Montecchio e Capuleto, entre as duas famílias que administravam o DGABC (os Dotto e os Polesi), e o jornal seria comprado pelo empresário Ronan Maria Pinto, em 2004.
Em 2016, a opinião pública foi informada que Ronan havia conseguido o dinheiro (R$ 6 milhões) para comprar o Diário do Banco Schahin, em uma transação que envolvia o Partido dos Trabalhadores e o empresário Sérgio Bumlai. Em abril de 2016, Ronan teve a prisão decretada pelo juiz Sergio Moro, no âmbito da Operação Lava Jato. No ano anterior, em 2015, Ronan, Sérgio Gomes da Silva (o Sombra) e Klinger Luiz de Oliveira Sousa já haviam sido condenados por corrupção, em um caso rumoroso que os relacionava a achaques contra empresários de ônibus.
Seis anos antes de o jornal ser vendido a Ronan, em 1998, quando cobri a Copa do Mundo de Futebol, realizada na França, o Diário do Grande ABC tinha conquistado o título de "melhor jornal regional do País". Era um matutino influente, de leitura obrigatória na região. Tinha vários cadernos, várias editorias, equipe de reportagem grande e motivada.
Hoje, infelizmente, vejo um jornal "fininho", o que é sempre um mau presságio. Quanto tempo ainda o Diário irá sobreviver antes de cancelar o papel e mergulhar na versão digital? É a pergunta que não quer calar.
Como um ser analógico obrigado a viver no mundo digital, percebo que mudei o hábito de ler jornal. Costumava tomar café pela manhã cedinho, lendo a Folha e o Estadão. Era assinante dos dois veículos. Hoje, não assino, nem recebo jornal em casa. Leio vários jornais no PC. Não é a mesma coisa. Pra falar a verdade, é bom, porque posso ler vários veículos (The Guardian, The New York Times, os tabloides ingleses - Daily Mail, Daily Mirror e The Sun), mas é ruim porque a plataforma é dispersiva. Aparecem anúncios no meio da leitura. De repente, alguém começa a falar. Surge um vídeo... Também não compro mais jornal em banca. No último ano, não me lembro de ter visto um jovem, com jornal debaixo do braço ou lendo jornal em um bar ou café. Eles estão com os olhos voltados para seus dispositivos móveis, teclando sempre furiosamente.
O pior mesmo - o pior de tudo - é ter perdido o jornal como referência. Não tenho mais um veículo de comunicação, aqui no Brasil, que me represente, que apresente uma pauta que se aproxime do que eu almejo para o País. Virou um deserto, uma areia movediça e acabei afundado nela.
Foi Jim das Selvas que me apresentou uma armadilha da natureza chamada areia movediça. Os vilões, quando caíam na areia movediça, desapareciam lentamente. O corpo ia descendo, mergulhando, bem devagar, até restar uma mão mexendo os dedos em sinal de desespero, que sucumbia à natureza cruel da areia. Quando era a vez de Jim das Selvas se enfiar na areia, ele era salvo por uma chimpanzé esperta, a Chita.
Na vida real não há areia movediça assassina. Ela só existe no cinema. Se você cair em um poço de areia movediça, dizem os especialistas, não se apavore. Você vai acabar saindo na boa.
Acordei hoje de manhã pensando em jornalismo e como a profissão é parecida com areia movediça. Penso até em escrever um livro que vai se chamar Prego na areia sobre a instabilidade profissional que existe nessa área. Em todas as redações que estive, havia sempre aquela ameaça pairando sobre as nossas cabeças. Não era só o medo de perder o emprego. Existia a possibilidade concreta de o próprio jornal fechar as portas. O que se comprovou de fato, algumas vezes.
Meu primeiro emprego na área foi na Revista Escrita de Literatura, pilotada pelo escritor Wladyr Nader. A Escrita encerrou a versão impressa e hoje, graças ao incansável Wladyr, que bate escanteio e corre na área para cabecear, existe em versão digital. Depois, fui trabalhar na Proal - Programação e Assessoria Editorial, com Manuel Chaparro. A Proal mudou de comando e fechou as portas em 1983.
O Diário Popular, criado em 1884, iria desaparecer como marca em 2001, após ser adquirido pelas Organizações Globo. Como escrevi neste blog, estive no Dipo entre 1984 e 1990, nos embalos da "última redação romântica". Trabalhei também nas redações da TV Manchete e da Folha da Tarde. Ambas mortas e sepultadas. O Jornal da Tarde, criado em 1966 e extinto em 2012, foi outra redação por onde passei. Estive lá entre 1999 e 2002, quando o JT tentava sair da areia movediça. Não deu certo e o JT sumiu para sempre.
Uma redação por onde passei e que ainda sobrevive é a do Diário do Grande ABC. Em breve, vou relembrar esse período, extremamente criativo e satisfatório. O DGABC foi o jornal que me deu muita satisfação profissional. Fiz várias colunas bem-sucedidas, reportagens especiais que produziram impacto positivo e a maior parte de minhas recordações são de muito trabalho e bons momentos. Infelizmente, houve uma briga intestina no melhor estilo Montecchio e Capuleto, entre as duas famílias que administravam o DGABC (os Dotto e os Polesi), e o jornal seria comprado pelo empresário Ronan Maria Pinto, em 2004.
Em 2016, a opinião pública foi informada que Ronan havia conseguido o dinheiro (R$ 6 milhões) para comprar o Diário do Banco Schahin, em uma transação que envolvia o Partido dos Trabalhadores e o empresário Sérgio Bumlai. Em abril de 2016, Ronan teve a prisão decretada pelo juiz Sergio Moro, no âmbito da Operação Lava Jato. No ano anterior, em 2015, Ronan, Sérgio Gomes da Silva (o Sombra) e Klinger Luiz de Oliveira Sousa já haviam sido condenados por corrupção, em um caso rumoroso que os relacionava a achaques contra empresários de ônibus.
Seis anos antes de o jornal ser vendido a Ronan, em 1998, quando cobri a Copa do Mundo de Futebol, realizada na França, o Diário do Grande ABC tinha conquistado o título de "melhor jornal regional do País". Era um matutino influente, de leitura obrigatória na região. Tinha vários cadernos, várias editorias, equipe de reportagem grande e motivada.
Hoje, infelizmente, vejo um jornal "fininho", o que é sempre um mau presságio. Quanto tempo ainda o Diário irá sobreviver antes de cancelar o papel e mergulhar na versão digital? É a pergunta que não quer calar.
Como um ser analógico obrigado a viver no mundo digital, percebo que mudei o hábito de ler jornal. Costumava tomar café pela manhã cedinho, lendo a Folha e o Estadão. Era assinante dos dois veículos. Hoje, não assino, nem recebo jornal em casa. Leio vários jornais no PC. Não é a mesma coisa. Pra falar a verdade, é bom, porque posso ler vários veículos (The Guardian, The New York Times, os tabloides ingleses - Daily Mail, Daily Mirror e The Sun), mas é ruim porque a plataforma é dispersiva. Aparecem anúncios no meio da leitura. De repente, alguém começa a falar. Surge um vídeo... Também não compro mais jornal em banca. No último ano, não me lembro de ter visto um jovem, com jornal debaixo do braço ou lendo jornal em um bar ou café. Eles estão com os olhos voltados para seus dispositivos móveis, teclando sempre furiosamente.
O pior mesmo - o pior de tudo - é ter perdido o jornal como referência. Não tenho mais um veículo de comunicação, aqui no Brasil, que me represente, que apresente uma pauta que se aproxime do que eu almejo para o País. Virou um deserto, uma areia movediça e acabei afundado nela.
sexta-feira, 22 de setembro de 2017
O defensor inabalável de Michel Temer
Sou ouvinte regular, nem sempre fiel, da Band News FM. Por volta de 7h15, Reinaldo Azevedo dá o ar da graça e inicia sua metralhadora giratória. O estilo é parecido com o de Francis. Alinha uma série de argumentos e fatos, nomes e citações filosóficas, curvas e retas, chutes e caneladas, busca sempre surpreender o ouvinte, de tal maneira que você não sabe se ele está falando contra ou a favor. Vai e volta. Recarrega a metralhadora. Dispara, dispara e dispara.
Depois de ouvi-lo durante toda esta semana, cheguei a uma conclusão brilhante: o presidente Michel Temer tem um defensor inabalável, fiel, destemido, corajoso, irritado. Ele defende tanto o presidente Michel Temer, mas defende com tantas unhas e garras que a gente chega a confundir isso com uma coisa, assim, amorosa. Parece a defesa de um marido apaixonado, que não se conforma com o amigo que vai contar para ele que a esposa está tendo um caso.
Eu não saberia repetir aqui os argumentos de Reinaldo Azevedo, em defesa do presidente Michel Temer, porque Reinaldo é um senhor inteligentíssimo, dotado de uma cultura sobrenatural. Acredito que ele está dizendo, mais ou menos, o seguinte: "O presidente Michel Temer é o político mais honesto do Brasil. O presidente Michel Temer nunca derramou café na gravata. O presidente Michel Temer está sendo alvo de gente malvada, como esses procuradores da República, que só querem enlamear o nome cândido, imaculado, do nosso querido representante político máximo".
O pobre do procurador Rodrigo Janot, antes de deixar de usar bambu para fazer flecha, sofreu igual Cristo na cruz nas mãos (ou na boca) de Reinaldo Azevedo. O jornalista chamou Janot de "cadáver adiado que procria". As denúncias dele eram uma "ruindade assombrosa". O procurador "vomitava totalitarismo". As ações de Janot eram "patuscadas". Acho que Reinaldo chegou a chamar Janot até de "feiticeiro", se não me falha a memória falha.
Tive o prazer de trabalhar lado a lado, ombro a ombro, beiço a beiço, com Reinaldo Azevedo. Isso aconteceu na Redação do Diário do Grande ABC. Em janeiro de 1994, o presidente do Sindicato dos Condutores Rodoviários do ABCD, Oswaldo Cruz Júnior, foi assassinado em Santo André.
O suposto assassino José Benedito de Souza, o Zezé, teria cometido o crime. Mas por qual motivo?
Na hora de fazer a manchete, Reinaldo Azevedo - que o pessoal da Redação chamava carinhosamente de Piu-Piu (não sei por quê) - mandou bala em cima do PT: "Morte é queima de arquivo". Foi a manchete do Diário do Grande ABC.
No entender de Reinaldo Azevedo e de um repórter do DGABC que havia sido excomungado do PT, a morte de Oswaldo teria sido encomendada pelo Partido dos Trabalhadores, por causa de denúncias contra a CUT e o próprio PT.
Reinaldo não quis nem ouvir a versão de um repórter policial investigativo que garantia que a morte de Oswaldão (como o dirigente sindical era conhecido) tinha um ingrediente menos político e mais prosaico: dinheiro. Oswaldão havia cortado uma mamata que rendia uns trocados a Zezé, que, revoltado, despachou o presidente do Sindicato ao encontro de Jesus.
Não se foi coincidência, mas pouco depois desse episódio, Reinaldo Azevedo foi defenestrado da Redação do DGABC e liberado para conquistar o mundo e os microfones da Band News FM.
Esse episódio turvo, complexo, equivocado, que aconteceu a poucos passos da minha pessoa, me fez entender o seguinte: renascia ali uma nova geração de lacerdistas, jornalistas a serviço de um partido, de uma ideologia e de si mesmos. Os novos lacerdistas não fariam oposição ao cadáver de Getúlio Vargas, mas iriam mirar no Partido dos Trabalhadores e seus asseclas até expurgá-los do poder para todo o sempre.
Já os leitores, os ouvintes, os telespectadores, em busca de uma opinião menos parcial e menos partidária, aquilo que nas faculdades de jornalismo a gente chamava de "imparcialidade", estariam no mato sem cachorro dali em diante. Por falar nisso, é onde parece que estamos todos nós neste exato momento.
quinta-feira, 21 de setembro de 2017
A Redação da FT - "o Império do Mal"
Depois de seis anos tinha saído do Diário Popular e estava sem emprego. Era 1990, com Collor, "caçador de marajás", na Presidência. Fui falar com meu amigo, o escritor Wladyr Nader, que editava o caderno de Cultura da Folha da Tarde.
Conhecia o Wladyr desde os anos 70 quando tive um livro finalista, em um curso promovido pela Revista Escrita, da Editora Vertente, que ele dirigia. Em 1977, Wladyr precisava de um redator e cheguei a trabalhar alguns meses para a Vertente, antes de a editora entrar no vermelho.
Wladyr era ousado. Como editor de Cultura da FT, publicou uma entrevista com o autor "maldito" Glauco Mattoso, saindo com a manchete, que dizia mais ou menos o seguinte: "Escritor diz que gosta de chulé de homem". Deu o que falar.
A FT, criada em 1967, tinha um passado nebuloso, apoiando o golpe militar e até mesmo "prevendo" mortes de guerrilheiros, antes mesmo que elas acontecessem. Nos anos 90, o jornal era outro. Aproveitava basicamente o material produzido pela Folha, usava muito as agências e tinha alguns repórteres de talento e expressão em seu quadro. Um deles era Marco Rosa (1955-2016), repórter investigativo, que vivia mais nas ruas do que na Redação. Quando Marco Rosa entrava na FT, a gente sabia que também estava chegando a manchete do dia seguinte. Um dia, ele tinha comprado um revólver com número de série raspado em um departamento da polícia. Em outro, ele se fantasiava de mendigo, morava em favelas, mergulhava fundo em busca do furo e da notícia. Outra estrela da Redação da FT era Mauro Beting, que escrevia uma coluna de esportes. Além de ser filho do grande Joelmir, Mauro exibia um texto brilhante, passional e sempre inteligente.
Wladyr me apresentou a Helio Mauro Armond, braço direito do diretor de Redação, Adilson Laranjeira. Consegui um frila fixo e semanas mais tarde fui integrado como pauteiro do jornal. Entrava às 7h e não tinha hora para sair. Quando comentei com uma amiga que estava trabalhando na FT, ela balançou a cabeça em sinal de incredulidade: "Você aderiu ao Império do Mal".
Adilson Laranjeira dividia o aquário com Carlos Brickmann, que publicava uma coluna diária na FT e revisava diariamente o jornal. Só que a revisão era posterior à edição. Armado de uma caneta marcadora vermelha, Brickmann circulava o que ele considerava erros. Pegava o jornal "corrigido" e expunha nas janelas do aquário para os editores e repórteres observarem as bobagens que haviam feito. Era o "Vermelhão do Brickmann", como o pessoal chamava. A primeira vez que vi aquilo, fiquei assustado e fui conversar com Helio Mauro, que desconversou: "Esquece", ele me disse, "isso não tem a menor importância, deixa ele escrever o que quiser, ninguém dá a mínima".
A FT era um jornal em crise de identidade. Tendo por trás um passado onde aderira de corpo e alma à Ditadura Militar, não podia ser muito popular, nem sensacionalista, porque quem fazia isso era o Notícias Populares, do mesmo grupo. Ficava em um meio termo, utilizando de forma parasitária o material jornalístico produzido pela Folha e conseguindo furos de reportagem, graças a um punhado de repórteres de talento, como o já citado Marco Rosa.
Eu entrava cedinho na FT e corria para a reunião de pauta da Folha, comandada pelo sempre competente Marcelo Beraba. Participavam dessa reunião, pauteiros de todas as publicações do grupo e também o pessoal das sucursais, que entrava na base do viva voz telefônico.
Descia. Retornava à FT e me reunia com Adilson Laranjeira e Helio Mauro, que já estavam a postos. Eles decidiam o que a FT utilizaria na edição. Eu fazia um relatório que seria distribuído aos editores.
A FT funcionava como uma fábrica, dividida em seções. Imagine a matéria-prima entrando por uma porta e sendo transformada em automóvel lá na frente. Era mais ou menos assim. Por esse tempo, os computadores já tinham desbancado as máquinas de escrever. Assim, ficava mais fácil adaptar e reutilizar o material jornalístico. O que um repórter produzia, várias publicações podiam sugar à vontade. Quando as matérias chegavam das agências e da Folha, eram retalhadas em várias editorias. Os editores cortavam, adaptavam e fechavam as páginas.
Quando saía um erro, o editor dificilmente era perdoado. Helio Mauro chamava o infeliz no canto e começava: "O que eu vou dizer vai doer mais em mim do que em você, mas sou obrigado a te demitir".
O prédio da Barão de Limeira era revestido de pastilhas coloridas. Mesmo material utilizado na construção da antiga Rodoviária de São Paulo (construída pelos donos da Folha Carlos Caldeira Filho e Octávio Frias de Oliveira). Não sei se eram as pastilhas, mas só de entrar no prédio sentia mal-estar. Havia ali uma tensão permanente. Era como navegar em um rio sabendo que ele vai terminar em cachoeira. Os editores passavam mal. Viviam doentes. Espalhavam remédios ao lado dos computadores. Em um determinado momento, vários jornalistas começaram a ter diarreia. Inclusive, Adilson Laranjeira. Descobriu-se que era um bebedouro sujo o causador da caganeira generalizada.
Nessa época, a FT trabalhava com o que o pessoal chamava de "táxi frila". Além do pessoal fixo, que encolhia a cada dia, a FT dispunha de um grupo de repórteres, sem ligação fixa com o jornal. Eles se sentavam na última mesa da Redação e aguardavam. Alguns conseguiam uma pauta e iam para a rua. Eram mal remunerados e se sujeitavam a condições indignas. Lá pelas 14h, eu chegava na mesa e falava para os quatro ou cinco "táxi frilas", que haviam sobrado: "Pessoal, hoje não tem mais nada. Podem ir embora". Eles levantavam e saíam, retornando no dia seguinte.
Havia uma lenda na Redação da FT sobre Adilson Laranjeira receber o espírito de um caboclo. Comentava-se que uma jornalista ao entrar no aquário recebera naquele momento o espírito de um índio velho. E aí o índio dela teria começado a brigar com o caboclo que Adilson havia incorporado. No meio, Helio Mauro tentava segurar as pontas: "Sai daqui, índio velho!", ele gritava, "deixa o caboclo em paz!". Pessoalmente, nunca presenciei nada semelhante.
Agosto de 1991 foi um mês turbulento na minha vida. Meu pai sempre quis ser advogado, mas nunca pôde cursar uma faculdade. Curiosamente, no dia 11 de agosto de 1991, ele veio a falecer. Onze de agosto, como se sabe, é o Dia do Advogado. Dois dias depois, em 13 de agosto, recebi aquela carta que todo mundo sonha. Havia ganho uma bolsa de estudos para escrever minha tese de doutorado na França. Havia sido aceito pelo professor Michel Maffesoli, da Sorbonne, e iria integrar o grupo de estudos dele em Paris.Foi tudo muito rápido. Pedi demissão da FT e embarquei para a capital francesa.
A FT encerraria sua história em 1999, transformando-se no Agora São Paulo (um misto de NP e FT). Adilson Laranjeira e Helio Mauro passariam a integrar a assessoria de comunicação de Paulo Maluf. Laranjeira tornaria famoso o bordão, repetido milhares de vezes: “Paulo Maluf não tem nem nunca teve conta no exterior”.
quarta-feira, 20 de setembro de 2017
A mulher por trás da cura gay
O foco da polêmica sobre a "cura gay" está equivocado. As câmeras voltam-se para a decisão judicial, quando deveriam apontar para a origem do problema. A psicóloga carioca Rozangela Alves Justino, CRP 05/4917, entrou na Justiça, depois de ter sido chamadas às falas, em 2009, pelo Conselho Federal de Psicologia. Rozangela deseja "garantir o direito das pessoas de deixar a homossexualidade". Ela afirma ser um "direito constitucional" de toda biba deixar de ser biba.
A Justiça pela caneta do juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho concedeu uma liminar, permitindo o "aprofundamento de estudos científicos". O magistrado entendeu que a proibição do Conselho Federal de Psicologia impedia a investigação da sexualidade humana.
O título de psicóloga de Rozangela, na realidade, oculta sua vocação de fato. Ela é religiosa, missionária. Segundo o site The Intercept, Rozangela está lotada no gabinete do deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), recebendo R$ 3.346,34 mensais.
Esse deputado, segundo o The Intercept, é apadrinhado do líder da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, Silas Malafaia.
Malafaia e o âncora da Bandeirantes Ricardo Boechat envolveram-se recentemente em polêmica. Boechat mandou Malafaia "procurar uma rola". O âncora chamou ainda Malafaia de "idiota", "paspalhão", "tomador de grana de fiel" e "explorador da fé alheia".
O que se observa pela postura "científica" da missionária e psicóloga é que dona Rozangela teve uma formação profissional precária. Se ela tivesse pelo menos lido Freud...Em seus Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, de 1905, Freud apregoava que homossexualidade não era uma doença
A OMS (Organização Mundial da Saúde) demorou, mas finalmente retirou o homossexualismo da lista de distúrbios mentais, em 1990.
Dona Rozangela, pelo visto, desconhece isso.
Então, estamos diante de uma pessoa muito mais religiosa que acadêmica. Ela está a serviço da sua igreja, propagando sua crença e influindo desta maneira em toda a sociedade brasileira. É nesse sentido que deve ser desferido o ataque.
O Conselho Federal de Psicologia advertiu Rozangela, depois dela ser denunciada por duas pessoas, em 2009. O erro ocorreu aí. O Conselho deveria ter aproveitado a oportunidade e cassado a licença de Rozangela. O CRP foi brando e se omitiu.
Outro ponto que deve ser destacado é o direito de qualquer pessoa de buscar ajuda para resolver o problema que a aflige. A garota quer saber se vai casar, se o namorado a está traindo e procura uma cartomante. A viúva deseja se comunicar com o falecido no além e procura um médium. O sujeito acorda com 40 graus de homossexualismo e vai atrás da psicóloga para amenizar a "febre".
Pode ser que a pessoa aflita se sinta enganada pela cartomante, pelo suposto médium e pela psicóloga. Contra a cartomante e o médium há pouco a ser feito. Já contra a profissional de psicologia é outra história. A cassação do certificado da profissional é a melhor profilaxia para limpar a área dos lobos em peles de cordeiro. No caso, de religiosos protegidos pelo escudo do CRP.
terça-feira, 19 de setembro de 2017
San Junipero - a eternidade insuportável
As atrizes Gugu Mbatha-Raw e Mackenzie Davis, que fazem o par romântico do episódio, posaram felizes com seus vestidos de gala. Mackenzie, que tem nome de instituição de ensino direitista da rua da Consolação, usava um tomara-que-caia verde e branco que combinava mal com os sapatos de salto alto rosa choque.
O roteiro de San Junipero é atraente por ocultar por uma meia hora o que está por trás do romance entre as duas garotas. Gugu, que tem nome de apresentador de TV, é a extrovertida Kelly que sai na noite para se divertir com homens e mulheres. Mackenzie é a introvertida Yorkie, que sente atração por mulheres, mas não consegue sair do armário.
Na meia hora seguinte, vamos descobrir a "verdade": Kelly é uma idosa com pouco tempo de vida, que vive em um asilo. E Yorkie, que tem nome de raça de cachorro, está em estado terminal, depois de passar a vida em uma cama por ser tetraplégica. As duas garotas, que iniciam um romance e se encontram na noite da cidade imaginária de San Junipero, na realidade não existem. Seriam dois avatares, dois seres imaginários vivendo uma realidade virtual em uma cidade igualmente virtual.
Para ter acesso à realidade virtual e criar seus avatares, as velhinhas têm uma espécie de botão branco iluminado que é colocado na lateral da fronte. Quando o botãozinho é acionado, elas mergulham no mundo virtual e se transformam em jovens novamente com toda a vida pela frente.
O problema aparece quando as duas se submetem à eutanásia. O roteiro não explica como, mas as duas personagens virtuais, os dois avatares, continuam existindo na cidade imaginária de San Junipero, mesmo após a morte de suas "existências reais".
Saudades do tempo em que Hades, irmão de Zeus, governava o reino do submundo e impedia os mortos de saírem das sombras para apavorar os vivos.
Os dois avatares são jovens, felizes, se amam e foram condenados a ser felizes para sempre. Quem controlaria e existência desse mundo imaginário seria uma central de computadores, movida a robôs. É uma Matrix com final feliz.
Imagine você sendo obrigado a viver feliz e apaixonado por toda a eternidade? A cidadezinha virtual só tem gente contente, de bem com a vida. Não tem sem-teto, não tem doente na porta de hospital, não tem fila de ônibus, não tem metrô quebrado e trem atrasado. Não tem um infeliz que esteja de mal com a vida, querendo arrumar encrenca com o motorista do carro ao lado.
Enfim, o premiado San Junipero é mais uma bobagem, que faz a gente gastar nosso precioso tempo, enquanto o 1% continua mandando ver, sem nenhum perdão, em cima da gente, os 99%.
segunda-feira, 18 de setembro de 2017
A Redação do Dipo (12)
A redação romântica do Diário Popular começa a desaparecer em 1988, quando o jornal é vendido para Orestes Quércia. Quércia era governador de São Paulo e desmentiu várias vezes ser o real proprietário da publicação. Para todos os efeitos, quem havia comprado o Dipo era Ari de Carvalho, de O Dia. O Estadão dizia que não, não era verdade que Ari de Carvalho fosse o proprietário do Dipo. Seu proprietário era o governador Orestes Quércia, afirmava o jornal, que elencava uma série de denúncias de corrupção contra o governador paulista.
O fato é que os cariocas de O Dia ocuparam a Redação. Naquele ano, o general Moziul Moreira Lima perde o cargo de diretor de Redação, que passa a ser ocupado por Jorge Miranda Jordão. Jornalista experiente, bem rodado, com passagens por várias redações, Miranda transformaria o Dipo em uma cópia piorada da Última Hora.
Centralizador, autoritário, ditatorial, Miranda foi cortando várias cabeças. Oswaldo Faustino, que editava Cultura, foi um deles. Fui convidado para assumir a editoria de Cultura no lugar de Oswaldinho. Gostava de ser repórter, de entrevistar pessoas, descobrir histórias e escrever. Nunca me dei bem com trabalho burocrático. Mesmo assim, fui em frente.
Demorou algum tempo - não saberia precisar quanto - para Miranda aceitar a sugestão de criar um caderno específico para Cultura. Na época, vários jornais investiam em cadernos. Eu tinha viajado aos Estados Unidos, em 1986, e me deslumbrei com um jornal chamado USA Today, que era todo organizado em cadernos. Colorido e dinâmico, o USA Today era vendido em pontos de venda automáticos.
Finalmente, Miranda bateu o martelo e o projeto da Revista, que passaria a ser o caderno de variedades do Dipo, foi em frente. Para formar a equipe, entrei em contato com o professor da Eca/USP Bernardo Kucinski, que me indicou alguns nomes de profissionais recém-formados e talentosos.
Além da garotada saída da Eca, faziam parte da Revista, o amigo de longa data e texto brilhante Luiz Augusto Michelazzo, autor de um livro excepcional sobre esse período chamado Notícias da Matilha.
Fabian Chacur, que assinava Fabian DC, era um prodígio na elaboração de textos sobre música. Fabian conhecia todo mundo na área. Certa vez, precisando preencher um espaço grande na Revista, pedi a Fabian para escrever quatro laudas sobre rock australiano. Ele sentou-se diante da máquina de escrever e em menos de meia hora me entregou as inacreditáveis quatro laudas sobre rock australiano. Fabian era um velocista na produção de textos informativos e de muita qualidade.
Dagoberto Bordin, que também veio se agregar ao time por indicação do amigo Wladir Nader, era um jornalista promissor, com texto elegante, sabendo o ponto certo para usar a ironia.
O subeditor da Revista era Nei Souza. Sindicalista, Nei protagonizou uma história constrangedora. Em campanha salarial, Nei postou-se na frente do prédio do Dipo com o carro de som do Sindicato dos Jornalistas. Falou sobre as reivindicações da categoria, mandando ver no microfone. Encerrou a manifestação e veio trabalhar. Eram umas 14h, quando Miranda chegou ao jornal. Indignado com a presença do subeditor da Revista no carro de som do Sindicato, Miranda me chamou no aquário. "Demite esse preto fdp!" ordenou.
"Vou demitir por quê?", perguntei inocente.
"Porque ele fica fazendo manifestação aqui na porta. Não dá, cara! Manda esse preto embora". Falei que não podia demitir o Nei, porque, além dele ser bom funcionário, era sindicalizado e tinha imunidade. "Não quero saber de porra de imunidade. Manda ele embora!" Soava estranho, porque Miranda tinha um perfume esquerdista, sendo aquele cara que conduzia Carlos Marighella, a bordo de um Karmann Ghia esportivo durante a Ditadura Militar, quando o guerrilheiro mais procurado do País estava na ilegalidade e fugia da repressão.
Chamei o Nei e falei que Miranda tinha mandado despedi-lo. Nei não se conformou. Perguntou se poderia ir falar com o diretor de Redação. Falei: "Vai em frente. Não sou eu que estou te despedindo. É ele". Dez minutos depois, Nei retornou. De cara amarrada, desconfiado, disse que não estava demitido. "O Miranda me disse que foi você, Danilo, que queria me demitir".
Foi a minha vez de ir ao aquário. Abri a porta e entrei na sala. Miranda olhava umas fotos e sorriu quando me viu. "Que história é essa, Miranda? Não sou eu que estou mandando o Nei embora. É você". Sorrindo, ele disse que ninguém tinha sido mandado embora.
"Esquece. Como é que está o fechamento? Qual vai ser a manchete da Revista para amanhã?", desconversou.
Imagino que ele tivesse ligado para o RH e sido informado que não poderia demitir Nei, simplesmente, por causa da manifestação salarial. Quando foi procurado por Nei, desconversou e jogou a bomba para o meu lado. Nos meses seguintes, Miranda chamaria Nei de meu segurança particular. "Ele não é teu subeditor. É o teu segurança". Não sei por que dizia isso. Quando tentei melhorar o salário de Nei, Miranda rejeitou abruptamente. "Não vou dar aumento pra ele gastar mais com maconha", foi a resposta.
Nesse tempo, era a febre dos vídeos. Você ia a uma locadora e saía carregando sacolas com cinco ou seis vídeos que eram assistidos no fim de semana. A minha locadora preferida ficava em uma galeria, próxima ao jornal. Eles tinham filmes de arte, "de autor", que eram muito procurados. Miranda preferia filmes pornôs, mas devia ter vergonha de entrar na locadora e escolher esse gênero de filme. Então, ele me pedia para alugar filmes específicos. Certa vez me deu instruções bem claras: "Tem um filme, que não sei o nome, é de um travesti negro que tem um pinto enorme. Ele fica pulando e o pinto dele gira como se fosse uma hélice".
Nenhuma decisão era tomada no jornal antes de Miranda entrar na Redação. Ele saía de madrugada e chegava à Major Quedinho por volta de 14h. O jornal ficava paralisado, enquanto ele não chegasse. A autonomia dos editores era mínima, quase inexistente.
Coisas simples como publicar a foto de um casal, que está se separando, com aquele recorte que sugere uma foto rasgada, viravam um batalha num jornal pobre de recursos gráficos e técnicos. Certa feita, o jornal atrasou o fechamento, porque eu havia solicitado que a foto da capa, com o casal em processo de divórcio, tivesse aquele desenho de rasgado. No dia seguinte, Miranda me chamou no aquário e me deu aquela comida. "Essa porra de recurso ninguém mais usa", gritava. O responsável pela diagramação, ao lado, cabisbaixo, mas feliz da vida, porque sabia que no futuro "novidades" como aquela não iriam mais tirar seu sono. Dias depois, a Folha publicava uma foto exatamente com aquela mesma arte. Fui mostrar para Miranda, que balançou os ombros. "Quero que se foda a Folha".
Ciumento, ele não suportava boas criações. Lembro de uma capa da Revista sobre a morte de Samuel Beckett, em 1989. A capa reproduzia uma foto gigante do rosto marcado, enrugado de Beckett. Trazia apenas a data de nascimento e morte do dramaturgo. O texto ficava na página interna. Foi uma criação excelente do nosso diagramador, que, infelizmente, não me recordo o nome. Era uma capa inspirada, visualmente chamativa. Miranda disse que a capa não servia. "E quando morrer o Roberto Carlos", ele disse, "de que tamanho vai ser a foto?".
Esse critério de tamanho e projeção era discutível. Uma tarde, fechei a Revista e fui embora para casa. No dia seguinte, abro o jornal e encontro uma matéria de capa inteira sobre uma sindicalista absolutamente desconhecida. Ele havia retirado a matéria que eu havia editado e trocado por uma capa que trazia fotos da moça e um texto generoso. Entro no aquário e Miranda me diz que tinha decidido mudar o conteúdo, porque aquela matéria tinha "mais apelo". Percorri a Redação, tentando saber quem era a tal da sindicalista desconhecida que tinha virado capa da Revista. Alguém me disse que era "uma mina que o Miranda quer comer". Verdade ou não nunca tinha visto nada parecido.
Chegou a um ponto em que trabalhar com Miranda começou a me fazer mal. Não conseguia mais olhar para a cara dele, nem conversar com ele. Se na época assédio moral estivesse na moda, acredito que ele seria recordista em processos. Pedi para voltar para a reportagem. Ele aceitou a minha solicitação. Fiquei como repórter especial por um curto período até ser desligado do jornal. Eu havia ganho uma bolsa para fazer doutorado na USP e dei graças a todos os deuses por não ter de repartir mais meu oxigênio naquele ambiente.
Minha próxima redação seria a da Folha da Tarde...
sexta-feira, 15 de setembro de 2017
A Redação do Dipo (11)
Em 1987, quando nasceu meu segundo filho, eu trabalhava em três redações. Entrava às 7h na TV Gazeta para ler os jornais do dia e produzir "cabeças" (resumos das principais notícias) que seriam debatidas no programa, liderado por Alberto Helena Jr. Saía da televisão ao meio dia e corria para o Diário Popular, onde entrava às 13h (na época, o "expediente" do jornalista era de cinco horas). À noite, lecionava jornalismo no então Instituto Metodista de Ensino Superior, em São Bernardo do Campo (hoje Universidade Metodista de São Paulo).
Era uma vida corrida e satisfatória. Gostava do que fazia. Vivia o jornalismo 24h por dia, sempre atento a tudo, notícia circulando na veia. Foi mais ou menos por essa época que passei a trabalhar na editoria de Cultura, comandada por Oswaldo Faustino. Figura gentil e carinhosa, militante do movimento negro, Faustino também tinha uma vida complicada. Dava expediente na madrugada, como plantonista de Polícia, para o Estadão. Escrevia livros, gibis. Interpretava personagens. Era multitarefeiro.
Boa praça, trabalhador, Faustino foi também sacrificado, quando os cariocas de O Dia ocuparam a Redação. O motivo de sua demissão foi risível. Ele fez uma brincadeira com o bordão de Hebe Camargo e manchetou: "Que pena que esse jornal não é em cores" sobre uma matéria que tratava de uma exposição de quadros ou algo parecido. O Dipo não era mesmo em cores, nunca tinha sido colorido, mas isso foi caracterizado como uma ofensa gravíssima ao jornal, ao prefeito, ao governador, ao papa e Oswaldinho, como era conhecido, perdeu o emprego. Na realidade, foi um álibi para demiti-lo, porque o diretor de Redação, recém-empossado, não ia com a cara dele. "Esse preto filho da puta!", era a frase mais afável usada pelo chefão para se referir a Oswaldinho.
Enquanto Oswaldinho ainda editava Cultura, passei a escrever críticas de filmes que seriam lançados na semana. Na quinta ou sexta-feira, quando as produções entravam em cartaz, o Dipo publicava as críticas, trabalhando a edição com as fotos que os estúdios distribuíam para divulgação. Parece gostoso, mas não é. Você entra na cabine de exibição do distribuidor às 14h e sai até quatro horas depois, vendo dois ou três filmes simultaneamente. Conheci Edmar Pereira, crítico do Jornal da Tarde, que havia contraído o vírus HIV e enfrentava sérios problemas de saúde, vindo a falecer posteriormente, em 1993. Conheci também Rubens Ewald Filho. Admirava os dois. Pedia referências a eles e tentava me enturmar. Rubens me passou indicações de livros de autores norte-americanos, que traziam sumários e críticas breves sobre a cinematografia mundial. Rubens era cordial, porém, me parecia estava sempre com um pé atrás, desconfiado, tentando adivinhar as intenções de seu interlocutor.
Uma geração anterior à minha havia idolatrado a Cahiers du Cinéma. Particularmente, eu gostava da revista Premiere. A publicação trazia entrevistas com diretores, atores e atrizes. Não via a hora de buscar a revista em uma loja, que vendia essas publicações importadas, numa galeria da avenida São Luis. Lia a Premiere de ponta a ponta. Lia também a revista inglesa Concert que trazia Cds com lançamentos.
Quando a gente encerrava a edição, o general Moziul, que ainda era o diretor de Redação, me chamava no aquário e pedia indicações de filmes. Ele adorava cinema e ia regularmente assistir aos últimos lançamentos com a mulher.
Nessa correria, saindo da TV, indo para o Dipo, de lá para a faculdade, lembro de uma noite em que eu circulava pela avenida Juntas Provisórias, de olho no relógio para não chegar atrasado na aula (começava às 19h30), quando vi aquele garoto, de seus 14 ou 15 anos, parado na ilha, que divide a avenida. Do outro lado, fica a gigantesca favela de Heliópolis. O garoto tirou uma arma do bolso. Apontou na minha direção e atirou. A bala bateu na base do espelho retrovisor e abriu um semitúnel na carcaça. Acelerei o Chevette com vontade, olhando apavorado para ver se ele faria novos disparos.
Por que ele atirou? Quem era ele? Nunca saberei. Para quem havia passado a tarde em um mundo de fantasia, iluminado, cinematográfico, roteirizado, aquele acontecimento era uma ruptura brutal da realidade.
Era uma vida corrida e satisfatória. Gostava do que fazia. Vivia o jornalismo 24h por dia, sempre atento a tudo, notícia circulando na veia. Foi mais ou menos por essa época que passei a trabalhar na editoria de Cultura, comandada por Oswaldo Faustino. Figura gentil e carinhosa, militante do movimento negro, Faustino também tinha uma vida complicada. Dava expediente na madrugada, como plantonista de Polícia, para o Estadão. Escrevia livros, gibis. Interpretava personagens. Era multitarefeiro.
Boa praça, trabalhador, Faustino foi também sacrificado, quando os cariocas de O Dia ocuparam a Redação. O motivo de sua demissão foi risível. Ele fez uma brincadeira com o bordão de Hebe Camargo e manchetou: "Que pena que esse jornal não é em cores" sobre uma matéria que tratava de uma exposição de quadros ou algo parecido. O Dipo não era mesmo em cores, nunca tinha sido colorido, mas isso foi caracterizado como uma ofensa gravíssima ao jornal, ao prefeito, ao governador, ao papa e Oswaldinho, como era conhecido, perdeu o emprego. Na realidade, foi um álibi para demiti-lo, porque o diretor de Redação, recém-empossado, não ia com a cara dele. "Esse preto filho da puta!", era a frase mais afável usada pelo chefão para se referir a Oswaldinho.
Enquanto Oswaldinho ainda editava Cultura, passei a escrever críticas de filmes que seriam lançados na semana. Na quinta ou sexta-feira, quando as produções entravam em cartaz, o Dipo publicava as críticas, trabalhando a edição com as fotos que os estúdios distribuíam para divulgação. Parece gostoso, mas não é. Você entra na cabine de exibição do distribuidor às 14h e sai até quatro horas depois, vendo dois ou três filmes simultaneamente. Conheci Edmar Pereira, crítico do Jornal da Tarde, que havia contraído o vírus HIV e enfrentava sérios problemas de saúde, vindo a falecer posteriormente, em 1993. Conheci também Rubens Ewald Filho. Admirava os dois. Pedia referências a eles e tentava me enturmar. Rubens me passou indicações de livros de autores norte-americanos, que traziam sumários e críticas breves sobre a cinematografia mundial. Rubens era cordial, porém, me parecia estava sempre com um pé atrás, desconfiado, tentando adivinhar as intenções de seu interlocutor.
Uma geração anterior à minha havia idolatrado a Cahiers du Cinéma. Particularmente, eu gostava da revista Premiere. A publicação trazia entrevistas com diretores, atores e atrizes. Não via a hora de buscar a revista em uma loja, que vendia essas publicações importadas, numa galeria da avenida São Luis. Lia a Premiere de ponta a ponta. Lia também a revista inglesa Concert que trazia Cds com lançamentos.
Quando a gente encerrava a edição, o general Moziul, que ainda era o diretor de Redação, me chamava no aquário e pedia indicações de filmes. Ele adorava cinema e ia regularmente assistir aos últimos lançamentos com a mulher.
Nessa correria, saindo da TV, indo para o Dipo, de lá para a faculdade, lembro de uma noite em que eu circulava pela avenida Juntas Provisórias, de olho no relógio para não chegar atrasado na aula (começava às 19h30), quando vi aquele garoto, de seus 14 ou 15 anos, parado na ilha, que divide a avenida. Do outro lado, fica a gigantesca favela de Heliópolis. O garoto tirou uma arma do bolso. Apontou na minha direção e atirou. A bala bateu na base do espelho retrovisor e abriu um semitúnel na carcaça. Acelerei o Chevette com vontade, olhando apavorado para ver se ele faria novos disparos.
Por que ele atirou? Quem era ele? Nunca saberei. Para quem havia passado a tarde em um mundo de fantasia, iluminado, cinematográfico, roteirizado, aquele acontecimento era uma ruptura brutal da realidade.
quinta-feira, 14 de setembro de 2017
A Redação do Dipo (10)
A Ditadura Militar não terminou de maneira explosiva como a Queda da Bastilha. Foi morrendo aos poucos, definhando, apodrecendo em praça pública. A população fazia sua parte e ia para as ruas apoiar o movimento Diretas Já. Os comícios em prol das Diretas juntavam milhares de pessoas. A TV Globo, como sempre, minimizava os comícios, alterava a realidade, como os vilões do best-seller de George Orwell.
Em janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito presidente, derrotando o candidato do regime militar, Paulo Maluf, em eleição indireta pelo Colégio Eleitoral. O mandato seria de seis anos.
Depois de 21 anos de Ditadura - que fracassou como projeto político social, econômico, cultural - a população brasileira teria um presidente civil. Mesmo eleito de forma indireta, Tancredo ganhou o apoio popular e parecia que o País entraria em uma rota de crescimento e prosperidade. Um País mais livre, soberano, democrático, renascido.
Deu tudo errado. Na véspera da posse, em Brasília, Tancredo era submetido a uma cirurgia no intestino para a retirada de um tumor. Ele seria transferido para o Incor, em São Paulo, onde o quadro clínico iria se deteriorar até sua morte na data emblemática de 21 de abril de 1985.
Enquanto agonizava no Incor, os jornais mantinham centenas de repórteres de plantão na porta do hospital, na avenida dr. Enéas de Carvalho Aguiar, em Pinheiros. Os jornais destacavam para essa cobertura os focas, os coitados que começavam na profissão. Eu era um dos infelizes que ficavam horas e horas diante daquele prédio cinzento, debaixo de sol e chuva.
A cada trinta minutos, chegava uma "autoridade". Os focas não tinham a menor ideia de quem era o visitante. Naquela bagunça vinham autoridades de fato e outras figuras em busca de holofotes. Havia manifestações, passeatas, grupelhos, gritaria...A rua virava um circo. As autoridades e celebridades davam entrevistas relâmpago. A gente gravava e escrevia o que eles diziam, enquanto a notícia de fato estava lá em cima, guardada a sete chaves pelos médicos que atendiam o presidente eleito.
Lembro de uma foto tirada na época, com os médicos em volta de Tancredo e sua esposa, todos sorridentes, para mascarar a verdade. Os relatórios oficiais falavam em "diverticulite", porque os médicos se recusavam a usar o termo "tumor", para não assustar a população que iria pensar que o presidente eleito estava com câncer.
Aqueles plantões cansativos e estéreis a serviço do Diário Popular me veem à lembrança como um amontoado de cenas inglórias. Ficávamos sentados no meio fio, aguardando um novo comunicado, a chegada de alguém. Era uma espera interminável, sonolenta e tensa ao mesmo tempo. Nós nos reconhecíamos como personagens participantes do maior acontecimento nacional daquela época, que chegou pra valer em uma noite, com o então porta-voz Antonio Britto, anunciando o desfecho esperado.
No dia seguinte, participei da cobertura da transferência do corpo de Tancredo pelas ruas da cidade. Lembro de gente chorando, gente carregando bandeiras do Brasil, pessoas acenando, homens, mulheres e crianças espalhados pelas ruas da cidade.
Depois de 21 anos de Ditadura, o presidente civil eleito morria antes da posse. Era uma tragédia soberba, pesada que se abatia sobre o Brasil, sobre todos nós e nos sufocava. Ser repórter, eu aprendia, era também tentar transmitir em palavras aquela agonia que embrulhava o estômago, impedia a voz de sair e derramava, mesmo sem a gente querer, aquelas lágrimas constrangedoras, que a gente tirava com a mão, meio a contragosto, meio orgulhoso. Éramos testemunhas da história, ainda que estivéssemos do lado de fora, "na rua, estacionando os carros", como Cazuza, em sua música.
quarta-feira, 13 de setembro de 2017
A Redação do Dipo (9)
Vida de repórter não é fácil. Você tem de ler todos os jornais logo cedo. Ficar informado de tudo que acontece no mundo, no País, na cidade e no seu bairro. Receber a pauta do chefe de reportagem. Descer até o 3º andar e arrumar um fotógrafo. Pegar o elevador e correr até a garagem para descolar uma Brasília decrépita. O motora que a dirige quase sempre tem hábitos estranhos. Como um senhor negro, com quatro ou cinco dentes na boca, que equilibrava o cigarro fumegante, entre um canino e um incisivo, e de quebra entortava todos os espelhos retrovisores. Por que ele entortava os espelhos? Nunca descobri.
Os anos 80 eram uma época sem cintos de segurança, sem cadeirinha para nenê no banco traseiro. Podia fumar em avião, ônibus, trem, barcas e consultórios médicos. Até os médicos faziam propaganda, dizendo que cigarro fazia bem para saúde. No Carnaval, a mulherada desfilava pelada. A TV exibia comerciais com mães e crianças nuas. A Playboy fazia ensaio sensual com ninfeta.
Uma tarde de sexta-feira, debaixo de um toró terrível, eu descia a Haddock Lobo para fazer uma entrevista na então elegante casa noturna Gallery. Estava a bordo de uma Brasília arcaica, dirigida por um sem noção. Mesmo nos anos 80, eu devia ser a única pessoa no Brasil que usava cinto de segurança. Era uma dificuldade! O cinto estava sempre escondido, enrolado, sujo, preso em alguma engrenagem oleosa. Havia morado na Inglaterra entre 1981 e 1982 e o cinto de segurança era item obrigatório. Ao retornar à nossa Pindorama, passei a usar o cinto sistematicamente.
Os motoras ficavam indignados com o meu hábito. Achavam uma falta de respeito. Eu dizia: "Põe o cinto, motora. Põe o cinto!" Nada. Eles balançavam a cabeça em sinal de incredulidade.
Naquela tarde fatídica de sexta-feira, descendo a rua Haddock Lobo, paramos em um semáforo (não eram todos os carros que tinham farol de freio). O sujeito que vinha atrás da gente não conseguiu parar ou não viu que a gente tinha freado e se estatelou na traseira da Brasília do Diário Popular.
O banco do motorista e do passageiro não possuíam protetores de cabeça e quase quebrei a espinha no momento em que meu pescoço foi jogado para trás em razão do choque violento. O motorista que bateu no carro da reportagem fugiu. Com a frente toda desmilinguida, o para-choque e parte da lataria dianteira resvalando no asfalto, ele acelerou, passou no farol vermelho e foi embora pela Haddock Lobo, com aquele barulho de lata velha. O sem noção que dirigia a Brasília do Dipo engrenou a primeira e foi atrás do fugitivo.
Chovia forte, asfalto escorregadio, descíamos a rua em velocidade cada vez maior. Na travessa seguinte, o farol fechou. O fugitivo, com o carro se desfazendo, continuou acelerando e desviou de uma Kombi que atravessara naquele momento. O fugitivo passou a centímetros da Kombi. A Brasília do Dipo não teve a mesma sorte.
O sem noção desviou da Kombi, porque se não desviasse iria pegar a perua bem no meio. Em compensação, bateu em uns cinco ou seis carros que estavam estacionados. Sem controle, a Brasília foi voluntariamente em busca de um poste. Vi o cimento se aproximando, chegando cada vez mais perto, ouvi o estrondo do choque do metal com o poste. A frente da Brasília começou a se entortar, contorcer, crescer sobre meus olhos.
O movimento parou. Ficou tudo quieto. Ouvi um barulho de pinga-pinga. Era o joelho ensanguentado do sem noção que havia se chocado contra o rádio de bordo (celulares não tinham sido inventados) e esmagado o aparelho. O joelho se transformara em uma pasta de sangue e tecido rasgado. Tinha ferimentos na testa, nos braços e no peito.
Os populares conseguiram arrombar a porta do meu lado e me tirar da Brasília, agora nada mais que uma sucata. "Você se machucou feio", alguém me disse apontando para o sangue na minha calça. Fiquei apavorado, mas não era meu. Era do motora, que foi retirado, cambaleante, ferido e levado para o pronto-socorro. O repórter estava ileso. Não tinha quebrado uma unha. Além das pernas bambas, tudo certo.
Peguei um táxi e voltei para a Redação. O chefe de reportagem, que era conhecido pelo apelido de Titico, ficou muito irritado: "Como é que é? Só porque você sofreu um acidente, não fez a entrevista? Quero a matéria. Preciso da matéria!" Virei as costas e fui para casa. De ônibus. No coletivo, as pessoas olhavam assustadas para a minha roupa ensanguentada. O fato mais importante do dia era aquela verdade inegociável: o cinto de segurança tinha salvo a minha vida.
(na imagem, a foto do primeiro carro produzido em série com cinto de segurança, um Volvo, em 1959)
segunda-feira, 11 de setembro de 2017
A Redação do Dipo (8)
Em 1984, eu estava desempregado, depois de uma experiência desastrosa pela então iniciante TV Manchete. Lembro de ter ficado de manhã e à tarde percorrendo ruas alagadas, casas submersas, gente desalojada. Fizemos imagens no meio de um aguaceiro medonho. Eu, com água nos joelhos, calça arregaçada, descalço, com muita vontade de contrair uma leptospirose. Entrevistamos famílias que tinham perdido tudo. Entramos nas casas, com água pela metade da sala. TV, móveis, tranqueiras, tudo flutuando a nossa volta...
Enfim, nada muito inédito. É aquele pesadelo de verão que a gente já se acostumou. Quando entramos na Redação da TV Manchete, no início da noite, um chefete, extremamente parecido com o professor Tornassol da HQ Tintin, veio como um maluco para cima da nossa equipe. Ele pegou as cinco ou seis fitas que tínhamos produzido de manhã e à tarde, em meio ao temporal, e saiu gritando: "Já cansei de falar para vocês...Na TV do dr. Bloch, NÃO TEM ENCHENTE! NÃO TEM POBRE! NÃO TEM MISERÁVEL!".
Foram três meses naquele pesadelo até o fim do meu período de "estágio". Fui demitido por Salomão Schvartzman, que tem nome de fábrica de piano e voz de embriagado. Schvartzman tem programa até hoje na Rádio Cultura FM. Em seu Diário da Manhã, ataca defensores de direitos humanos, petistas, a esquerda e garante assim sua longevidade matusalênica na mídia cabocla.
Na realidade, a TV não era a minha praia. Na época, a equipe de reportagem era imensa. Tinha o "pau de fogo" - que era um sujeito que segurava o tripé com as lâmpadas - o repórter cinematográfico, o operador de VT e o motora (o motorista). Sair com todo esse pessoal me dava a sensação de andar com uma âncora de 10 toneladas nas costas. Um queria comer, outro precisava ir ao banheiro, um terceiro tinha de sair no horário. E o pior era entrar ao vivo, com toda aquela pressão que havia. Para uma pessoa introvertida e tímida, ser repórter de TV é um horror insuperável.
Gostava de escrever, gostava de descobrir histórias e contá-las. Antes de desistir da carreira, queria trabalhar em pelo menos um jornal diário. Foi com esse espírito que levei meu currículo para o Diário Popular. Eu tinha um segredo, o famoso trunfo na manga. Meu tio Luiz D'Angelo trabalhava há muitos anos para a família Lisboa Soares, dona do Dipo.
D'Angelo era muito querido e respeitado no jornal. Na minha família, no entanto, ele tinha caído em desgraça, depois de se separar da minha tia Odete. Jornalista, boêmio, Luizinho, como meus pais o chamavam, ficou casado com minha tia por 10 anos até a separação pelo desquite (na época não havia divórcio). Meus avós queriam ver o diabo, mas nada de falar do Luizinho para eles. Meu pai mantinha uma relação de cordialidade com Luizinho, contando histórias que pareciam nunca ter fim sobre o tempo em que Luizinho e minha tia ficaram casados. Uma das preferidas era sobre o desaparecimento de Luizinho por vários dias. Acreditava-se que estava morto, com o corpo precisando ser reconhecido no IML. Meu pai foi até o jornal de manhã bem cedo e o encontrou dormindo debaixo de uma rotativa. Voltou para casa com a boa e a má notícia. Luizinho não desaparecera. Sim (e essa seria a má notícia), estava vivo.
Na portaria do Dipo, com o currículo na mão, pedi para falar com Luiz D'Angelo. Fui encaminhado para o 2º andar, onde ficava a fotografia. Entrei com o coração na boca. Ansioso e desesperado em conseguir o emprego. A Fotografia estava vazia. Ninguém por ali. Quando ia embora, ouvi alguém gritar atrás dos armários: "Bati!". Dei a volta nos armários de ferro, caindo aos pedaços, e vi meu tio jogando cartas com os fotógrafos e laboratoristas. Eram umas 15h e eles jogavam buraco. Sobre a mesa, garrafas de cerveja.
D'Angelo me abraçou. Perguntou como estavam meus pais e minha tia. Extremamente cordial diante daquela visita inesperada, tomou uma decisão que mudaria minha vida para sempre: "Vamos falar com o general", ele disse. O general Moziul Moreira Lima era o diretor de Redação do Dipo.
Subimos até o 5º andar e lá estava o general em seu aquário. D'Angelo bateu na porta de vidro e recebeu sinal verde do general para entrar. Meu tio fez as apresentações e entregou o sagrado currículo nas mãos do general. Ele me pediu para sentar e começou a ler.
Naquele momento, achei que estava tudo perdido. A cada linha que o general lia, balançava a cabeça em sinal de desaprovação. "Não, nada bom, não, tudo errado" - eu pensava, tentando ler os pensamentos dele. Ocorre que o general Moziul tinha um tique nervoso e balançava a cabeça, como se estivesse desaprovando. Na prática, era só um tique, sem relação com o conteúdo.
O general virou-se para nós e disse a frase mágica:
"D'Angelo, apresenta o Danilo para o (Henrique) Matteucci. Vamos fazer um teste. Se ele passar, entra na equipe de reportagem".
Dias depois, com a carteira profissional registrada como "repórter", contei essa história para os avós no almoço de domingo. "Pelo menos para uma coisa esse disgraciato serviu", resmungou meu avô, no íntimo feliz da vida, com os primeiros passos do neto na vida profissional. A partir daí, tive a sensação que Luizinho deixou de ser persona non grata na família.
Depois de se separar de minha tia, D'Angelo constituiu outra família. Empreendedor, líder comunitário, fundou o jornal de classificados São Paulo Zona Sul, que hoje é dirigido por seu filho, Wagner, com quem conversei algumas vezes por telefone. A última, em 2003, foi para produzir um texto necrológico sobre seu pai.
Passados tantos anos, consigo vê-lo na porta do Dipo, fumando tranquilamente e vestido com seu indefectível terno cinza. Para os editores, repórteres e fotógrafos, ele era o grande D'Angelo. Para mim, era o Luizinho, uma espécie de herói renegado da infância, com direito à queda e redenção.
sexta-feira, 1 de setembro de 2017
Redação do Dipo (7)
Repórteres e editores do Dipo costumavam frequentar o bar e lanchonete Estadão, bem em frente ao prédio do jornal. O nome era ainda uma referência ao antigo ocupante do prédio da Major Quedinho, que havia se mudado para a marginal Tietê. Ao final de um dia estafante, morto de fome, um sem número de vezes, fui me arrastando ao Estadão para engolir o famoso sanduíche de pernil. Saturado de gordura, com várias camadas de carne enfiadas no pão francês, aquele sanduíche tinha o sabor de dever cumprido.
Próximo ao Estadão, havia o Mutamba, um boteco sujinho, com mesas de bilhar e alcoólatras de plantão. Raramente, aparecia no Mutamba. Uma noite, quando precisei tirar uma dúvida com um colega, que enchia a cara ali, presenciei uma cena passional. Um talentoso repórter negro, boa pinta, que cobria política e começava a aparecer em um telejornal noturno da TV (além de cumprir meio período no Dipo), discutia com alguém sobre ser bicha ou não ser bicha. Os dois estavam bêbados e era aquele horror, fácil de se imaginar.
O repórter negro ficou com o saco cheio de ser chamado de viado e não teve dúvida. Baixou a calça, baixou a cueca e com a bunda de fora, em pleno Mutamba, mandava o colega comê-lo: "Você é macho? Então me come", ele mandava, com a voz trôpega. O outro, sem conseguir parar em pé, agarrou o negrão e começou o movimento de vai e vem, enquanto o pessoal em volta ria de chorar. Como evidentemente o outro não conseguiu fazer nada, o repórter ergueu a calça e a cueca e pontificou: "Não falei que era você o viado..." Assim eram as noites no Mutamba.
Esse repórter negro, amigo divertido e fraterno, foi atravessar a rua da Consolação, perto da Paulista, e foi atropelado. Ficou entre a vida e a morte. Sofreu várias transfusões de sangue. Teve uma recuperação lenta e, ao tentar recuperar sua carreira, contraiu Aids e veio a falecer (na época, não havia controle de contaminação do sangue pelo vírus HIV). Uma perda lamentada por todos nós que o conhecíamos e admirávamos seu talento e generosidade.
Além do Estadão, quando as matérias exigiam que eu saísse de madrugada do jornal, sempre morrendo de fome, gostava de ir ao Longchamp, um bar-restaurante, que ficava na rua Augusta. Longchamp é um hipódromo francês, situado no Bois de Boulogne. O bar-restaurante tinha um balcão em forma de ferradura e era decorado com temas de corridas de cavalo. O garçom que me atendia, um gordinho sempre sorridente, costumava se meter nos meus pedidos. Eu falava: "Quero uma lasanha ao sugo". Ele balançava a cabeça, em sinal de incredulidade. "São três horas da manhã. Você vai dormir daqui a pouco. Uma lasanha vai cair que nem um paralelepípedo em seu estômago. Pede um bife com rúcula. É mais leve e digestivo." Eu aceitava a sugestão. O Longchamp era frequentado por boêmios, músicos e cineastas em início de carreira, como Sérgio Bianchi. Em 1988, eu o entrevistei no lançamento de Romance. E a entrevista foi ali no Longchamp.
O Sujinho, na rua da Consolação, próximo ao cemitério, também matava a nossa fome. Comia-se uma costela gigante, assada na brasa, com batatas coradas, pagando-se muito pouco. O pessoal dizia que o Sujinho era frequentado por "putas, policiais e jornalistas". De fato, a frequência era eclética. Rapazes de terno bem cortado, acompanhados por moças de minissaias curtas e sapatos de salto alto, misturavam-se a trabalhadores, grupos familiares, casais apaixonados, gente de boa e má fama. Nas mesas, servia-se um molho acebolado, que a gente comia com pão fresquinho. Era bom e barato. Hoje, o Sujinho virou uma franquia. Nunca mais pisei lá.
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