quarta-feira, 13 de setembro de 2017

A Redação do Dipo (9)


Vida de repórter não é fácil. Você tem de ler todos os jornais logo cedo. Ficar informado de tudo que acontece no mundo, no País, na cidade e no seu bairro. Receber a pauta do chefe de reportagem. Descer até o 3º andar e arrumar um fotógrafo. Pegar o elevador e correr até a garagem para descolar uma Brasília decrépita. O motora que a dirige quase sempre tem hábitos estranhos. Como um senhor negro, com quatro ou cinco dentes na boca, que equilibrava o cigarro fumegante, entre um canino e um incisivo, e de quebra entortava todos os espelhos retrovisores. Por que ele entortava os espelhos? Nunca descobri.

Os anos 80 eram uma época sem cintos de segurança, sem cadeirinha para nenê no banco traseiro. Podia fumar em avião, ônibus, trem, barcas e consultórios médicos. Até os médicos faziam propaganda, dizendo que cigarro fazia bem para saúde. No Carnaval, a mulherada desfilava pelada. A TV exibia comerciais com mães e crianças nuas. A Playboy fazia ensaio sensual com ninfeta.

Uma tarde de sexta-feira, debaixo de um toró terrível, eu descia a Haddock Lobo para fazer uma entrevista na então elegante casa noturna Gallery. Estava a bordo de uma Brasília arcaica, dirigida por um sem noção. Mesmo nos anos 80, eu devia ser a única pessoa no Brasil que usava cinto de segurança. Era uma dificuldade! O cinto estava sempre escondido, enrolado, sujo, preso em alguma engrenagem oleosa. Havia morado na Inglaterra entre 1981 e 1982 e o cinto de segurança era item obrigatório. Ao retornar à nossa Pindorama, passei a usar o cinto sistematicamente.

Os motoras ficavam indignados com o meu hábito. Achavam uma falta de respeito. Eu dizia: "Põe o cinto, motora. Põe o cinto!" Nada. Eles balançavam a cabeça em sinal de incredulidade.

Naquela tarde fatídica de sexta-feira, descendo a rua Haddock Lobo, paramos em um semáforo (não eram todos os carros que tinham farol de freio). O sujeito que vinha atrás da gente não conseguiu parar ou não viu que a gente tinha freado e se estatelou na traseira da Brasília do Diário Popular.

O banco do motorista e do passageiro não possuíam protetores de cabeça e quase quebrei a espinha no momento em que meu pescoço foi jogado para trás em razão do choque violento. O motorista que bateu no carro da reportagem fugiu. Com a frente toda desmilinguida, o para-choque e parte da lataria dianteira resvalando no asfalto,  ele acelerou, passou no farol vermelho e foi embora pela Haddock Lobo, com aquele barulho de lata velha. O sem noção que dirigia a Brasília do Dipo engrenou a primeira e foi atrás do fugitivo.

Chovia forte, asfalto escorregadio, descíamos a rua em velocidade cada vez maior. Na travessa seguinte, o farol fechou. O fugitivo, com o carro se desfazendo, continuou acelerando e desviou de uma Kombi que atravessara naquele momento. O fugitivo passou a centímetros da Kombi. A Brasília do Dipo não teve a mesma sorte.

O sem noção desviou da Kombi, porque se não desviasse iria pegar a perua bem no meio. Em compensação, bateu em uns cinco ou seis carros que estavam estacionados. Sem controle, a Brasília foi voluntariamente em busca de um poste. Vi o cimento se aproximando, chegando cada vez mais perto, ouvi o estrondo do choque do metal com o poste. A frente da Brasília começou a se entortar, contorcer, crescer sobre meus olhos.

O movimento parou. Ficou tudo quieto. Ouvi um barulho de pinga-pinga. Era o joelho ensanguentado do sem noção que havia se chocado contra o rádio de bordo (celulares não tinham sido inventados) e esmagado o aparelho. O joelho se transformara em uma pasta de sangue e tecido rasgado. Tinha ferimentos na testa, nos braços e no peito.

Os populares conseguiram arrombar a porta do meu lado e me tirar da Brasília, agora nada mais que uma sucata. "Você se machucou feio", alguém me disse apontando para o sangue na minha calça. Fiquei apavorado, mas não era meu. Era do motora, que foi retirado, cambaleante, ferido e levado para o pronto-socorro. O repórter estava ileso. Não tinha quebrado uma unha. Além das pernas bambas, tudo certo.

Peguei um táxi e voltei para a Redação. O chefe de reportagem, que era conhecido pelo apelido de Titico, ficou muito irritado: "Como é que é? Só porque você sofreu um acidente, não fez a entrevista? Quero a matéria. Preciso da matéria!" Virei as costas e fui para casa. De ônibus. No coletivo, as pessoas olhavam assustadas para a minha roupa ensanguentada. O fato mais importante do dia era aquela verdade inegociável: o cinto de segurança tinha salvo a minha vida.

(na imagem, a foto do primeiro carro produzido em série com cinto de segurança, um Volvo, em 1959)
       

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