São 220 páginas de puro ressentimento. O livro O pobre de direita - a vingança dos bastardos, de Jessé Souza, editado pela Civilização Brasileira, traz na capa um homem sentado em um galho de árvore, usando um serrote para cortar o mesmo galho. Ele está sentado no sentido contrário do tronco. Ou seja, o galho vai ser serrado, quebrar e o infeliz vai despencar junto. Essa é a metáfora que simboliza o pobre de direita: o cara que usa hospitais públicos, escolas públicas, pega remédio grátis na farmácia e - inexplicavelmente - é também alguém que é a favor da redução do estado, do corte dos projetos assistenciais, que é contra o bolsa família, que é cristão de bíblia encadernada em zíper e mesmo assim apoia o Estado de Israel e se enrola na bandeira israelense para participar de passeata bolsonarista na Paulista (não foram os judeus que "mataram" Jesus?).
Jessé Souza é negro e nordestino. Talvez, por isso, ressentido. Assim como quis comprovar o cineasta Kleber Mendonça no filme "Bacurau", Jessé acredita que o pessoal do Sul e Sudeste são os "inimigos" do estado democrático e dos governos de esquerda. Essa gente que Jessé chama de "branquinhos histéricos" teria levado à eleição de Bolsonaro, por se acharem "europeus" e não se sentirem parte do Brasil.
Na crítica intitulada O pobre de direita e a miséria da sociologia, o ativista da organização comunista Arma de Crítica Renato Nucci Júnior e o professor do Instituto Federal de São Paulo Leonardo Sacramento dizem que se Jessé levasse essa tese a uma banca de mestrado, levemente rigorosa, seria reprovado: "O argumento central de Jessé está pautado no ressentimento do branco sulista e no moralismo do negro periférico evangélico, desvinculando os seus votos da questão econômica. O PT, portanto, representaria o negro e o pobre, enquanto o branco sulista ressentido se identificaria com Bolsonaro". Nucci e Sacramento lembram, no entanto, que o Nordeste sempre votou, da redemocratização a 2002, no PSDB. "Há claramente um erro ao não se confrontar com um dado básico. O que teria acontecido com o Nordeste? Eis o que Jessé ignora".
Jessé estima que a classe média e a elite brasileira representam 20 por cento da população. "Ou seja, elas não decidem as eleições majoritárias." Não são esses os números do IBGE. Segundo o Censo 2022, as classes A, B e C já representam 50,1 por cento da população economicamente ativa. Cinquenta por cento mais um tem sim voto decisório.
O pobre de direita é também uma longa e exaustiva peroração de ataques furibundos a Raízes do Brasil, de Aurélio Buarque de Holanda. Jessé entende que Buarque de Holanda (primo de segundo grau do Chico) simboliza o elitismo acadêmico paulista que se opunha a Getúlio Vargas. Para Jessé, Vargas foi o presidente que resgatou a importância da cultura negra na formação brasileira.
"A revolução cultural varguista implica reconhecimento da cultura negra como um pilar cultural fundamental". Já São Paulo "passa a ser percebido, para todos os efeitos, como o lugar do encontro entre americanos e europeus, campeões da 'civilização', em contraposição ao resto do país (...) Estava criado o racismo cordial brasileiro".
São Paulo e sua elite acadêmica tinham mesmo de se opor a Getúlio Vargas. Ele havia dado um golpe em 1930 e tomado o poder à força. Foi para redemocratizar o País que os paulistas declararam guerra a Vargas, em 1932, com a Revolução Constitucionalista. Vargas baixaria o Estado Novo, em 1937, com a dissolução do Congresso e só deixaria o poder em 1945, quando havia 600 presos políticos no Brasil, entre eles, Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighela, Agildo Barata, Gregório Bezerra, entre outros. Os escritores Graciliano Ramos e Monteiro Lobato também foram "hóspedes" das celas do Estado Novo. Em nenhum momento, Jessé cita a ditadura Vargas. O fato de celebrar a cultura negra seria uma espécie de vacina que livraria Vargas de todos os seus desmandos?
Pior: Jessé coloca no mesmo prato Vargas, Jango, Lula e Dilma, "líderes populares de nossa história que tentaram usar o orçamento público em benefício da maioria da população". Jango, Lula e Dilma foram democraticamente eleitos. Vargas só retornaria ao poder em 1951, "nos braços do povo", com a popularidade alcançada pela sua Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943. De 1930 a 1945, é bom destacar, o Brasil vivia uma ditadura. A Ditadura Vargas.
Jessé cria um "racismo racial de fundo", que seria "contra os mestiços e negros do Norte". O autor menciona também o "preconceito regional", "principalmente no Estado de São Paulo, onde ele assume a sua forma mais bem elaborada e eficaz". E elabora o seguinte questionamento: "O que está em jogo no ódio real aos nordestinos, que não seja mera inveja do lugar que possui, indiscutivelmente, as praias mais bonitas deste país?". E afirma que "crime passa a ser tudo aquilo que o preto faz: sua religião, sua música, seu lazer e suas manifestações culturais". No entender do autor, "o racismo 'racial' continua sendo, agora por meio de suas máscaras 'culturais', o fundamento do cimento social brasileiro".
Jean-François Braunstein, em A religião woke, afirma que "é preciso encontrar racismo em todo o lado, precisamente porque não temos um racismo comprovado". Braunstein cita o professor canadense de política Eric Kaufmann que, a propósito dos Estados Unidos, ponderou que "nunca se falou tanto de racismo desde que o país se tornou indiferente às raças, com um presidente negro, um ministro de Defesa negro e um secretário de Segurança latino".
Ao falar de "racismo sistêmico", Braunstein menciona a militante racial Barbara Applebaum, para quem "todos os brancos são racistas ou cúmplices do fato de se beneficiarem de privilégios que não podem voluntariamente renunciar". O autor de A religião woke avalia que "temos dificuldade em compreender que estes militantes raciais finjam não perceber que a própria fórmula 'todos os brancos são racistas ou cúmplices' é um racismo consumado, sobretudo se a completarmos com a afirmação que ninguém negro é racista. Com este 'racialismo', estamos lidando com um racismo invertido, mas que ainda assim é racismo".
Jessé entrevista algumas pessoas, mas sem a preocupação de identificá-las. Por exemplo: "Marcelo - Marcelo é gaúcho e morador de Porto Alegre. Marcelo é branco, forte e musculoso, alto e com rosto de traços finos". Mateus - Matheus é advogado e tem trinta anos". Como jornalista essa forma de identificar o personagem me causa estranhamento. Quando era repórter, costumava anotar o nome completo, a profissão e até a idade da pessoa. Fica uma sensação de informação mal dada: "Ederson - Ederson é negro, carioca e mora em São Paulo". Não encontrei de forma detalhada e explícita quantas pessoas foram entrevistadas. Não há um balanço final. Parece que os entrevistados foram escolhidos a dedo para comprovar a tese do "racismo racial de fundo" do autor.
No Brasil, há pessoas racistas. Existem paulistas e sulistas que não gostam de nordestinos por preconceito. Mas são exceções. São Paulo sempre recebeu todos de braços abertos. Hoje, São Paulo é o estado que tem a maior população de nordestinos fora do Nordeste. Quando Jessé afirma que, no fundo, o preconceito contra nordestinos advém da inveja, por causa das praias, é de uma infelicidade autoral clamorosa. O preconceito contra o nordestino deve-se a evidências notórias: são pessoas pobres, com nível educacional baixo, que têm somente a força do trabalho para ofertar. Assim como eram os avós dos descendentes de italianos, alemães, japoneses, que chegaram a São Paulo entre o final do século 19 e o início do século 20.
Quem lê o livro O pobre de direita - a vingança dos bastardos tentando entender por que o bolsonarismo surgiu e criou raízes, e por que houve esse período tão turbulento e nocivo para a sociedade brasileira, fica sem respostas. Por causa de seu ressentimento em relação a São Paulo e estados do Sul, Jessé cria um esqueleto teórico, com base na suposição de um "racismo racial", que não oferece explicações.
Bolsonaro foi eleito, porque o seu principal adversário (Lula) estava na cadeia, preso por uma acusação de corrupção que nunca foi comprovada. Nem o então juiz Sergio Moro, nem o promotor Deltan Dallagnol tinham provas efetivas de que o dinheiro da Petrobras teria sido utilizado na reforma do sítio em Atibaia e no tríplex do Guarujá. Como a Vaza Jato viria comprovar, posteriormente, Moro e Dallagnol conjuravam para conseguir a condenação. Como prêmio pela condenação, por ter tirado Lula da disputa eleitoral, Moro foi escolhido por Bolsonaro para assumir o Ministério da Justiça.
Nucci Júnior e Sacramento escrevem que o conceito pobre de direita é imprestável para explicar a realidade. "No fundo, expressa uma condenação moral: a culpa pela pobreza e miséria das massas não seria do capitalismo, mas do próprio pobre de direita, principal responsável pela sua miséria".
O Brasil tem pressa. Precisa acabar com as desigualdades salariais. Tem de estabelecer níveis de rendimento semelhantes aos dos países nórdicos. É inconcebível um país com tantos miseráveis como o Brasil ter funcionários públicos com rendimentos estratosféricos, como apontou Bruno Carazza, em seu livro O país dos privilégios.
O Brasil tem pressa, em suas prioridades: eliminar as desigualdades, transformar a educação em pública, acabando com as fábricas particulares de diplomas; combater a violência com mais vigor e menos titubeio. Preservar a natureza. Salvar as mulheres dos companheiros e ex-companheiros. Diferente do livro de poemas Temos muito tempo e tão pouco a fazer, nós temos tanta coisa para fazer e tão pouco tempo. E conforme a frase atribuída ao imperador Marco Aurélio: "o que fizermos agora ecoará pela eternidade".
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