segunda-feira, 11 de setembro de 2017
A Redação do Dipo (8)
Em 1984, eu estava desempregado, depois de uma experiência desastrosa pela então iniciante TV Manchete. Lembro de ter ficado de manhã e à tarde percorrendo ruas alagadas, casas submersas, gente desalojada. Fizemos imagens no meio de um aguaceiro medonho. Eu, com água nos joelhos, calça arregaçada, descalço, com muita vontade de contrair uma leptospirose. Entrevistamos famílias que tinham perdido tudo. Entramos nas casas, com água pela metade da sala. TV, móveis, tranqueiras, tudo flutuando a nossa volta...
Enfim, nada muito inédito. É aquele pesadelo de verão que a gente já se acostumou. Quando entramos na Redação da TV Manchete, no início da noite, um chefete, extremamente parecido com o professor Tornassol da HQ Tintin, veio como um maluco para cima da nossa equipe. Ele pegou as cinco ou seis fitas que tínhamos produzido de manhã e à tarde, em meio ao temporal, e saiu gritando: "Já cansei de falar para vocês...Na TV do dr. Bloch, NÃO TEM ENCHENTE! NÃO TEM POBRE! NÃO TEM MISERÁVEL!".
Foram três meses naquele pesadelo até o fim do meu período de "estágio". Fui demitido por Salomão Schvartzman, que tem nome de fábrica de piano e voz de embriagado. Schvartzman tem programa até hoje na Rádio Cultura FM. Em seu Diário da Manhã, ataca defensores de direitos humanos, petistas, a esquerda e garante assim sua longevidade matusalênica na mídia cabocla.
Na realidade, a TV não era a minha praia. Na época, a equipe de reportagem era imensa. Tinha o "pau de fogo" - que era um sujeito que segurava o tripé com as lâmpadas - o repórter cinematográfico, o operador de VT e o motora (o motorista). Sair com todo esse pessoal me dava a sensação de andar com uma âncora de 10 toneladas nas costas. Um queria comer, outro precisava ir ao banheiro, um terceiro tinha de sair no horário. E o pior era entrar ao vivo, com toda aquela pressão que havia. Para uma pessoa introvertida e tímida, ser repórter de TV é um horror insuperável.
Gostava de escrever, gostava de descobrir histórias e contá-las. Antes de desistir da carreira, queria trabalhar em pelo menos um jornal diário. Foi com esse espírito que levei meu currículo para o Diário Popular. Eu tinha um segredo, o famoso trunfo na manga. Meu tio Luiz D'Angelo trabalhava há muitos anos para a família Lisboa Soares, dona do Dipo.
D'Angelo era muito querido e respeitado no jornal. Na minha família, no entanto, ele tinha caído em desgraça, depois de se separar da minha tia Odete. Jornalista, boêmio, Luizinho, como meus pais o chamavam, ficou casado com minha tia por 10 anos até a separação pelo desquite (na época não havia divórcio). Meus avós queriam ver o diabo, mas nada de falar do Luizinho para eles. Meu pai mantinha uma relação de cordialidade com Luizinho, contando histórias que pareciam nunca ter fim sobre o tempo em que Luizinho e minha tia ficaram casados. Uma das preferidas era sobre o desaparecimento de Luizinho por vários dias. Acreditava-se que estava morto, com o corpo precisando ser reconhecido no IML. Meu pai foi até o jornal de manhã bem cedo e o encontrou dormindo debaixo de uma rotativa. Voltou para casa com a boa e a má notícia. Luizinho não desaparecera. Sim (e essa seria a má notícia), estava vivo.
Na portaria do Dipo, com o currículo na mão, pedi para falar com Luiz D'Angelo. Fui encaminhado para o 2º andar, onde ficava a fotografia. Entrei com o coração na boca. Ansioso e desesperado em conseguir o emprego. A Fotografia estava vazia. Ninguém por ali. Quando ia embora, ouvi alguém gritar atrás dos armários: "Bati!". Dei a volta nos armários de ferro, caindo aos pedaços, e vi meu tio jogando cartas com os fotógrafos e laboratoristas. Eram umas 15h e eles jogavam buraco. Sobre a mesa, garrafas de cerveja.
D'Angelo me abraçou. Perguntou como estavam meus pais e minha tia. Extremamente cordial diante daquela visita inesperada, tomou uma decisão que mudaria minha vida para sempre: "Vamos falar com o general", ele disse. O general Moziul Moreira Lima era o diretor de Redação do Dipo.
Subimos até o 5º andar e lá estava o general em seu aquário. D'Angelo bateu na porta de vidro e recebeu sinal verde do general para entrar. Meu tio fez as apresentações e entregou o sagrado currículo nas mãos do general. Ele me pediu para sentar e começou a ler.
Naquele momento, achei que estava tudo perdido. A cada linha que o general lia, balançava a cabeça em sinal de desaprovação. "Não, nada bom, não, tudo errado" - eu pensava, tentando ler os pensamentos dele. Ocorre que o general Moziul tinha um tique nervoso e balançava a cabeça, como se estivesse desaprovando. Na prática, era só um tique, sem relação com o conteúdo.
O general virou-se para nós e disse a frase mágica:
"D'Angelo, apresenta o Danilo para o (Henrique) Matteucci. Vamos fazer um teste. Se ele passar, entra na equipe de reportagem".
Dias depois, com a carteira profissional registrada como "repórter", contei essa história para os avós no almoço de domingo. "Pelo menos para uma coisa esse disgraciato serviu", resmungou meu avô, no íntimo feliz da vida, com os primeiros passos do neto na vida profissional. A partir daí, tive a sensação que Luizinho deixou de ser persona non grata na família.
Depois de se separar de minha tia, D'Angelo constituiu outra família. Empreendedor, líder comunitário, fundou o jornal de classificados São Paulo Zona Sul, que hoje é dirigido por seu filho, Wagner, com quem conversei algumas vezes por telefone. A última, em 2003, foi para produzir um texto necrológico sobre seu pai.
Passados tantos anos, consigo vê-lo na porta do Dipo, fumando tranquilamente e vestido com seu indefectível terno cinza. Para os editores, repórteres e fotógrafos, ele era o grande D'Angelo. Para mim, era o Luizinho, uma espécie de herói renegado da infância, com direito à queda e redenção.
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