quinta-feira, 14 de setembro de 2017
A Redação do Dipo (10)
A Ditadura Militar não terminou de maneira explosiva como a Queda da Bastilha. Foi morrendo aos poucos, definhando, apodrecendo em praça pública. A população fazia sua parte e ia para as ruas apoiar o movimento Diretas Já. Os comícios em prol das Diretas juntavam milhares de pessoas. A TV Globo, como sempre, minimizava os comícios, alterava a realidade, como os vilões do best-seller de George Orwell.
Em janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito presidente, derrotando o candidato do regime militar, Paulo Maluf, em eleição indireta pelo Colégio Eleitoral. O mandato seria de seis anos.
Depois de 21 anos de Ditadura - que fracassou como projeto político social, econômico, cultural - a população brasileira teria um presidente civil. Mesmo eleito de forma indireta, Tancredo ganhou o apoio popular e parecia que o País entraria em uma rota de crescimento e prosperidade. Um País mais livre, soberano, democrático, renascido.
Deu tudo errado. Na véspera da posse, em Brasília, Tancredo era submetido a uma cirurgia no intestino para a retirada de um tumor. Ele seria transferido para o Incor, em São Paulo, onde o quadro clínico iria se deteriorar até sua morte na data emblemática de 21 de abril de 1985.
Enquanto agonizava no Incor, os jornais mantinham centenas de repórteres de plantão na porta do hospital, na avenida dr. Enéas de Carvalho Aguiar, em Pinheiros. Os jornais destacavam para essa cobertura os focas, os coitados que começavam na profissão. Eu era um dos infelizes que ficavam horas e horas diante daquele prédio cinzento, debaixo de sol e chuva.
A cada trinta minutos, chegava uma "autoridade". Os focas não tinham a menor ideia de quem era o visitante. Naquela bagunça vinham autoridades de fato e outras figuras em busca de holofotes. Havia manifestações, passeatas, grupelhos, gritaria...A rua virava um circo. As autoridades e celebridades davam entrevistas relâmpago. A gente gravava e escrevia o que eles diziam, enquanto a notícia de fato estava lá em cima, guardada a sete chaves pelos médicos que atendiam o presidente eleito.
Lembro de uma foto tirada na época, com os médicos em volta de Tancredo e sua esposa, todos sorridentes, para mascarar a verdade. Os relatórios oficiais falavam em "diverticulite", porque os médicos se recusavam a usar o termo "tumor", para não assustar a população que iria pensar que o presidente eleito estava com câncer.
Aqueles plantões cansativos e estéreis a serviço do Diário Popular me veem à lembrança como um amontoado de cenas inglórias. Ficávamos sentados no meio fio, aguardando um novo comunicado, a chegada de alguém. Era uma espera interminável, sonolenta e tensa ao mesmo tempo. Nós nos reconhecíamos como personagens participantes do maior acontecimento nacional daquela época, que chegou pra valer em uma noite, com o então porta-voz Antonio Britto, anunciando o desfecho esperado.
No dia seguinte, participei da cobertura da transferência do corpo de Tancredo pelas ruas da cidade. Lembro de gente chorando, gente carregando bandeiras do Brasil, pessoas acenando, homens, mulheres e crianças espalhados pelas ruas da cidade.
Depois de 21 anos de Ditadura, o presidente civil eleito morria antes da posse. Era uma tragédia soberba, pesada que se abatia sobre o Brasil, sobre todos nós e nos sufocava. Ser repórter, eu aprendia, era também tentar transmitir em palavras aquela agonia que embrulhava o estômago, impedia a voz de sair e derramava, mesmo sem a gente querer, aquelas lágrimas constrangedoras, que a gente tirava com a mão, meio a contragosto, meio orgulhoso. Éramos testemunhas da história, ainda que estivéssemos do lado de fora, "na rua, estacionando os carros", como Cazuza, em sua música.
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