sexta-feira, 28 de junho de 2019

Democracia em vertigem e o poço sem fundo





O documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, exibido pela Netflix, foi selecionado pelo The New York Times como um dos melhores filmes do ano. Cabe informar ao leitor, que nem o Times nem a Netflix são comunistas.

Petra Costa, 36 anos, realizou, talvez, a sua grande obra. A Grande Beleza. Cineasta jovem, talentosa, ela reuniu em seu documentário todas as imbricações contraditórias de sua vida.

Nela, cruzam-se e sobrepõem-se a herança maldita de ser a neta de um dos fundadores da construtora multinacional Andrade Gutierrez (empresa corruptora, obrigada a fazer acordos de leniência) e seus pais guerrilheiros, presos e exilados, durante a Ditadura Militar.

O tom do documentário não poderia ser outro, senão o de alguém narrando com uma voz magoada, cheia de dor, o golpe que derrubou o governo Dilma Roussef; seguida pela posse de Michel Temer; e, na sequência, a eleição do capitão autoritário, favorável ao armamentismo, aos agrotóxicos, inimigo número 1 dos LGBTs, das reservas indígenas e dos quilombolas.

Vinte e cinco pessoas fizeram parte da equipe que realizou Democracia em Vertigem. Além de Petra, outros três co-roteiristas assinam a produção. Mas a gente só ouve a voz sofrida de Petra, narrando as desgraças da política brasileira. Deixa a gente com a sensação de que o poço, em que fomos mergulhados, não tem mesmo mais fim.

Próxima da presidente, Petra conseguiu imagens inéditas de Dilma e sua equipe nos momentos pré e pós-impeachment. A câmera de Petra faz voos vertiginosos sobre Brasília. Caminha, lentamente, lambendo os corredores, os salões do Palácio Alvorada. “Repleto de fantasmas”, segundo Temer.

O filme relembra diálogos do golpista Romero Jucá, ensaiando a derrubada de Dilma e a posterior posse de Temer, com Sergio Machado, ex-dirigente da Transpetro:

“MACHADO - Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer].
JUCÁ - Só o Renan [Calheiros] que está contra essa porra. 'Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha'. Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra.
MACHADO - É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.
JUCÁ - Com o Supremo, com tudo.”
    
 Cita as gravações de Joesley Batista, que diz ao então recém-empossado Temer que estava comprando o silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. E Temer, aliviado, comenta: “Tem que manter isso, viu”.

Vem Aécio Neves, inconformado com a derrota, e iniciando um movimento pelo impeachment de Dilma. O mesmo Aécio que, mais tarde, cairia mais ainda em desgraça ao pedir R$ 2 milhões à JBS.

Vemos a Lava Jato em ação, convocando os jornalistas, para informar que não tinha provas, mas suas suposições indicavam que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia levado um tríplex na praia do Guarujá como pagamento de suborno.

Mais uma vez, nos deparamos com Lula diante do então implacável juiz Sergio Moro, dizendo o que todo mundo sabia – inclusive os promotores da Lava Jato. Ele estava sendo processado por um apartamento, que nunca havia sido dele, e onde ele nunca havia morado. “Me mostre uma escritura”, implora Lula, “me mostre uma prova que o apartamento era meu”.

O legal do documentário é que Petra não deixa barato. Cutuca as feridas do Partido dos Trabalhadores. Para assomar ao poder, o PT aliou-se às pútridas oligarquias da política nacional.

Ela poderia ter exibido as cenas, que embaralham o estômago dos mais sensíveis. Como perdoar Lula abraçado com Paulo Maluf, pedindo o apoio desnecessário para a eleição de Fernando Haddad para a Prefeitura de São Paulo?

Para a autocrítica “de dentro”, ela entrevista Gilberto Carvalho, ex-ministro de Lula e, nos anos 90, braço-direito do então prefeito de Santo André Celso Daniel, barbaramente assassinado em janeiro de 2002. Carvalho faz uma análise interessante, indicando os caminhos tortuosos que levaram o PT a perder sua virgindade moral.

As imagens mostram Dilma reeleita, tomando posse, ao lado de Lula e dona Marisa, acompanhados por um tipo obscuro, vampiresco, suspeito, que os segue de perto e não sabe onde se posicionar para a foto. Era Michel Temer...

 A câmera de Petra vai às ruas. Entrevista os apoiadores do impeachment de Dilma que gritam: “Fora comunistas!”. Mostra o ódio espumando, escorrendo pelos cantos da boca dos manifestantes. Aparece Janaína Paschoal, então uma professora universitária, que havia sido uma das autoras do processo de impeachment, discursando no centenário Largo de São Francisco, diante da vetusta Faculdade de Direito da USP.

“Cabelo ao vento, gente jovem reunida”, Janaína, em um discurso meio messiânico, meio amalucado, fala em “república das cobras”, "cortar as asas das cobras", de olhos arregalados e assustadores, enquanto gira um pano, como se fosse uma hélice que poderia carregá-la sabe-se lá aonde.

Do alto, a câmera de Petra Costa traz a vertigem do Brasil dividido, esquizofrênico, “eu sou o dr. Breuer, eu não sou o dr. Breuer”, subdesenvolvido, miserável. País religioso como um cruzado medieval, analfabeto funcional, ocupado pela elite de sempre que elegeu um Kaspar Hauser crescido, para eliminar direitos da classe trabalhadora e manter privilégios da cínica classe dominante.

Imperdível.

Ficha técnica:
Democracia em vertigem
Roteiro, direção e produção: Petra Costa
Produzido por: Joanna Natasegara, Shane Boris, Tiago Pavan
Co-roteiristas: Carol Pires, David Barker, Moara Passoni
Diretor de fotografia: João Atala
Diretor de fotografia, imagens exclusivas: Ricardo Stuckert
Montadores: Karen Harley, Tina Baz, Jordana Berg, David Barker, Joaquim Castro, Felipe Lacerda
Colaboração de roteiro: Antonia Pellegrino, Virginia Primo, Daniela Capelato
Música original: Rodrigo Leão, Lucas Santtana, Gilberto Monte, Vitor Araújo
Música original adicional: Fil Pinheiro, Jaques Morelenbaum, Thomas Rohrer


terça-feira, 25 de junho de 2019

Demissões de jornalistas, macarthismo e Bolsonaro

Raquel Sheherazade


           Vivemos uma época estranha. Os jornalistas não trazem mais notícia. Eles viraram a notícia. 

           Ontem, o âncora da TV Bandeirantes, Fábio Pannunzio, demonstrou solidariedade a Raquel Sheherazade e Paulo Henrique Amorim. Hoje, foi a vez do âncora da Rádio BandNews, Eduardo Barão, seguir na mesma linha. Eles disseram, mais ou menos, o seguinte: "Embora não concorde com os comentários deles, no entanto..." 

          Ou seja, a casa (o grupo Bandeirantes) deu ordem para seus principais nomes criticarem a pressão feita por Luciano Hang, "o véio da Havan", como ele é conhecido nas redes sociais, para o empresário Senor Abravanel (Silvio Santos, para os íntimos) "demetir" a comentarista Sheherazade. Paulo Henrique Amorim, pró-Lula e antiMoro, foi afastado, sumariamente, da TV Record. O motivo do afastamento é claro: suas posições políticas.

          Quando soube que Silvio Santos havia extinto o Departamento de Jornalismo do SBT (sobrou só Roberto Cabrini e sua equipe para "apagar a luz", segundo observou Ricardo Feltin no UOL), Hang escreveu: "Ainda falta gente para demetir (sic). Raquel é uma delas". 

           Luciano Hang foi chamado de "ignorante" pelo professor e historiador Marco Antonio Villa, em seu programa no YouTube, por ter escrito demitir erradamente. Villa, por sinal, também foi demitido da Rádio Jovem Pan, depois de atacar de maneira fulminante o método Sergio Moro de fazer justiça.

          Luciano Hang deveria, isso sim, ser processado por algum ambientalista por ter espalhado pelo País réplicas gigantescas da Estátua da Liberdade, que deixam o Brasil mais feio,  subdesenvolvido, miserável, inferior.

           Reinaldo Azevedo, que cunhou a expressão "petralhas", ao longo de 13 anos de crítica incansável ao Partido dos Trabalhadores, demitiu-se da Rádio Jovem Pan e da Revista Veja, em maio de 2017, ao ter uma conversa com a irmã de Aécio Neves, vazada pela Procuradoria Geral da República. 

           Na época, Azevedo discordou da forma como Aécio foi tratado pela Veja e qualificou a publicação como "nojenta". Azevedo também sairia da RedeTV, onde fazia comentários políticos, coçando o saco, em sua despedida. 

            Hoje, Azevedo apresenta um programa de rádio, às 18h, na BandNews FM. É quase um monólogo, modorrento, ególatra, com a participação titubeante de uns extras, focas do jornalismo, que funcionam como escada. Nos últimos tempos, a exemplo do que fazia Paulo Francis, Azevedo busca a oposição. Por isso, critica Moro. Pede a saída do ministro da Justiça. Dá destaque para o episódio Vaza Jato. 

          O jornalista esportivo Mauro Naves, 30 anos de excelentes serviços prestados ao Esporte da TV Globo, ardeu em praça pública ao ter seu nome citado pelo Jornal Nacional.  O telejornal informou seus telespectadores que Naves havia sido afastado da equipe de jornalismo, depois de ter se envolvido no caso Neymar/Najila.

            Tempos atrás, William Waack, todo poderoso âncora da TV Globo, perdeu o emprego e virou manchete nacional ao fazer um comentário racista. Hoje, está na CNN Brasil.

           Fala-se em macarthismo no Brasil. Nos anos 50, durante a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética, o senador Joseph McCarthy, iniciou uma caça às bruxas, buscando comunistas até debaixo do tapete. O filme Trumbo  é didático a respeito. Quem não quiser ler sobre o período, pode se instruir vendo o filme.

           Será que o Brasil vive o seu macarthismo? Os reacionários Villa e Sheherazade teriam se tornado comunistas de um dia para o outro? 

            Quem trabalhou em jornal sabe que não existe liberdade de imprensa no Brasil. O bordão é antigo, mas é sempre bom a gente relembrar. Existe "liberdade de empresa". Não de imprensa. 

             Villa era incensado na Rádio Jovem Pan, onde batia, ferozmente, no governo petista. Era um açougueiro batendo na carne. Amaciando. Amolecendo. Aguardando o momento tão esperado...A queda da presidente Dilma, no golpe de estado, que colocou o vice-presidente Michel Temer no poder. 

             Dilma saiu em 31 de agosto de 2016 do governo. Agosto, por falar nisso, é um mês complicado para o Brasil. Em 25 de agosto de 1961, Jânio Quadros pedia demissão e se afastava da Presidência, gerando uma crise institucional que redundaria no golpe de estado que levou à Ditadura Militar. Em 24 de agosto de 1954, Getúlio Vargas encerrou o seu governo com um tiro no coração. "Saio da vida para entrar na história".  

              Como diz o empresário Senor "Silvio Santos" Abravanel, "se for para criticar o governo, é melhor ficar quieto". Reacionária até o último fio de seu cabelo loiro, Sheherazade se deu bem, enquanto batia em Dilma e nos "petralhas". Era uma entusiasta do método Moro de fazer justiça e da Lava Jato. Quando Bolsonaro assumiu, ela achou que tinha direito de opinar. Criticou o presidente, criticou Moro e levou um puxão de orelha público do apresentador e dono do SBT. Na prática, Silvio Abravanel cortou as asinhas de Sheherazade. 

              No futuro, assim como ocorreu com Waack, ela deve ser acolhida, fraternalmente, pela CNN Brasil, dirigida pelo biógrafo de Edir Macedo, Douglas Tavolaro, ex-chefão da Record.

               Não há macarthismo no Brasil. O governo não precisa se preocupar em pedir à sua líder Joice Hasselmann que instaure um tribunal de exceção para caçar os comunistas, escondidos nas redações. Hasselmann, que exalta a Ditadura Militar, sempre que solicitada, certamente, cumpriria sua tarefa com gáudio e pompa. Mas não é o caso. 

               Nos grandes meios de comunicação brasileiros, em que a mídia apoiou entusiasticamente o golpe, os jornalistas não têm direito de expressão. Eles podem falar o que quiserem, desde que suas opiniões sejam as mesmas dos donos dos meios de comunicação. Caso contrário, vão perder o emprego, como o nosso querido professor Marco Antonio Villa, que o YouTube lhe seja leve.  

                

                                        

quarta-feira, 12 de junho de 2019

O pior de tudo é que a novela Neymar/Najila ainda não terminou


Começou no dia 1º de junho. Foi quando a mídia descobriu que a modelo Najila Trindade havia registrado, na véspera, um BO contra Neymar por estupro. 

A mídia enlouqueceu. Foi uma correria. Só se falava nisso. Você ia na padaria. O assunto era Neymar. Você estava em um enterro. Alguém se aproximava respeitosamente e dizia, sussurrando: "E o Neymar, hein?" Na TV, nas rádios, na internet, nos malditos grupos de WhatsApp só se falava disso. 

O pior é que essa novela talvez seja daquelas longas, intermináveis, insuportáveis. Amanhã, 13 de junho, lá vai Neymar novamente prestar depoimento, passando pelo corredor polonês de milhares de repórteres, câmeras, policiais, seguranças, fãs, curiosos, helicópteros, carros comuns, carros blindados, viaturas. Um pandemônio.

A história começa romanticamente no Sofitel Paris Arc de Triomphe - hotel cinco estrelas, na rue Beaujon, com a diária mais baixa custando a bagatela de R$ 1.800,00. Após breve troca de mensagens pelo aplicativo Instagram, Najila chega ao hotel para ter um encontro sexual com seu ídolo. 

O que aconteceu naquela noite ninguém saberá dizer. Apenas os dois. E os dois têm versões diferentes. Então...Pobres de nós, mortais...

Najila retorna ao Brasil. Espera passar 15 dias. Contrata o advogado José Edgar Bueno e diz que foi vítima de agressão. O advogado assume a causa, mas fica pouco tempo no "cargo". Quando descobre que ela havia feito um BO por estupro, decide pular fora do barco Najila.

Najila concede uma entrevista exclusiva ao bom repórter Roberto Cabrini, do SBT. Para não ficar atrás, a Globo divulga imagens inéditas, gravadas no hotel. 

Aí, para a novela não perder o pique, a gente assiste estupefato um vídeo da Najila descendo o braço em Neymar. O infeliz está deitado na luxuosa cama do Sofitel Paris, levando bordoada atrás de bordoada. Completamente vestido e de boné, ele põe os pés calçados com um tênis chique para cima, enquanto a moça desce porrada nele. 

Ela contrata outra defensora - Yasmin Abdalla - que também puxaria o carro, pouco depois. Vem um terceiro advogado, o monarquista e descendente direto do Conde de Bobadela, Danilo Garcia de Andrade, de cabelos escuros, oleosos, fartos e barba negra cerrada. 

Najila afirmava que tinha um vídeo que comprovava tudo: as agressões e o estupro que teria sofrido de Neymar. O advogado pede o vídeo. Ela diz que a prova está em um tablet. 

Ela vai prestar depoimento na polícia. Tem um piripaque. Desmaia e sai carregada pelo advogado, em uma cena que somente o nosso noveleiro preferido, Walcyr Carrasco, conseguiria imaginar. 

Correndo por fora, a mídia trazia a cada hora uma novidade. Ficamos sabendo, em um capítulo, que Najila estava sendo despejada de seu apartamento e que não havia pago um curso na Escola Panamericana de Arte e Design. Devia, por baixo, uns R$ 30 mil. 

Outro dia, outro capítulo: descobrimos que Najila havia esfaqueado o ex-marido, Estiven Alves. Em entrevista, Estiven confirmou a facada: "Foi no peito. Eu me internei". Tinha até BO.

Para se defender, Neymar publicava as mensagens que havia trocado com a modelo. Mostrava fotos dela, em posições sensuais. 

O cantor pagodeiro Zula jurava que não queria se promover, mas comemorava que seu vídeo Fogo Cruzado, até então obscuro e poucos visto, com a participação de uma seminua Najila, estava bombando na internet, com 1 milhão e 600 mil visualizações. 

Nessa altura da novela Neymar/Najila, o advogado monarquista abandona o caso, argumentando que ela não havia entregado o tablet com as provas. Pior: Najila dizia que quem tinha surrupiado o tablet havia sido o advogado. 

Najila garante que o tablet foi roubado. O condomínio onde ela mora diz que não houve roubo nenhum e o porteiro do prédio - pra variar - registra um BO contra a modelo por ameaça e intimidação. A polícia vai até o local e tira impressões digitais. Só aparecem duas impressões: a da própria Najila e de uma empregada. Najila, por seu turno, acusa a polícia, dizendo que foi todo mundo comprado.

Durma-se com um barulho desses!


segunda-feira, 10 de junho de 2019

Eu já sabia, Intercept

Deltan Dallagnol
Sergio Moro

Foi um grande furo de reportagem. O site The Intercept Brasil, credenciado pelo premiado jornalista norte-americano Glenn Greenwald, publicou neste domingo, 9 de junho, uma matéria especial, dizendo tudo aquilo que a gente já sabia, mas não tinha como provar. Greenwald conquistou fama mundial ao divulgar, no The Guardian, os documentos vazados por Edward Snowden.

O que a gente já sabia? Que o juiz Sergio Moro e os promotores da Lava Jato trabalhavam em sintonia fina. Moro lançava a bola. O promotor Deltan Dallagnol matava no peito e fazia o gol. Dallagnol fazia um lançamento de 60 metros, em profundidade, deixando Moro na frente do gol para marcar mais um. 

No caso, não se tratava de futebol. Era a incansável labuta da Lava Jato em conseguir provas que conseguissem mandar para a cadeia os principais integrantes do Partido dos Trabalhadores, entre eles, o principal "inimigo" o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. 

Com toda essa sinergia entre juiz e promotores, o processo foi bem-sucedido. Lula foi julgado e condenado, por causa de um apartamento no Guarujá, no qual ele nunca morou, nem nunca foi dele (o próprio Dallagnol dizia: "tô com receio da história do apto".). E também em razão de um sítio, de propriedade do empresário Fernando Bittar (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/04/dono-do-sitio-de-atibaia-pede-a-justica-para-vender-imovel.shtml

O objetivo da Lava Jato - segundo o site - era óbvio: tirar Lula da disputa presidencial e limpar o caminho para o então candidato Jair Bolsonaro:

"A Lava Jato foi a saga investigativa que levou à prisão o ex-presidente Lula no último ano. Uma vez sentenciado por Sergio Moro, sua condenação foi rapidamente confirmada em segunda instância, o tornando inelegível no momento em que todas as pesquisas mostravam que Lula – que terminou o segundo mandato, em 2010, com 87% de aprovação – liderava a corrida eleitoral de 2018. Sua exclusão da eleição, baseada na decisão de Moro, foi uma peça-chave para abrir um caminho para a vitória de Bolsonaro". 

Assim que foi eleito, Bolsonaro "pagou a dívida" de campanha e indicou Moro para o Ministério da Justiça.

Todo esse imbróglio jurídico está repleto de irregularidades. É de conhecimento comum que um juiz não pode se misturar com a acusação. Está previsto na Constituição brasileira. O artigo 95 diz claramente que é "vedado ao juiz participação em processo". 

O juiz deveria ser imparcial. Na prática, a gente percebe que aconteceu o inverso. Moro estava mergulhado até o tutano em uma missão estratégica, que visava colher provas, obter confissões e condenar.

Questionado a respeito, Moro sempre refutou essa hipótese. Cansou de dizer que não tinha estratégia, que quem investigava e decidia o que fazer era o Ministério Público. 

Na realidade, Moro aconselha, cobra, questiona, repreende, se intromete, pede para que as investigações sejam apressadas. É uma tabelinha estilo Pelé/Coutinho. Moro passa para Dallagnol, Dallagnol devolve para Moro, Moro para Dallagnol...É gol!

Qual é a base para se comprovar essa relação ilícita entre acusador e julgador? São as conversas, feitas em aplicativos, entre Moro e os promotores da Lava Jato. Um hacker  interceptou esses arquivos secretos e os encaminhou ao site The Intercept, que os publicou. Houve um crime. Os arquivos secretos não poderiam ter sido interceptados. O hacker agiu de forma criminosa. 

O crime, no entanto, não foi cometido pelo site. O artigo 5º da Constituição brasileira, em seu parágrafo 14, deixa claro que "é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional". Os arquivos secretos foram entregues ao site, que os publicou, amparado no que diz a Constituição.

A ampla reportagem do The Intercept traz ainda informações sobre o famoso tríplex, atribuído a Lula pela Lava Jato. Em seu Imposto de Renda, Lula afirmava ter participação em uma cooperativa habitacional no Guarujá, desde maio de 2005, tendo pago até aquele momento R$ 47 mil. Ocorre que não era um tríplex, mas uma unidade simples, que ficaria na torre B. 

Uma reportagem do jornal O Globo, publicada em 2010, mencionava que o casal Lula e Letícia perderiam a vista para o mar, em razão da construção de uma outra torre. A torre A. 

Segundo The Intercept, a denúncia da Lava Jato tinha inconsistências:

"Na denúncia feita pela Lava Jato, no entanto, os procuradores afirmam que o triplex de Lula fica na torre A, que ainda não existia quando a reportagem (do Globo) foi publicada. Mas, no item 191 da denúncia assinada pelos 14 procuradores, há o seguinte trecho (citando a reportagem do Globo): 'Essa matéria dava conta de que o então Presidente LULA e MARISA LETÍCIA seriam contemplados com uma cobertura triplex, com vista para o mar, no referido empreendimento'".

Ou seja, a denúncia estava errada. Era outro apartamento. E não o tríplex.

Esse envolvimento entre o acusador e o julgador é ilegal. Não poderia ter ocorrido. Por causa disso, a Lava Jato deve ser descartada? Não. A Lava Jato conseguiu algo inédito na história do País. Conseguiu 244 condenações contra 159 pessoas. Contabilizou R$ 6,4 bilhões em pagamentos de propinas. Veja o invejável resultado da Lava Jato até hoje: http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-instancia/parana/resultado

O público sente simpatia pelo ex-presidente Lula. É inegável que ele fez dois mandatos excepcionais à frente do Brasil. A aprovação popular era ampla e quase irrestrita. Tanto assim que ele foi reeleito três vezes. Uma vez, por ele mesmo. Nas outras, duas "incorporando" Dilma Roussef.

É inaceitável o PT ter se envolvido em tantos casos de corrupção, entre eles, o Mensalão e o Petrolão. O PT tinha a obrigação de ser um partido diferente e não ter incorrido nos mesmos desmandos dos partidos tradicionais. Foi uma pena. Uma traição àqueles que acreditavam no símbolo da estrela, que colavam os adesivos do partido nas janelas de suas casas e ostentavam com orgulho o broche do partido no peito.   

Lula será solto? Valerá votar novamente nele, sabendo que o fantasma da corrupção petista irá acompanhá-lo?

Quando o PT vai pedir desculpas a seus eleitores? Quando o partido passará por um rebranding ético e moral?

Moro será despojado de seu Ministério? Moro deu adeus à sua vaga no Supremo? 

Essas perguntas serão respondidas nos próximos dias ou meses. O que interessa agora é passar o País a limpo, algo que parece cada vez mais distante e improvável.  



   



       

terça-feira, 4 de junho de 2019

Viagens de motocicleta





Sonhei com a minha tia. Ela usava um vestido azul (não me lembro na vida real de tê-la visto com esse vestido; no dia a dia, ela raramente usava vestido). Estava no fundo de uma sala ou salão. Abriu os braços e nos abraçamos emocionados. Eu e ela dizíamos: “Que saudades! Que saudades!”. Minha tia morreu há muito tempo. Câncer.

Gostava muito da minha tia. Ela tinha uma biblioteca limitada, com algumas coleções (Érico Veríssimo, Monteiro Lobato, José de Alencar). Os livros, que eu mais gostava, estavam lá no alto. Na parte proibida para menores. Foi naquela prateleira superior que encontrei O Poço da Solidão, de Radcliffe Hall. Edição de 1951 da Livraria José Olympio Editora, tradução de José Geraldo Vieira e uma nota explicativa de Havelock Ellis. 


 A autora de O Poço da Solidão, Radcliffe Hall
Em meia dúzia de linhas, cheio de dedos, Havelock Ellis elogia o estilo da autora, sem mencionar que se trata de um livro sobre uma lésbica.

Também na parte de cima da prateleira, minha tia colocara os livros de Harold Robbins, com tradução de Nelson Rodrigues; Henry Miller (Sexus) e, por uma questão de nacionalidade talvez, Ernest Hemingway (Por Quem os Sinos Dobram).

Spoonhandle, de Ruth Moore, tinha a capa azul dilacerada, presa por uma fita adesiva. Na tradução em português, chamava-se Capitão do Cabo da Colher. Foi o meu grande livro da adolescência. O futuro estava todo lá: a luta pela preservação, os gananciosos de sempre, os predadores, os parentes ligados à escória. 

        Spoonhandle contava a história de uma colônia de pescadores no Maine e como o lugar ia ser ameaçado pela especulação imobiliária. Dois irmãos pescadores tentavam manter o lugar intacto, enquanto um terceiro irmão, gordo e burocrata, queria fazer dinheiro, matando a natureza. A cena em que o irmão pescador dá um tapa na cara do gordinho é deliciosa. Ruth Moore fez sucesso nos anos 50. Frequentou a lista dos mais vendidos do New York Times. Tentei inúmeras vezes descobrir seu endereço, mas não obtive sucesso. Queria escrever uma carta para ela, falando o quão importante tinha sido seu livro para mim.


Ruth Moore, autora de Spoonhandle

Em 1986, citei Ruth Moore, durante um curso na Fairleigh Dickinson, em Nova York, e os professores não sabiam de quem se tratava (talvez isso explique por que a universidade fosse considerada, anos depois, uma das piores dos EUA). A carta nunca foi escrita. Com o advento da internet, soube que Ruth Moore havia falecido em 1989.  

Freud estava certo. Os sonhos são a realização de um desejo. O problema é que eles são atravessados, veem na forma de reflexo do inconsciente. São tortos, caleidoscópicos. É difícil interpretá-los. Por isso, as pessoas procuram ajuda. Contam seus sonhos para alguém de fora, que ouve, anota e mata a charada.

Li toda a obra de Freud (inclusive a correspondência), por isso, às vezes, consigo decifrar meus sonhos. Sonhei com a minha tia na véspera do aniversário da minha mãe. Obviamente, teria que ligar para ela, cumprimentando-a pelos quase 100 anos de vida. 

 Minha mãe teve uma tarefa difícil na vida, que foi me ter como filho. Aos 17 anos, pus uma mochila nas costas e fui de carona até o Rio Grande do Sul. Meu cabelo era comprido. Usava jeans surrados e lia Demian, de Hermann Hesse, leitura obrigatória de todo mochileiro da época. 

Lembro de chegar na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, e me deparar com uma beleza natural de perder a fala. Caminhava pelas dunas de areia branca, a lagoa limpa e transparente ao fundo, aqui e ali, barraquinhas de ambulantes, vendendo camarões rosa gigantes fritos. 

Caminhei pela ponte Hercílio Luz (hoje, ameaçada de desabar, incapaz de se sustentar por conta própria). Encontrei outros mochileiros na ilha. Florianópolis, na época, era uma cidade pequena, acolhedora, repleta de verde e sombra. 

Anos depois, retornei a Floriá e não reconheci mais a lagoa, nem a cidade. Não havia sinal daquele lugar que eu tinha amado no início dos anos 70. O crescimento imobiliário havia implodido as belezas naturais. Como sempre, a destruição e o dinheiro falaram mais forte.  

Descendo pela BR 101, estacionei em Criciúma, onde fui perseguido por mineiros, roupas e rostos enegrecidos pela extração do carvão, que não gostaram do meu cabelo comprido. 

Lembro deles em cima de uma caminhão mambembe, gritando ofensas. Xinguei de volta. Fiz sinais obscenos. O caminhão parou. Uns 30 mineiros desceram do veículo e me perseguiram por uma estrada de terra esburacada. É claro que eu corri mais rápido, senão não estaria aqui, contando a história. 

Em Porto Alegre, caminhei até a casa de Érico Veríssimo. Parei diante da porta, mas não tive coragem de tocar a campainha. 

Aos 19 anos, comprei uma moto. No verão, acompanhado por um amigo também motociclista, fiz a viagem de volta ao Rio Grande do Sul. Fomos pela BR 116 e também pela BR 101, que eu já conhecia. As motos quebraram. Em meio às tempestades de verão, escapamos de ser atropelados por caminhões gigantes pelo menos umas cem vezes. 

Em casa, minha mãe não conseguia dormir. Varava as madrugadas, assistindo TV, preocupada com o filho motoqueiro. 

Nos anos seguintes, faria várias viagens de motocicleta. A pior delas foi para a Bahia. Chovia sem parar. Lembro de estar parado em uma estrada, um caminho - meio de terra, meio de asfalto - nas proximidades da usina nuclear de Angra dos Reis, quando vi aquele caminhão do tamanho de um prédio de três andares vir se aproximando, chegando cada vez mais perto, tomando conta de tudo até parar a uns dez centímetros da minha perna, com as rodas escorregando na lama. 

O caminhoneiro desceu o vidro. Pôs a cabeça para fora da porta e perguntou se eu não tinha medo de morrer. Estranhamente, não tinha. Era jovem e como todo jovem me achava imortal.

Aos 20 anos, saí da casa de meus pais. Aluguei um quarto em uma casa no bairro de Moema e fui morar sozinho. A casa, um sobrado simpático com jardim na frente, era de um alemão, que viera ao Brasil, depois do fim da 2ª Guerra Mundial. Era viúvo. Morava só. Por isso, alugava os quartos para jovens, como eu. Ele lia livros sobre a Luftwaffe, blitzkrieg, tanques Panzer. Cozinhava repolho e outras barbaridades malcheirosas. 

Minha mãe não entendia por que eu tinha saído de casa. Uma vez, de manhã, saí correndo para ir trabalhar. Estava atrasado. Enquanto tirava a corrente da moto, ela aparece ao meu lado, chorando, segurando um lencinho. Pedia para eu voltar para casa. Gritei com ela. Pedi para ela sumir da minha vida. Nunca mais me procurar. "Me esqueça", pedi. 

Enfim, não era fácil ser minha mãe. 

Com 30 e poucos anos, uma reviravolta na vida pessoal fez com que eu baixasse na casa da minha mãe às 23h. Não tinha para onde ir. Carregava duas malas com peças de roupa, naquela situação "sem eira nem beira'. 

Lembro do meu pai, com aquele casaco de tweed de sempre, chinelos de estilo franciscano que nunca combinaram com as meias escuras, mexendo no porta-chaves e vindo em minha direção com algo na mão. Ele me entregou a chave de casa e disse: "Seja bem-vindo". Foi um "tapa com luva de pelica", como se dizia no tempo em que as mulheres elegantes usavam luvas. 

Meses depois, aluguei uma casa, próxima de onde moravam meus pais. Era um sobrado confortável, com um jardim minúsculo nos fundos, onde meus filhos, milagrosamente, colhiam morangos.  

Voltando ao sonho, tendo em vista o histórico conturbado mãe-filho, posso imaginar que quem eu gostaria de cumprimentar no aniversário da minha mãe era, na realidade, minha tia. Que está morta. Então, o sonho fez a parte dele, realizando um desejo inconsciente. Freud, como sempre, está de parabéns. 




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