terça-feira, 4 de junho de 2019

Viagens de motocicleta





Sonhei com a minha tia. Ela usava um vestido azul (não me lembro na vida real de tê-la visto com esse vestido; no dia a dia, ela raramente usava vestido). Estava no fundo de uma sala ou salão. Abriu os braços e nos abraçamos emocionados. Eu e ela dizíamos: “Que saudades! Que saudades!”. Minha tia morreu há muito tempo. Câncer.

Gostava muito da minha tia. Ela tinha uma biblioteca limitada, com algumas coleções (Érico Veríssimo, Monteiro Lobato, José de Alencar). Os livros, que eu mais gostava, estavam lá no alto. Na parte proibida para menores. Foi naquela prateleira superior que encontrei O Poço da Solidão, de Radcliffe Hall. Edição de 1951 da Livraria José Olympio Editora, tradução de José Geraldo Vieira e uma nota explicativa de Havelock Ellis. 


 A autora de O Poço da Solidão, Radcliffe Hall
Em meia dúzia de linhas, cheio de dedos, Havelock Ellis elogia o estilo da autora, sem mencionar que se trata de um livro sobre uma lésbica.

Também na parte de cima da prateleira, minha tia colocara os livros de Harold Robbins, com tradução de Nelson Rodrigues; Henry Miller (Sexus) e, por uma questão de nacionalidade talvez, Ernest Hemingway (Por Quem os Sinos Dobram).

Spoonhandle, de Ruth Moore, tinha a capa azul dilacerada, presa por uma fita adesiva. Na tradução em português, chamava-se Capitão do Cabo da Colher. Foi o meu grande livro da adolescência. O futuro estava todo lá: a luta pela preservação, os gananciosos de sempre, os predadores, os parentes ligados à escória. 

        Spoonhandle contava a história de uma colônia de pescadores no Maine e como o lugar ia ser ameaçado pela especulação imobiliária. Dois irmãos pescadores tentavam manter o lugar intacto, enquanto um terceiro irmão, gordo e burocrata, queria fazer dinheiro, matando a natureza. A cena em que o irmão pescador dá um tapa na cara do gordinho é deliciosa. Ruth Moore fez sucesso nos anos 50. Frequentou a lista dos mais vendidos do New York Times. Tentei inúmeras vezes descobrir seu endereço, mas não obtive sucesso. Queria escrever uma carta para ela, falando o quão importante tinha sido seu livro para mim.


Ruth Moore, autora de Spoonhandle

Em 1986, citei Ruth Moore, durante um curso na Fairleigh Dickinson, em Nova York, e os professores não sabiam de quem se tratava (talvez isso explique por que a universidade fosse considerada, anos depois, uma das piores dos EUA). A carta nunca foi escrita. Com o advento da internet, soube que Ruth Moore havia falecido em 1989.  

Freud estava certo. Os sonhos são a realização de um desejo. O problema é que eles são atravessados, veem na forma de reflexo do inconsciente. São tortos, caleidoscópicos. É difícil interpretá-los. Por isso, as pessoas procuram ajuda. Contam seus sonhos para alguém de fora, que ouve, anota e mata a charada.

Li toda a obra de Freud (inclusive a correspondência), por isso, às vezes, consigo decifrar meus sonhos. Sonhei com a minha tia na véspera do aniversário da minha mãe. Obviamente, teria que ligar para ela, cumprimentando-a pelos quase 100 anos de vida. 

 Minha mãe teve uma tarefa difícil na vida, que foi me ter como filho. Aos 17 anos, pus uma mochila nas costas e fui de carona até o Rio Grande do Sul. Meu cabelo era comprido. Usava jeans surrados e lia Demian, de Hermann Hesse, leitura obrigatória de todo mochileiro da época. 

Lembro de chegar na Lagoa da Conceição, em Florianópolis, e me deparar com uma beleza natural de perder a fala. Caminhava pelas dunas de areia branca, a lagoa limpa e transparente ao fundo, aqui e ali, barraquinhas de ambulantes, vendendo camarões rosa gigantes fritos. 

Caminhei pela ponte Hercílio Luz (hoje, ameaçada de desabar, incapaz de se sustentar por conta própria). Encontrei outros mochileiros na ilha. Florianópolis, na época, era uma cidade pequena, acolhedora, repleta de verde e sombra. 

Anos depois, retornei a Floriá e não reconheci mais a lagoa, nem a cidade. Não havia sinal daquele lugar que eu tinha amado no início dos anos 70. O crescimento imobiliário havia implodido as belezas naturais. Como sempre, a destruição e o dinheiro falaram mais forte.  

Descendo pela BR 101, estacionei em Criciúma, onde fui perseguido por mineiros, roupas e rostos enegrecidos pela extração do carvão, que não gostaram do meu cabelo comprido. 

Lembro deles em cima de uma caminhão mambembe, gritando ofensas. Xinguei de volta. Fiz sinais obscenos. O caminhão parou. Uns 30 mineiros desceram do veículo e me perseguiram por uma estrada de terra esburacada. É claro que eu corri mais rápido, senão não estaria aqui, contando a história. 

Em Porto Alegre, caminhei até a casa de Érico Veríssimo. Parei diante da porta, mas não tive coragem de tocar a campainha. 

Aos 19 anos, comprei uma moto. No verão, acompanhado por um amigo também motociclista, fiz a viagem de volta ao Rio Grande do Sul. Fomos pela BR 116 e também pela BR 101, que eu já conhecia. As motos quebraram. Em meio às tempestades de verão, escapamos de ser atropelados por caminhões gigantes pelo menos umas cem vezes. 

Em casa, minha mãe não conseguia dormir. Varava as madrugadas, assistindo TV, preocupada com o filho motoqueiro. 

Nos anos seguintes, faria várias viagens de motocicleta. A pior delas foi para a Bahia. Chovia sem parar. Lembro de estar parado em uma estrada, um caminho - meio de terra, meio de asfalto - nas proximidades da usina nuclear de Angra dos Reis, quando vi aquele caminhão do tamanho de um prédio de três andares vir se aproximando, chegando cada vez mais perto, tomando conta de tudo até parar a uns dez centímetros da minha perna, com as rodas escorregando na lama. 

O caminhoneiro desceu o vidro. Pôs a cabeça para fora da porta e perguntou se eu não tinha medo de morrer. Estranhamente, não tinha. Era jovem e como todo jovem me achava imortal.

Aos 20 anos, saí da casa de meus pais. Aluguei um quarto em uma casa no bairro de Moema e fui morar sozinho. A casa, um sobrado simpático com jardim na frente, era de um alemão, que viera ao Brasil, depois do fim da 2ª Guerra Mundial. Era viúvo. Morava só. Por isso, alugava os quartos para jovens, como eu. Ele lia livros sobre a Luftwaffe, blitzkrieg, tanques Panzer. Cozinhava repolho e outras barbaridades malcheirosas. 

Minha mãe não entendia por que eu tinha saído de casa. Uma vez, de manhã, saí correndo para ir trabalhar. Estava atrasado. Enquanto tirava a corrente da moto, ela aparece ao meu lado, chorando, segurando um lencinho. Pedia para eu voltar para casa. Gritei com ela. Pedi para ela sumir da minha vida. Nunca mais me procurar. "Me esqueça", pedi. 

Enfim, não era fácil ser minha mãe. 

Com 30 e poucos anos, uma reviravolta na vida pessoal fez com que eu baixasse na casa da minha mãe às 23h. Não tinha para onde ir. Carregava duas malas com peças de roupa, naquela situação "sem eira nem beira'. 

Lembro do meu pai, com aquele casaco de tweed de sempre, chinelos de estilo franciscano que nunca combinaram com as meias escuras, mexendo no porta-chaves e vindo em minha direção com algo na mão. Ele me entregou a chave de casa e disse: "Seja bem-vindo". Foi um "tapa com luva de pelica", como se dizia no tempo em que as mulheres elegantes usavam luvas. 

Meses depois, aluguei uma casa, próxima de onde moravam meus pais. Era um sobrado confortável, com um jardim minúsculo nos fundos, onde meus filhos, milagrosamente, colhiam morangos.  

Voltando ao sonho, tendo em vista o histórico conturbado mãe-filho, posso imaginar que quem eu gostaria de cumprimentar no aniversário da minha mãe era, na realidade, minha tia. Que está morta. Então, o sonho fez a parte dele, realizando um desejo inconsciente. Freud, como sempre, está de parabéns. 




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