sexta-feira, 28 de junho de 2019

Democracia em vertigem e o poço sem fundo





O documentário Democracia em Vertigem, de Petra Costa, exibido pela Netflix, foi selecionado pelo The New York Times como um dos melhores filmes do ano. Cabe informar ao leitor, que nem o Times nem a Netflix são comunistas.

Petra Costa, 36 anos, realizou, talvez, a sua grande obra. A Grande Beleza. Cineasta jovem, talentosa, ela reuniu em seu documentário todas as imbricações contraditórias de sua vida.

Nela, cruzam-se e sobrepõem-se a herança maldita de ser a neta de um dos fundadores da construtora multinacional Andrade Gutierrez (empresa corruptora, obrigada a fazer acordos de leniência) e seus pais guerrilheiros, presos e exilados, durante a Ditadura Militar.

O tom do documentário não poderia ser outro, senão o de alguém narrando com uma voz magoada, cheia de dor, o golpe que derrubou o governo Dilma Roussef; seguida pela posse de Michel Temer; e, na sequência, a eleição do capitão autoritário, favorável ao armamentismo, aos agrotóxicos, inimigo número 1 dos LGBTs, das reservas indígenas e dos quilombolas.

Vinte e cinco pessoas fizeram parte da equipe que realizou Democracia em Vertigem. Além de Petra, outros três co-roteiristas assinam a produção. Mas a gente só ouve a voz sofrida de Petra, narrando as desgraças da política brasileira. Deixa a gente com a sensação de que o poço, em que fomos mergulhados, não tem mesmo mais fim.

Próxima da presidente, Petra conseguiu imagens inéditas de Dilma e sua equipe nos momentos pré e pós-impeachment. A câmera de Petra faz voos vertiginosos sobre Brasília. Caminha, lentamente, lambendo os corredores, os salões do Palácio Alvorada. “Repleto de fantasmas”, segundo Temer.

O filme relembra diálogos do golpista Romero Jucá, ensaiando a derrubada de Dilma e a posterior posse de Temer, com Sergio Machado, ex-dirigente da Transpetro:

“MACHADO - Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer].
JUCÁ - Só o Renan [Calheiros] que está contra essa porra. 'Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha'. Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra.
MACHADO - É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.
JUCÁ - Com o Supremo, com tudo.”
    
 Cita as gravações de Joesley Batista, que diz ao então recém-empossado Temer que estava comprando o silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. E Temer, aliviado, comenta: “Tem que manter isso, viu”.

Vem Aécio Neves, inconformado com a derrota, e iniciando um movimento pelo impeachment de Dilma. O mesmo Aécio que, mais tarde, cairia mais ainda em desgraça ao pedir R$ 2 milhões à JBS.

Vemos a Lava Jato em ação, convocando os jornalistas, para informar que não tinha provas, mas suas suposições indicavam que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia levado um tríplex na praia do Guarujá como pagamento de suborno.

Mais uma vez, nos deparamos com Lula diante do então implacável juiz Sergio Moro, dizendo o que todo mundo sabia – inclusive os promotores da Lava Jato. Ele estava sendo processado por um apartamento, que nunca havia sido dele, e onde ele nunca havia morado. “Me mostre uma escritura”, implora Lula, “me mostre uma prova que o apartamento era meu”.

O legal do documentário é que Petra não deixa barato. Cutuca as feridas do Partido dos Trabalhadores. Para assomar ao poder, o PT aliou-se às pútridas oligarquias da política nacional.

Ela poderia ter exibido as cenas, que embaralham o estômago dos mais sensíveis. Como perdoar Lula abraçado com Paulo Maluf, pedindo o apoio desnecessário para a eleição de Fernando Haddad para a Prefeitura de São Paulo?

Para a autocrítica “de dentro”, ela entrevista Gilberto Carvalho, ex-ministro de Lula e, nos anos 90, braço-direito do então prefeito de Santo André Celso Daniel, barbaramente assassinado em janeiro de 2002. Carvalho faz uma análise interessante, indicando os caminhos tortuosos que levaram o PT a perder sua virgindade moral.

As imagens mostram Dilma reeleita, tomando posse, ao lado de Lula e dona Marisa, acompanhados por um tipo obscuro, vampiresco, suspeito, que os segue de perto e não sabe onde se posicionar para a foto. Era Michel Temer...

 A câmera de Petra vai às ruas. Entrevista os apoiadores do impeachment de Dilma que gritam: “Fora comunistas!”. Mostra o ódio espumando, escorrendo pelos cantos da boca dos manifestantes. Aparece Janaína Paschoal, então uma professora universitária, que havia sido uma das autoras do processo de impeachment, discursando no centenário Largo de São Francisco, diante da vetusta Faculdade de Direito da USP.

“Cabelo ao vento, gente jovem reunida”, Janaína, em um discurso meio messiânico, meio amalucado, fala em “república das cobras”, "cortar as asas das cobras", de olhos arregalados e assustadores, enquanto gira um pano, como se fosse uma hélice que poderia carregá-la sabe-se lá aonde.

Do alto, a câmera de Petra Costa traz a vertigem do Brasil dividido, esquizofrênico, “eu sou o dr. Breuer, eu não sou o dr. Breuer”, subdesenvolvido, miserável. País religioso como um cruzado medieval, analfabeto funcional, ocupado pela elite de sempre que elegeu um Kaspar Hauser crescido, para eliminar direitos da classe trabalhadora e manter privilégios da cínica classe dominante.

Imperdível.

Ficha técnica:
Democracia em vertigem
Roteiro, direção e produção: Petra Costa
Produzido por: Joanna Natasegara, Shane Boris, Tiago Pavan
Co-roteiristas: Carol Pires, David Barker, Moara Passoni
Diretor de fotografia: João Atala
Diretor de fotografia, imagens exclusivas: Ricardo Stuckert
Montadores: Karen Harley, Tina Baz, Jordana Berg, David Barker, Joaquim Castro, Felipe Lacerda
Colaboração de roteiro: Antonia Pellegrino, Virginia Primo, Daniela Capelato
Música original: Rodrigo Leão, Lucas Santtana, Gilberto Monte, Vitor Araújo
Música original adicional: Fil Pinheiro, Jaques Morelenbaum, Thomas Rohrer


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