O documentário Democracia
em Vertigem, de Petra Costa, exibido pela Netflix, foi selecionado pelo The New York Times como um dos melhores filmes
do ano. Cabe informar ao leitor, que nem o Times nem a Netflix são comunistas.
Petra Costa, 36 anos, realizou, talvez, a sua grande obra. A Grande Beleza. Cineasta jovem, talentosa, ela
reuniu em seu documentário todas as imbricações contraditórias de sua vida.
Nela, cruzam-se e sobrepõem-se a herança maldita de
ser a neta de um dos fundadores da construtora multinacional Andrade Gutierrez (empresa
corruptora, obrigada a fazer acordos de leniência) e seus pais guerrilheiros,
presos e exilados, durante a Ditadura Militar.
O tom do documentário não poderia ser outro, senão o
de alguém narrando com uma voz magoada, cheia de dor, o golpe que derrubou o
governo Dilma Roussef; seguida pela posse de Michel Temer; e, na sequência, a
eleição do capitão autoritário, favorável ao armamentismo, aos agrotóxicos,
inimigo número 1 dos LGBTs, das reservas indígenas e dos quilombolas.
Vinte e cinco pessoas fizeram parte da equipe que
realizou Democracia em Vertigem. Além
de Petra, outros três co-roteiristas assinam a produção. Mas a gente só ouve a
voz sofrida de Petra, narrando as desgraças da política brasileira. Deixa a
gente com a sensação de que o poço, em que fomos mergulhados, não tem mesmo mais
fim.
Próxima da presidente, Petra conseguiu imagens
inéditas de Dilma e sua equipe nos momentos pré e pós-impeachment. A câmera de
Petra faz voos vertiginosos sobre Brasília. Caminha, lentamente, lambendo os
corredores, os salões do Palácio Alvorada. “Repleto de fantasmas”,
segundo Temer.
O filme relembra diálogos do golpista Romero Jucá,
ensaiando a derrubada de Dilma e a posterior posse de Temer, com Sergio
Machado, ex-dirigente da Transpetro:
“MACHADO - Rapaz, a solução mais
fácil era botar o Michel [Temer].
JUCÁ - Só o Renan [Calheiros]
que está contra essa porra. 'Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha'.
Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra.
MACHADO - É um acordo, botar o
Michel, num grande acordo nacional.
JUCÁ - Com o Supremo, com tudo.”
Cita as
gravações de Joesley Batista, que diz ao então recém-empossado Temer que
estava comprando o silêncio do ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha. E Temer,
aliviado, comenta: “Tem que manter isso, viu”.
Vem Aécio Neves, inconformado com a derrota, e
iniciando um movimento pelo impeachment de Dilma. O mesmo Aécio que, mais
tarde, cairia mais ainda em desgraça ao pedir R$ 2 milhões à JBS.
Vemos a Lava Jato em ação, convocando os jornalistas,
para informar que não tinha provas, mas suas suposições indicavam que o
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva havia levado um tríplex na praia do
Guarujá como pagamento de suborno.
Mais uma vez, nos deparamos com Lula diante do então
implacável juiz Sergio Moro, dizendo o que todo mundo sabia – inclusive os
promotores da Lava Jato. Ele estava sendo processado por um apartamento, que
nunca havia sido dele, e onde ele nunca havia morado. “Me mostre uma escritura”,
implora Lula, “me mostre uma prova que o apartamento era meu”.
O legal do documentário é que Petra não deixa
barato. Cutuca as feridas do Partido dos Trabalhadores. Para assomar ao poder, o
PT aliou-se às pútridas oligarquias da política nacional.
Ela poderia ter exibido as cenas, que embaralham o
estômago dos mais sensíveis. Como perdoar Lula abraçado com Paulo Maluf,
pedindo o apoio desnecessário para a eleição de Fernando Haddad para a
Prefeitura de São Paulo?
Para a autocrítica “de dentro”, ela entrevista
Gilberto Carvalho, ex-ministro de Lula e, nos anos 90, braço-direito do então
prefeito de Santo André Celso Daniel, barbaramente assassinado em janeiro de
2002. Carvalho faz uma análise interessante, indicando os caminhos tortuosos
que levaram o PT a perder sua virgindade moral.
As imagens mostram Dilma reeleita, tomando posse, ao
lado de Lula e dona Marisa, acompanhados por um tipo obscuro, vampiresco, suspeito,
que os segue de perto e não sabe onde se posicionar para a foto. Era Michel Temer...
A câmera de
Petra vai às ruas. Entrevista os apoiadores do impeachment de Dilma que gritam:
“Fora comunistas!”. Mostra o ódio espumando, escorrendo pelos cantos da boca
dos manifestantes. Aparece Janaína Paschoal, então uma professora
universitária, que havia sido uma das autoras do processo de impeachment,
discursando no centenário Largo de São Francisco, diante da vetusta Faculdade de Direito
da USP.
“Cabelo ao vento, gente jovem reunida”, Janaína, em
um discurso meio messiânico, meio amalucado, fala em “república das cobras”, "cortar as asas das cobras", de olhos arregalados e assustadores, enquanto gira um pano, como se fosse uma hélice que poderia carregá-la sabe-se
lá aonde.
Do alto, a
câmera de Petra Costa traz a vertigem do Brasil dividido, esquizofrênico, “eu
sou o dr. Breuer, eu não sou o dr. Breuer”, subdesenvolvido, miserável. País religioso como um cruzado medieval, analfabeto funcional, ocupado
pela elite de sempre que elegeu um Kaspar Hauser crescido, para eliminar direitos da classe trabalhadora e manter privilégios
da cínica classe dominante.
Imperdível.
Ficha técnica:
Democracia
em vertigem
Roteiro, direção e produção: Petra
Costa
Produzido por: Joanna
Natasegara, Shane Boris, Tiago Pavan
Co-roteiristas: Carol
Pires, David Barker, Moara Passoni
Diretor de fotografia: João
Atala
Diretor de fotografia, imagens
exclusivas: Ricardo Stuckert
Montadores: Karen
Harley, Tina Baz, Jordana Berg, David Barker, Joaquim Castro, Felipe Lacerda
Colaboração de roteiro: Antonia
Pellegrino, Virginia Primo, Daniela Capelato
Música original: Rodrigo
Leão, Lucas Santtana, Gilberto Monte, Vitor Araújo
Música original adicional: Fil
Pinheiro, Jaques Morelenbaum, Thomas Rohrer
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