sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Golpe contra Dilma não foi golpe, mas foi imoral

Dilma foi absolvida das acusações por não ter causado dano ao erário

 Regina Duarte, uma apóstola da neodireita, nunca se casou, embora tenha vivido com cinco homens (não ao mesmo tempo) e tido filhos. Isso possibilitou que a "namoradinha do Brasil", solteira de fato, continuasse recebendo pensão do pai militar no valor de quase 7 mil reais. Não é ilegal, mas algumas pessoas poderiam dizer que é imoral, porque na prática ela estaria "casada", vivendo uniões estáveis.

O exemplo de Regina Duarte remete à velha discussão sobre o que é legal, mas também imoral. O impedimento de Dilma Roussef em 2016 foi absolutamente legal. O pedido de impeachment foi aceito pela Câmara (à época presidida por Eduardo Cunha). Foi analisado, votado e aprovado. Encaminhado ao Senado, que fez a votação sob a presidência de um ministro do Supremo Tribunal Federal. E Dilma foi impedida de continuar ocupando seu cargo. 

Tudo legal. Não teve cabo, soldado e jipe dando golpe. A tramitação do processo de impeachment obedeceu toda uma cadeia de etapas todas elas legais. Quem lê os editoriais do "Estadão" tem a absoluta certeza que foi tudo certo, nos conformes da lei. 

Só que todo esse processo foi imoral. Foi imoral, porque a então presidente Dilma não tinha cometido qualquer crime. Eleita com 54 milhões de votos, batendo seu adversário Aécio Neves, Dilma foi impedida de continuar na Presidência não por ter violado normas orçamentárias, mas por falta de sustentação política. 

Quem afirma isso não sou eu. Longe disso. É o caríssimo ministro do STF, Luís Roberto Barroso. 

Para a esquerda e para o atual presidente Luiz Inácio Lula da Silva houve um golpe de estado para derrubá-la. Lula fez esta afirmação durante visita recente ao Uruguai. 

Do ponto de vista legal, não houve golpe, mas o instrumento jurídico foi usado de forma imoral, para afastar uma presidente eleita democraticamente pelo voto popular. 

Se você quiser chamar essa manobra jurídica, política, pintada com cores legalistas de "golpe", não serei eu quem irá contestá-lo. 

É legal os juízes e promotores receberem "auxílios". O juiz mora em determinada cidade e mesmo assim recebe "auxílio moradia". É legal, mas acredito que a maioria da população brasileira considera imoral. Assim como a gente ergue a sobrancelha ao ouvir falar em "auxílio paletó", "auxílio mudança", carro com chofer, férias de 60 dias, sabendo que um estudo da Rede Pessan, de dezembro de 2022, informou que 33 milhões de brasileiros não se alimentam adequadamente. Ou seja, passam fome.  

O nepotismo é ilegal, mas - se fosse deputado - poderia nomear a esposa de um colega deputado, se ele também nomeasse a minha mulher. É um jogo de "ganha-ganha". Eu contrato; e o meu colega também. Não é ilegal, mas certamente é muito imoral.

Trair a namorada não é ilegal. Não tem qualquer lei que proíba traí-la, mas é imoral. 

CEOs e presidentes de organizações ganham toneladas de dinheiro na forma de "bônus". Seus subordinados têm dificuldade de pagar o aluguel da casa, por causa dos baixos salários. Não é ilegal os executivos encherem a pança de grana, mas é imoral.

Com a saída de Dilma, o vice-presidente Michel Temer (chamado por Lula de "golpista") assumiu a Presidência e aprovou a lei 13.467/2017, que visava reformar as leis trabalhistas. Depois que a nova lei trabalhista fosse aprovada, haveria tantos empregos, mas tantos empregos em tão grande número, que talvez fosse preciso importar mão de obra dos países vizinhos.

Só que não foi isso que aconteceu. Fechamos 2022 com quase 10 milhões de desempregados (9,9 milhões para ser exato, segundo o IBGE). Na prática, a "nova lei trabalhista" acertou uma bala de prata no coração do sindicalismo ao tornar a contribuição sindical não obrigatória. A lei Temer mexeu em 200 pontos da antiga CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). Foi um míssil ultrassônico russo sobre o poder dos sindicatos. 

Depois de Temer, vieram quatro anos do mais aterrorizante pesadelo. Não foi Temer quem disse, mas poderia ter sido: "Depois de mim, o dilúvio".

Em tempo: Dilma foi absolvida pelo Tribunal Regional Federal no ano passado que não viu "dano ao erário", em razão da suposta "pedalada fiscal".     

quinta-feira, 26 de janeiro de 2023

Saber da desgraça yanomami por visita oficial dá saudades de "Realidade"

Esta imagem reflete a realidade do abandono dos yanomami

Não tinha ideia da dimensão da tragédia. Foi só depois de uma visita oficial do atual presidente que tomei conhecimento da desgraça yanomami. Índios morrendo de fome. Esqueléticos, doentes, abandonados à própria sorte, circundados pelos criminosos do garimpo, 99 crianças mortas de subnutrição e doenças diversas no ano passado. 

Com o devido respeito às vitimas do holocausto, parecia que estava vendo aqueles documentários de soldados aliados, chegando em Auschwitz. Gente tão fraca, com tanta fome, que era incapaz de ficar em pé sozinha. Cenário de horror. 

Era adolescente quando comecei a ler "Realidade", uma revista mensal, publicada pela editora Abril de 1966 a 1976. Foi por causa de "Realidade" que decidi ser repórter. Esperava impaciente a chegada da revista nas bancas para comprar o exemplar e lê-la do início ao fim.

A revista trazia grandes reportagens, histórias sensacionais, abordava assuntos delicados e apostava todas as suas fichas no repórter que muitas vezes narrava os fatos, que tinha vivido, em primeira pessoa. As fotos eram excepcionais e formavam uma dupla imbatível com a narrativa. 

A matéria de maior impacto para mim foi a de José Hamilton Ribeiro, que perdeu parte da perna, com a explosão de uma granada, durante uma cobertura da guerra do Vietnã. Com o Ato Institucional Número 5, baixado em 13 de dezembro de 1968, pela Ditadura Militar, a censura quebrou as pernas da publicação. Toda a edição era obrigada a passar por censura prévia.

Passados quase 60 anos, ainda me recordo de reportagens marcantes: os caçadores de caranguejos, uma excursão frango com farofa na Praia Grande, o dia a dia de um trabalhador de fábrica. 

Estou falando da revista "Realidade", porque fiquei pensando em como decaiu a produção de reportagens especiais. Como pode o público saber da situação dos yanomami somente depois de uma visita oficial de um presidente? Como esse assunto não entrou antes em pauta? Por que as empresas jornalísticas importantes não enviaram repórteres a esse local, para trazer a informação do que ocorria com os indígenas? 

Temos exemplos mais recentes dessa falta de apetite jornalístico. O caso mais emblemático da política recente brasileira; a reportagem mais contundente e corrosiva publicada sobre os desvios da Lava Jato, mostrando que havia um juiz parcial em conluio com promotores para condenar, sem provas, o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, que concorria à Presidência em 2018; esta reportagem excepcional não foi produzida por um jornalista brasileiro. 

Seu autor é o americano Glenn Greenwald, ganhador do Prêmio Pulitzer. Greenwald baseou-se nas informações obtidas por um hacker, que interceptou conversas telefônicas entre os promotores e o juiz da Lava Jato. As conversas mostravam que o juiz orientava, instruía, direcionava a ação dos promotores, visando a condenação de Lula. A série de reportagens publicadas por Greenwald foi apelidada de Vaza Jato, numa brincadeira semântica com a Lava Jato.

Não é apenas a mídia impressa que atravessa fase de restrições, com limitações de viagens e cobertura localizada. A mídia eletrônica vai pelo mesmo caminho. Narradores e comentaristas de futebol passaram a fazer seu trabalho diretamente do estúdio de TV, acompanhando as partidas por um telão. Nem sempre foi assim. Em 2002, o jornalista Tim Lopes foi assassinado por traficantes. Produtor emérito, Tim Lopes trouxe imagens escandalosas de traficantes fazendo uma "feirinha" das drogas na entrada de uma favela. Foi capturado pelos criminosos ao realizar reportagem sobre exploração sexual na Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro.

Como faz falta o grande texto. A matéria de impacto. A foto extraordinária. Saudades da "Realidade".     

 

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

A lorota do "cobertor curto"

A divulgação dos gastos ganhou repercussão nacional

 O Brasil vive uma discrepância histórica, mais conhecida como a lorota do cobertor curto. Dezenas de ministros, centenas de governadores, uma leva de presidentes, prefeitos e outras autoridades sempre recorrem à essa metáfora. De acordo com essa versão dos gastos públicos, o governo (seja ele municipal, estadual ou federal) não pode investir em projetos de interesse da população, em razão do "cobertor curto". A arrecadação nunca é suficiente. Falta sempre dinheiro. "Até gostaríamos de realizar essa obra, mas, vocês sabem, o cobertor é curto. Não temos dinheiro suficiente", eles costumam justificar,

E aí a gente, nós os infelizes pagadores de impostos, descobrimos que um ex-presidente gastou 27 milhões e 600 mil reais com o seu "cartão corporativo" (a informação anterior era de 21 milhões de reais, mas foi depois atualizada). A discriminação dos gastos exibidos no cartão do ex-presidente deixa os ingênuos com o cabelo em pé: dinheirama exorbitante jogada pelo ralo em padarias, hotéis de luxo, restaurantes, lanchonetes e até uma compra em um centro espírita. 

O tio do pavê diria que a divulgação dos gastos do cartão corporativo do ex-presidente seria "a ponta do iceberg". Na realidade, o tio do pavê está certo. O que a gente não vê parece uma imensa montanha de dinheiro público se erguendo sobre o orçamento governamental.

Séries, exibidas pelo streaming, vindas da Dinamarca, Suécia e Noruega mostram o primeiro-ministro, o presidente e funcionários de alto escalão do governo indo trabalhar de bicicleta ou usando o transporte público. Por que, aqui, nesse país de miséria sufocante, o mesmo não acontece?  

Aqui ocorre o contrário. Sempre que o sujeito entra no estamento aristocrático da sociedade brasileira (quando se torna político, ou integrante do Judiciário ou ainda do Legislativo)  passa a ter carro - e até chofer, às vezes - oferecido pelo poder público. 

As benesses não param aí: apartamento funcional, supersalários, estabilidade, penduricalhos que elevam de forma estratosférica os rendimentos. Tem categoria com direito a dois meses de férias. Auxílio moradia mesmo quando o servidor mora na própria cidade. É um deus nos acuda de mordomias e benefícios que fariam jus, se o Brasil fosse um país com IDH semelhante ao suíço, que lidera o ranking.

Só que não, diria o tio do pavê. O Brasil está lá embaixo no IDH. Ocupa a 87ª posição. O País é desigual. A infraestrutura lastimável (abundam estradas esburacadas). Rios poluídos e infectos. Enchentes. Ocupações ilegais. Moradias em estado de risco permanente. Transporte público nas metrópoles virou agonia. Sem falar que os miseráveis, os que não têm casa, rendimento, aqueles sem lugar nenhum na sociedade, encontram-se agora, neste momento, caídos na sarjeta. Caídos literalmente. Não se trata de linguagem figurada. A gente até desvia deles, educadamente, quando caminha por São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife etc.

Este mês desembolsei quase 2 mil reais no pagamento do IPVA e licenciamento. Meu carro é popular e tão econômico no combustível como o avarento de Charles Dickens. Depois de pagar o IPVA, saio de casa e topo com uma estrada esburacada. É buraco a dar com pau. Mesmo. Sem exagero. Então, qual é o meu retorno de pagador de impostos? 

"Nenhum", diria o tio do pavê. "Você é um trouxa que paga imposto e não recebe coisa alguma em troca." 

Essa parece ser a principal desgraça do brasileiro trabalhador e remediado: ele paga para não ter serviços. Ele paga os impostos e o esperado retorno do governo é uma sonora banana ("bras d'honneur", segundo os franceses), daquela que se afrontava os desafetos. O dinheiro é usado e bem usado pelo estamento aristocrata. Para eles, não vai faltar lagosta, camarão, vinho espumante e carro blindado, pagos pelo contribuinte. 

Nesse ponto, sabe-se lá por que, me lembrei de Ana Moser. Vai começar uma polêmica que desviará a gente do foco, que deveria ser o fim da miséria e da desigualdade. A ministra dos Esportes, Ana Moser, ao ser entrevistada, recentemente, disse que jogar videogame não é esporte. É entretenimento. 

A fala da ministra provocou descontentamento em muita gente. Um certo Casimiro (achei que fosse o jogador, mas não é) foi entrevistado por dezenas de jornalistas, o que demonstra que o sujeito tem muito a dizer ao mundo. Casimiro, qualificado como "streamer", disse o seguinte ao GE:

"Tu pode ter a sua opinião que quiser. Tu só não pode fazer duas coisas. Um: desrespeitar a parada. E dois: mostrar uma ignorância f... no comentário. Isso não dá (...) O comentário foi grotesco e grosseiro, na minha opinião, porque (a ministra) parecia que não sabia o que estava falando. 'Ah, o eSport não é imprevisível'. Não sabe o que está falando. Esse comentário, só esse, já é uma m... (...) O bagulho que me desagrada é o simples fato de que é um comentário arcaico. A forma como ela (a ministra) fala. Beleza que você não quer colocar o eSport na pasta do esporte, você vai colocar em que pasta? Porque tem que ter investimento, tem que ter. É muito grande, pô. Não pode tratar como se fosse uma m..."

Um garoto com o console de videogame na mão, afundado na poltrona de sua casa, tomando refrigerante e comendo salgadinho, jogando dia e noite, matando imaginariamente soldados inimigos, enfiado no Mortal Kombat, Grand Theft Auto, Madworld, esse garoto, sinceramente, estaria praticando esporte?

É a mesma coisa que o aposentado naufragado em sua poltrona, vendo série atrás de série, dizer que ele não é um sedentário, em busca de obesidade, diabetes e uns cem tipos de câncer, mas um notável esportista. 

Ana Moser está correta: eSport não tem qualquer relação com esporte. Esporte é quando a gente corre, sua, grita, faz gol, comemora, chuta a bola, acerta a bolinha com a raquete. Isso é esporte. Jogar videogame é apenas entretenimento.

Viu como a gente estava discutindo algo sério, como desigualdade econômica e miséria, e acabou mergulhando no debate do sexo dos anjos. A vida é assim. A gente corre atrás do que tem pouca importância e esquece o fundamental. Me dá licença agora que vou assistir a minha série preferida na Netflix.       

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

Brasília teve sua "queda da Bastilha"

 

Capa do New York Times de 9 de janeiro repercutiu o ataque terrorista em Brasília

Em 1789, a França vivia momentos de turbulência. O rei Luís 16 mantinha a população em estado de miserabilidade, enquanto o equivalente à "sociedade civil organizada" da época se organizava para derrubar a monarquia e instituir um governo republicano. 

Foi criada a Assembleia Nacional Constituinte que se opunha ao rei e elaborava nova legislação, com decretos e medidas que reduziam o poder monárquico. Entre essas medidas, a burguesia em ascensão passou a boicotar o pagamento de impostos ao rei.

Em 14 de julho daquele ano, os insurgentes, que usavam bandeiras tricolores nas cores vermelha, branca e azul, dirigiram-se ao hospital dos Inválidos. Ocuparam o local para pegar as armas dos soldados, que estavam internados. 

De posse das armas, foram em direção à Bastilha, uma antiga prisão, que simbolizava a repressão do "ancien régime". Invadiram a cadeia e se apropriaram de barris de pólvora, ali armazenados. A Bastilha veio abaixo e com ela o monarca e seus cortesãos. Foi criada uma Guarda Nacional, que passou a ocupar prédios públicos e tomar o poder de fato. 

O passo seguinte foi cortar a cabeça, literalmente, do rei Luís 16, de sua esposa Maria Antonieta e outras 40 mil pessoas. Luís 16 perdeu a cabeça na "praça da Revolução". Hoje, rebatizada de Place de la Concorde, próxima do Champs Élysées.

A Revolução Francesa teve o sucesso esperado ao depor um regime fracassado, sem apoio popular. A partir de Paris, a revolução espalhou-se pelo restante da França e os insurgentes venceram a queda de braço. Surgiu a figura do "citoyen", o cidadão, aquele que podia votar, que possuía inabaláveis direitos civis e políticos. Até hoje, o francês se orgulha de sua cidadania, de ter se transformado no país do "direito dos homens".

Ontem, Brasília teve seu dia de "queda da Bastilha". Milhares de opositores ao governo Lula, que estavam acampados no Distrito Federal, em estado de sublevação crônica, decidiram tomar o seu "hospital dos Inválidos" e derrubar a sua "Bastilha". 

Armados de porretes, como uma tribo de neandertais, invadiram o prédio do Supremo Tribunal Federal, do Congresso (Câmara e Senado) e até a sede do Executivo, o belíssimo Palácio do Planalto, onde é o escritório do principal servidor público brasileiro, o caríssimo presidente da República.

Os neoneandertais comemoravam a sua vitória de Pirro: "Tomamos o STF", gritavam, em comemoração nas redes sociais. "O Congresso é nosso", reproduziam vídeos em que os corredores do Senado e da Câmara eram devastados pela horda. No Palácio do Planalto, o grupo de demolidores destruiu obras de arte, mobiliário, janelas, equipamentos eletrônicos e roubou armas e munição.

A Polícia Militar do Distrito Federal foi acusada de fazer "corpo mole", permitindo a devastação e a ocupação momentânea dos prédios dos três poderes.

O governador do DF, Ibaneis Rocha, foi afastado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e o presidente Lula decretou intervenção federal no DF. O secretário de Segurança do DF, Anderson Torres, estava em férias nos EUA e deve continuar por lá, depois de ter sido exonerado.

Hoje, enquanto escrevo, soldados do Exército desmontam o que resta do acampamento dos opositores em Brasília. Cerca de 1.500 pessoas estão presas e passam por interrogatório na sede da Polícia Federal.

Em outubro de 2018, Eduardo Bolsonaro, filho do então presidente Jair Bolsonaro, declarou que bastavam "um jipe, um cabo e um soldado", para "fechar o STF".

Os golpistas de ontem não recorreram ao cabo, nem ao soldado, nem ao jipe para atacar o prédio do STF. Eles foram a pé. Arrombaram a porta. Espalharam papéis. Roubaram a toga do ministro Alexandre de Moraes. Quebraram vidraças e foram embora, tocados, mais tarde, pelas forças da ordem. 

A comemoração dos amalucados era patética: "Tomamos o STF!", "Ocupamos o Congresso!", "Estamos nos Palácio do Planalto!", como se os prédios vazios naquela tarde de domingo de verão e sem a devida proteção policial fossem o poder de fato. Eram apenas espaços vazios. Sem o poder que emana das instituições, porque o STF, o Congresso e a Presidência continuavam ocupando o poder efetivo, mesmo que seus integrantes não estivessem dentro dos prédios.

Por uma falta de compreensão do que são as instituições, por culpa de uma mentalidade menor que afronta o mínimo do bom senso, eles achavam que ocupando os prédios estariam tomando o poder e recolocando na Presidência quem eles consideravam que seria o candidato mais legítimo.

Algemados, fotografados, fichados, eles foram sendo levados para a Polícia Federal. São muitas acusações que pesam sobre suas costas: tentativa de golpe, destruição do patrimônio público, promoção do terrorismo, agressão, roubo...Pobres diabos que acreditavam ser heróis e se viram no espelho como os vilões da história. 

A opinião pública espera que a força da lei caia como uma bigorna sobre a cabeça desse pessoal cabeça oca. Será fácil identificá-los. Nem precisaria de perícia, nem de DNA e impressões digitais. Eles mostravam a cara nas redes sociais. Gravavam a si próprios no processo de demolição do patrimônio público:

https://g1.globo.com/politica/noticia/2023/01/08/veja-pessoas-que-participaram-de-invasao-do-congresso-do-stf-e-do-planalto.ghtml

Os jornais não economizaram nas tintas em seus editoriais. Os invasores foram chamados de "imbecis", "criminosos", "boçais", "vândalos", "bandos". O ataque em massa aos prédios foi classificado, em um editorial, de "A Marcha dos Idiotas".

Os telejornais do grupo Globo classificavam os doidivanas como "terroristas", "golpistas" e "bolsonaristas". 

Robert Proctor, autor de "Agnotology: the making and unmaking of ignorance", defende a tese de que "ignorância não é apenas ausência de conhecimento", mas é também -e principalmente - "aquilo que não se quer que as pessoas conheçam". O autor discorre ainda sobre o conhecimento que "desaparece" ou, simplesmente, se torna "invisível". Proctor cita vários exemplos: a indústria do cigarro ("a dúvida é nosso produto"), mudança climática, negativismo ambiental, entre outros.

No caso da mente bolsonarista, a lavagem cerebral, que nos Estados Unidos tinha como um dos vetores as igrejas evangélicas, durante a queda do governo Trump e a invasão do Capitólio, aqui no Brasil os pastores evangélicos parecem ter contribuído para esconder aquilo que os fiéis não precisassem saber. 

Um vizinho, que é evangélico, recebeu durante a eleição para presidente em 2022 um folheto apócrifo com excertos de vários projetos legislativos. Para o fiel, no caso, o folheto era a expressão da verdade. E que verdade era essa? Se Lula fosse eleito, todas as pessoas seriam obrigadas a usar o mesmo banheiro; a maconha seria vendida na porta de casa; crianças menores de 10 anos seriam submetidas a operações de mudança de sexo. E por aí seguia o texto, apavorando o pobre fiel.

Nos Estados Unidos, o FBI investigou o perfil dos invasores do Capitólio e descobriu que a maioria nunca tinha tido problema com a Justiça. Eram pessoas comuns e tinham como semelhança a frequência a igrejas evangélicas, que radicalizaram o discurso.  

Sem querer adiantar sobre a investigação em curso, acredito que a Polícia Federal vai chegar à mesma conclusão do FBI. Os detidos são pessoas com ficha policial tímida. Gente que acredita que a Terra é plana, que vacina é fatal, que Lula iria acabar com o Pix, que Lula e o PT são comunistas. Gente que acreditou no discurso, da então primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que proclamava, em encontros com mulheres cristãs, que o Partido dos Trabalhadores veio para "matar, roubar e destruir a nossa nação". Gente que foi manipulada por empresários golpistas, que financiaram a infraestrutura dos acampamentos.

Neste fim de tarde, 1.500 pessoas estão detidas, acampamentos bolsonaristas golpistas foram desfeitos, milhares ocuparam a avenida Paulista em São Paulo em defesa da democracia. A mídia mundial não fala de outra coisa. E o Brasil, mais uma vez, passa vergonha. 

 


                  

quinta-feira, 5 de janeiro de 2023

Deslizes mentais da Terra em transe

Bolsonaristas derrotados na eleição buscam refúgio nas portas de quartéis

O comportamento é esquisito. Imagine viver 21 anos em um país, em que era proibido votar para presidente. Um país atrasado, pobre, miserável, governado por militares. Havia um sujeito desse mesmo governo que dizia qual filme, peça de teatro, livro, música você poderia assistir, ler ou ouvir. Os opositores eram presos, torturados e mortos. Sério, seria legal viver em um país assim? Valeria a pena ter isso de volta?

O regime militar direitista naufragou. Foi incapaz de resolver os problemas da inflação, da desigualdade de renda, do desenvolvimento. Foi um fracasso colossal. 

Em uma pesquisa de campo feita em 1982/83, em um localidade distante 50 quilômetros de Belo Horizonte, o pesquisador topava com uma realidade atroz: pinguelas, ruas enlameadas, crianças sem escola, adultos sem atendimento médico, desemprego generalizado, miséria substancial. 

Veio a redemocratização. A inflação foi controlada. E quando esse mesmo pesquisador retornou àquela localidade - 25 anos passados - descobriu que a democracia tinha feito um bem danado: estradas vicinais asfaltadas, não havia mais pinguelas, as crianças tinham escolas, atendimento médico gratuito em postos de saúde e emprego a dar com pau. 

Qual é o mecanismo mental que cria essa ideia de que durante a Ditadura Militar o País era melhor? Que distorção maluca seria capaz de produzir disparates de sinapses desse porte, dessa incongruência abissal?

Não são todos, é claro. Há muitos brasileiros inteligentes, capazes de ler, escrever e até fazer contas matemáticas. Mas, em geral, o brasileiro parece ter desenvolvido uns dez por cento de sua capacidade mental. 

Há erros que são reproduzidos diariamente e ninguém parece se dar conta disso. O telejornal da manhã mostra um repórter em um bairro submerso pela enchente. O profissional caminha pelas ruas com meio metro de água e traz os depoimentos sofridos dos moradores. 

Quem já foi nesse mesmo bairro, loteado e ocupado ilegalmente, sabe que as casas foram erguidas em uma área abaixo do nível do rio. Toda vez que chove em demasia - e em um país tropical chove muito em determinados meses - o rio fica cheio e transborda. Transborda sobre as casas que estão em um nível inferior. A administração municipal, se ela existisse de fato, deveria retirar os moradores de lá. Demolir as casas e transformar o local em área de preservação. 

Para onde iriam os moradores? Entre uma invasão estranha e outra, o MTST, de Boulos, fez, pelo menos, um levantamento de vários prédios que estão vazios no centro da cidade. Bastaria para o caríssimo prefeito ter vontade política e desapropriar esses imóveis e relocar as pessoas, que vivem em encostas, áreas de risco extremo e aqueles que sofrem enchentes por estarem em local indevido. Mas é tudo lento. Tudo precisa de um projeto, precisa de um estudo, precisa de algo que só vai retardar o que é urgente.

O mesmo acontece com os motociclistas. Todos os dias - repito, todos os dias - um motociclista trafegando em alta velocidade pelo corredor de trânsito vai se chocar contra um veículo e se ferir com seriedade. Morre um diariamente. Então, hoje, dia 5 de janeiro, morreu ou vai morrer um motociclista. Quando não morre, fica estatelado no asfalto. São chamados os bombeiros, o Samu, os agentes de trânsito. A avenida, a marginal ficam paralisadas. Os carros, caminhões e ônibus se amontoam. E, daqui a pouco, vai acontecer novamente. É uma repetição do erro que deixaria um marciano em dúvida, se aqui temos vida inteligente.

Aquelas pessoas que votaram em um candidato e ele perdeu a eleição ficaram inconformadas. É ruim. É triste ver o nosso candidato ser derrotado. Entre sentir tristeza e sair de casa e se dirigir a uma porta de quartel pedindo que haja um golpe militar, vai uma distância daqui a Lua. A manifestação é livre, é verdade. Todos têm o direito de se manifestar, mas pedir a volta da censura, da tortura, do atraso, do morte de opositores, da desigualdade extrema... Não há lógica mental nesse procedimento. Não é, com o devido respeito aos manifestantes, uma prova de inteligência.

Se o governo militar tivesse sido uma época de ouro, sem miseráveis, sem violência, com cem por cento da população ganhando dez salários mínimos mensais, sem inflação, com total respeito aos valores democráticos; a gente até entenderia o que eles estariam reivindicando. A Ditadura Militar deu errado. Foram 21 anos jogados no lixo. Vinte e um anos de atraso, de violência, de arbítrio. 

Outra falha grave mental, que seria o quod erat demonstrandum da nossa falta de inteligência crônica, é sempre a questão do lixo. Jogado nas ruas de qualquer jeito, o lixo vai para a sarjeta, é levado pela água para a boca de lobo e acontece algo que ninguém esperava, veja você: o lixo vai entupir a rede de esgoto.

Nossa, sério? Aconteceu isso mesmo? O lixo entupiu a rede de esgoto? Então, a água da chuva não pôde escoar, voltou à superfície, inundou a rua, arrastou carros, ônibus, caminhões e afogou passantes. 

Retorna-se ao telejornal: o repórter está parado diante de um ponto de descarte de lixo. Tem sofás, fogões, restos de comida, sobras de obra e lixo malcheiroso, com moscas, baratas e escorpiões passeando ali por cima. A prefeitura é acionada. Chega um caminhão. Retira a imundície. O repórter vai embora. E, no dia seguinte, novos restos de sofá, de fogões, restos de comida, sobras de obras e lixo malcheiroso retornarão impunemente ao mesmo local. 

É uma maldição que deve ter sido engendrada por Zeus. Aquele mesmo que condenou Sísifo a arrastar a pedra montanha acima.   

   
 


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