Capa do New York Times de 9 de janeiro repercutiu o ataque terrorista em Brasília |
Em 1789, a França vivia momentos de turbulência. O rei Luís 16 mantinha a população em estado de miserabilidade, enquanto o equivalente à "sociedade civil organizada" da época se organizava para derrubar a monarquia e instituir um governo republicano.
Em 14 de julho daquele ano, os insurgentes, que usavam bandeiras tricolores nas cores vermelha, branca e azul, dirigiram-se ao hospital dos Inválidos. Ocuparam o local para pegar as armas dos soldados, que estavam internados.
De posse das armas, foram em direção à Bastilha, uma antiga prisão, que simbolizava a repressão do "ancien régime". Invadiram a cadeia e se apropriaram de barris de pólvora, ali armazenados. A Bastilha veio abaixo e com ela o monarca e seus cortesãos. Foi criada uma Guarda Nacional, que passou a ocupar prédios públicos e tomar o poder de fato.
O passo seguinte foi cortar a cabeça, literalmente, do rei Luís 16, de sua esposa Maria Antonieta e outras 40 mil pessoas. Luís 16 perdeu a cabeça na "praça da Revolução". Hoje, rebatizada de Place de la Concorde, próxima do Champs Élysées.
A Revolução Francesa teve o sucesso esperado ao depor um regime fracassado, sem apoio popular. A partir de Paris, a revolução espalhou-se pelo restante da França e os insurgentes venceram a queda de braço. Surgiu a figura do "citoyen", o cidadão, aquele que podia votar, que possuía inabaláveis direitos civis e políticos. Até hoje, o francês se orgulha de sua cidadania, de ter se transformado no país do "direito dos homens".
Ontem, Brasília teve seu dia de "queda da Bastilha". Milhares de opositores ao governo Lula, que estavam acampados no Distrito Federal, em estado de sublevação crônica, decidiram tomar o seu "hospital dos Inválidos" e derrubar a sua "Bastilha".
Armados de porretes, como uma tribo de neandertais, invadiram o prédio do Supremo Tribunal Federal, do Congresso (Câmara e Senado) e até a sede do Executivo, o belíssimo Palácio do Planalto, onde é o escritório do principal servidor público brasileiro, o caríssimo presidente da República.
Os neoneandertais comemoravam a sua vitória de Pirro: "Tomamos o STF", gritavam, em comemoração nas redes sociais. "O Congresso é nosso", reproduziam vídeos em que os corredores do Senado e da Câmara eram devastados pela horda. No Palácio do Planalto, o grupo de demolidores destruiu obras de arte, mobiliário, janelas, equipamentos eletrônicos e roubou armas e munição.
A Polícia Militar do Distrito Federal foi acusada de fazer "corpo mole", permitindo a devastação e a ocupação momentânea dos prédios dos três poderes.
O governador do DF, Ibaneis Rocha, foi afastado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes e o presidente Lula decretou intervenção federal no DF. O secretário de Segurança do DF, Anderson Torres, estava em férias nos EUA e deve continuar por lá, depois de ter sido exonerado.
Hoje, enquanto escrevo, soldados do Exército desmontam o que resta do acampamento dos opositores em Brasília. Cerca de 1.500 pessoas estão presas e passam por interrogatório na sede da Polícia Federal.
Em outubro de 2018, Eduardo Bolsonaro, filho do então presidente Jair Bolsonaro, declarou que bastavam "um jipe, um cabo e um soldado", para "fechar o STF".
Os golpistas de ontem não recorreram ao cabo, nem ao soldado, nem ao jipe para atacar o prédio do STF. Eles foram a pé. Arrombaram a porta. Espalharam papéis. Roubaram a toga do ministro Alexandre de Moraes. Quebraram vidraças e foram embora, tocados, mais tarde, pelas forças da ordem.
A comemoração dos amalucados era patética: "Tomamos o STF!", "Ocupamos o Congresso!", "Estamos nos Palácio do Planalto!", como se os prédios vazios naquela tarde de domingo de verão e sem a devida proteção policial fossem o poder de fato. Eram apenas espaços vazios. Sem o poder que emana das instituições, porque o STF, o Congresso e a Presidência continuavam ocupando o poder efetivo, mesmo que seus integrantes não estivessem dentro dos prédios.
Por uma falta de compreensão do que são as instituições, por culpa de uma mentalidade menor que afronta o mínimo do bom senso, eles achavam que ocupando os prédios estariam tomando o poder e recolocando na Presidência quem eles consideravam que seria o candidato mais legítimo.
Algemados, fotografados, fichados, eles foram sendo levados para a Polícia Federal. São muitas acusações que pesam sobre suas costas: tentativa de golpe, destruição do patrimônio público, promoção do terrorismo, agressão, roubo...Pobres diabos que acreditavam ser heróis e se viram no espelho como os vilões da história.
A opinião pública espera que a força da lei caia como uma bigorna sobre a cabeça desse pessoal cabeça oca. Será fácil identificá-los. Nem precisaria de perícia, nem de DNA e impressões digitais. Eles mostravam a cara nas redes sociais. Gravavam a si próprios no processo de demolição do patrimônio público:
Os jornais não economizaram nas tintas em seus editoriais. Os invasores foram chamados de "imbecis", "criminosos", "boçais", "vândalos", "bandos". O ataque em massa aos prédios foi classificado, em um editorial, de "A Marcha dos Idiotas".
Os telejornais do grupo Globo classificavam os doidivanas como "terroristas", "golpistas" e "bolsonaristas".
Robert Proctor, autor de "Agnotology: the making and unmaking of ignorance", defende a tese de que "ignorância não é apenas ausência de conhecimento", mas é também -e principalmente - "aquilo que não se quer que as pessoas conheçam". O autor discorre ainda sobre o conhecimento que "desaparece" ou, simplesmente, se torna "invisível". Proctor cita vários exemplos: a indústria do cigarro ("a dúvida é nosso produto"), mudança climática, negativismo ambiental, entre outros.
No caso da mente bolsonarista, a lavagem cerebral, que nos Estados Unidos tinha como um dos vetores as igrejas evangélicas, durante a queda do governo Trump e a invasão do Capitólio, aqui no Brasil os pastores evangélicos parecem ter contribuído para esconder aquilo que os fiéis não precisassem saber.
Um vizinho, que é evangélico, recebeu durante a eleição para presidente em 2022 um folheto apócrifo com excertos de vários projetos legislativos. Para o fiel, no caso, o folheto era a expressão da verdade. E que verdade era essa? Se Lula fosse eleito, todas as pessoas seriam obrigadas a usar o mesmo banheiro; a maconha seria vendida na porta de casa; crianças menores de 10 anos seriam submetidas a operações de mudança de sexo. E por aí seguia o texto, apavorando o pobre fiel.
Nos Estados Unidos, o FBI investigou o perfil dos invasores do Capitólio e descobriu que a maioria nunca tinha tido problema com a Justiça. Eram pessoas comuns e tinham como semelhança a frequência a igrejas evangélicas, que radicalizaram o discurso.
Sem querer adiantar sobre a investigação em curso, acredito que a Polícia Federal vai chegar à mesma conclusão do FBI. Os detidos são pessoas com ficha policial tímida. Gente que acredita que a Terra é plana, que vacina é fatal, que Lula iria acabar com o Pix, que Lula e o PT são comunistas. Gente que acreditou no discurso, da então primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que proclamava, em encontros com mulheres cristãs, que o Partido dos Trabalhadores veio para "matar, roubar e destruir a nossa nação". Gente que foi manipulada por empresários golpistas, que financiaram a infraestrutura dos acampamentos.
Neste fim de tarde, 1.500 pessoas estão detidas, acampamentos bolsonaristas golpistas foram desfeitos, milhares ocuparam a avenida Paulista em São Paulo em defesa da democracia. A mídia mundial não fala de outra coisa. E o Brasil, mais uma vez, passa vergonha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário