A divulgação dos gastos ganhou repercussão nacional |
O Brasil vive uma discrepância histórica, mais conhecida como a lorota do cobertor curto. Dezenas de ministros, centenas de governadores, uma leva de presidentes, prefeitos e outras autoridades sempre recorrem à essa metáfora. De acordo com essa versão dos gastos públicos, o governo (seja ele municipal, estadual ou federal) não pode investir em projetos de interesse da população, em razão do "cobertor curto". A arrecadação nunca é suficiente. Falta sempre dinheiro. "Até gostaríamos de realizar essa obra, mas, vocês sabem, o cobertor é curto. Não temos dinheiro suficiente", eles costumam justificar,
E aí a gente, nós os infelizes pagadores de impostos, descobrimos que um ex-presidente gastou 27 milhões e 600 mil reais com o seu "cartão corporativo" (a informação anterior era de 21 milhões de reais, mas foi depois atualizada). A discriminação dos gastos exibidos no cartão do ex-presidente deixa os ingênuos com o cabelo em pé: dinheirama exorbitante jogada pelo ralo em padarias, hotéis de luxo, restaurantes, lanchonetes e até uma compra em um centro espírita.
O tio do pavê diria que a divulgação dos gastos do cartão corporativo do ex-presidente seria "a ponta do iceberg". Na realidade, o tio do pavê está certo. O que a gente não vê parece uma imensa montanha de dinheiro público se erguendo sobre o orçamento governamental.
Séries, exibidas pelo streaming, vindas da Dinamarca, Suécia e Noruega mostram o primeiro-ministro, o presidente e funcionários de alto escalão do governo indo trabalhar de bicicleta ou usando o transporte público. Por que, aqui, nesse país de miséria sufocante, o mesmo não acontece?
Aqui ocorre o contrário. Sempre que o sujeito entra no estamento aristocrático da sociedade brasileira (quando se torna político, ou integrante do Judiciário ou ainda do Legislativo) passa a ter carro - e até chofer, às vezes - oferecido pelo poder público.
As benesses não param aí: apartamento funcional, supersalários, estabilidade, penduricalhos que elevam de forma estratosférica os rendimentos. Tem categoria com direito a dois meses de férias. Auxílio moradia mesmo quando o servidor mora na própria cidade. É um deus nos acuda de mordomias e benefícios que fariam jus, se o Brasil fosse um país com IDH semelhante ao suíço, que lidera o ranking.
Só que não, diria o tio do pavê. O Brasil está lá embaixo no IDH. Ocupa a 87ª posição. O País é desigual. A infraestrutura lastimável (abundam estradas esburacadas). Rios poluídos e infectos. Enchentes. Ocupações ilegais. Moradias em estado de risco permanente. Transporte público nas metrópoles virou agonia. Sem falar que os miseráveis, os que não têm casa, rendimento, aqueles sem lugar nenhum na sociedade, encontram-se agora, neste momento, caídos na sarjeta. Caídos literalmente. Não se trata de linguagem figurada. A gente até desvia deles, educadamente, quando caminha por São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife etc.
Este mês desembolsei quase 2 mil reais no pagamento do IPVA e licenciamento. Meu carro é popular e tão econômico no combustível como o avarento de Charles Dickens. Depois de pagar o IPVA, saio de casa e topo com uma estrada esburacada. É buraco a dar com pau. Mesmo. Sem exagero. Então, qual é o meu retorno de pagador de impostos?
"Nenhum", diria o tio do pavê. "Você é um trouxa que paga imposto e não recebe coisa alguma em troca."
Essa parece ser a principal desgraça do brasileiro trabalhador e remediado: ele paga para não ter serviços. Ele paga os impostos e o esperado retorno do governo é uma sonora banana ("bras d'honneur", segundo os franceses), daquela que se afrontava os desafetos. O dinheiro é usado e bem usado pelo estamento aristocrata. Para eles, não vai faltar lagosta, camarão, vinho espumante e carro blindado, pagos pelo contribuinte.
Nesse ponto, sabe-se lá por que, me lembrei de Ana Moser. Vai começar uma polêmica que desviará a gente do foco, que deveria ser o fim da miséria e da desigualdade. A ministra dos Esportes, Ana Moser, ao ser entrevistada, recentemente, disse que jogar videogame não é esporte. É entretenimento.
A fala da ministra provocou descontentamento em muita gente. Um certo Casimiro (achei que fosse o jogador, mas não é) foi entrevistado por dezenas de jornalistas, o que demonstra que o sujeito tem muito a dizer ao mundo. Casimiro, qualificado como "streamer", disse o seguinte ao GE:
"Tu pode ter a sua opinião que quiser. Tu só não pode fazer duas coisas. Um: desrespeitar a parada. E dois: mostrar uma ignorância f... no comentário. Isso não dá (...) O comentário foi grotesco e grosseiro, na minha opinião, porque (a ministra) parecia que não sabia o que estava falando. 'Ah, o eSport não é imprevisível'. Não sabe o que está falando. Esse comentário, só esse, já é uma m... (...) O bagulho que me desagrada é o simples fato de que é um comentário arcaico. A forma como ela (a ministra) fala. Beleza que você não quer colocar o eSport na pasta do esporte, você vai colocar em que pasta? Porque tem que ter investimento, tem que ter. É muito grande, pô. Não pode tratar como se fosse uma m..."
Um garoto com o console de videogame na mão, afundado na poltrona de sua casa, tomando refrigerante e comendo salgadinho, jogando dia e noite, matando imaginariamente soldados inimigos, enfiado no Mortal Kombat, Grand Theft Auto, Madworld, esse garoto, sinceramente, estaria praticando esporte?
É a mesma coisa que o aposentado naufragado em sua poltrona, vendo série atrás de série, dizer que ele não é um sedentário, em busca de obesidade, diabetes e uns cem tipos de câncer, mas um notável esportista.
Ana Moser está correta: eSport não tem qualquer relação com esporte. Esporte é quando a gente corre, sua, grita, faz gol, comemora, chuta a bola, acerta a bolinha com a raquete. Isso é esporte. Jogar videogame é apenas entretenimento.
Viu como a gente estava discutindo algo sério, como desigualdade econômica e miséria, e acabou mergulhando no debate do sexo dos anjos. A vida é assim. A gente corre atrás do que tem pouca importância e esquece o fundamental. Me dá licença agora que vou assistir a minha série preferida na Netflix.
Nenhum comentário:
Postar um comentário