quinta-feira, 26 de abril de 2018
Coisas que odeio - filmes que têm perseguição de carros
Confesso que sou radical. Estou no cinema. Começa cena de perseguição de carro, não tenho dúvida. Levanto e vou embora. Sem discussão. Perseguição de carro é tão manjada, tão manjada, tão insuportável, que chegou ao meu limite. Quem foge não é o carro perseguido, sou eu.
Lembro de uma tarde/noite estava nas proximidades da rua Santo Antônio, Centro de São Paulo. Chovia. O trânsito havia chegado àquele momento da imobilidade desperada. Ninguém andava. Faróis, no amarelo piscante. Motoristas buzinavam por inércia. Passageiros desciam dos ônibus, porque pressentiam que andando chegariam mais rapidamente a seu destino.
Joguei o carro em uma travessa e estacionei. Passei por um carro antigo (parecia um velhusco Dodge Dart) que estava ligado com as portas e janelas fechadas. Sem ninguém dentro. O motor funcionava. Sem chaves no contato. Um mistério que até hoje não consegui solucionar. Um senhor olhava pelas janelas, tentando entender o que acontecia. "Cada coisa que a gente vê", ele comentou, quando passei por ele.
Lembro que atravessei o viaduto Major Quedinho e estava nas proximidades da Biblioteca Mário de Andrade quando a chuva apertou. Entrei na Galeria Metrópole, onde antes havia o Cine Metrópole. Paguei o ingresso e entrei, sem querer saber que filme estavam exibindo.
Meio molhado, com o saco cheio por não conseguir chegar em casa, por causa do trânsito, meio faminto, fiquei esperando o início do filme. Quando aquilo começou me dei conta que os céus estavam me castigando de forma implacável. Era um filme novo, Velozes e Furiosos. A droga nem tinha roteiro. Era só carro correndo atrás de carro. Levantei e bati em retirada. Chega um momento da vida em que você reconhece quando foi definitivamente derrotado pelas circunstâncias.
A minha ojeriza à perseguição de carros vai além. Também não suporto perseguição de naves espaciais, lanchas, bicicletas, motos e trens.
Filme americano policial repete também uma cena à exaustão. Os agentes chegam ao nome de um suspeito. Alguém levanta o endereço do sujeito e lá vai uma equipe de policiais para capturá-lo. Ficam diante de um prédio decadente, caindo aos pedaços. Os policiais arrombam a porta e o suspeito pula a janela e foge. Começa a perseguição. Geralmente, o policial consegue agarrar o infeliz, depois de tropeçar em latas de lixo, entrar em clubes de strip-tease (com rápida aparição de garotas seminuas, enroscadas em postes de pole dance), saltar sobre cercas...O suspeito é preso. Levado para a delegacia e...Surpresa! Não era ele.
O pior é ver filmes e séries francesas ou de outros países europeus utilizarem o mesmo recurso desgastado da prisão do suspeito que foge. Imersos em clichês.
Em filme policial americano, o detetive é divorciado, transa com a suspeita, bebe e fuma, é violento, briga com o parceiro. O chefe dele vai enquadrá-lo e o pobre detetive vai ser obrigado a entregar o distintivo e a arma no meio do episódio. Mesmo assim continuará investigando o crime até resolvê-lo, sendo readmitido com glórias na polícia. Estamos presos para sempre em clichês.
terça-feira, 24 de abril de 2018
O bairro Vila Clementino nasceu em função do Matadouro
O Matadouro Municipal de Vila Clementino (foto) foi inaugurado oficialmente no dia 5 de janeiro de 1887. O prédio localiza-se no Largo Senador Raul Cardoso, 207, próximo à Avenida Sena Madureira, e foi tombado pelo Patrimônio Histórico Arquitetônico, Artístico e Turístico do Estado em 1983.
Coube ao matadouro uma importante tarefa histórica: serviu como foco de desenvolvimento para uma região ainda não ocupada. Na placa de mármore, que ainda hoje pode ser vista nas paredes do prédio, há a anotação histórica:
“Construído no quatriênio de 1883 a 1887/Presidente da Câmara Dr. Manoel Antonio Dutra Rodrigues/Architecto - Alberto Kuhlmann”
Em 27 de maio de 1885, enquanto o prédio ainda estava sendo construído, um ramal da linha de bonde veio ligar a Estação Vila Mariana ao matadouro. A Vila Mariana era, nesse período, núcleo incipiente com população dispersa em pequenas chácaras, onde o binômio Matadouro-Ferrovia foi decisivo na sua urbanização e povoamento.
A construção do matadouro é um período, considerado pelos arquitetos, como a “segunda construção de São Paulo”. Isto porque o prédio, revestido com tijolos aparentes, marca o fim das construções em taipa de pilão (parede de barro ou de cal e areia, com estacas de tábuas de madeira). Sua inauguração foi um grande acontecimento, com muita pompa, festa e discursos, como relata o Correio Paulistano, de 6 de janeiro de 1887:
“Realizou-se ontem a inauguração do novo matadouro, sito no arrabalde de Villa Marianna. Às duas da tarde, partiu da Rua Vergueiro um comboio da Companhia Carris de Ferro de Santo Amaro, conduzindo o excelentíssimo presidente da província, vereadores, representantes da imprensa, outras pessoas gradas e uma banda de música, chegando todos ao novo matadouro às três horas e um quarto...".
O memorialista Pedro Masarolo descreve, com riqueza de detalhes, a agitação que tomava conta das ruas do bairro, após a inauguração do matadouro:
“As boiadas para o corte vinham do Ipiranga e outras da Lapa. As que vinham do Ipiranga eram descarregadas nessa estação e depois, pela Estrada do Vergueiro, Ruas Conde de Irajá e Domingos de Moraes, entravam pela Sena Madureira até as mangueiras (currais), que ficavam próximas ao Matadouro; ali, aguardando o dia do sacrifício”.
A passagem das boiadas pelo bairro era sempre um acontecimento. Os bois, já cansados pela viagem de trem, vinham pela estrada espavoridos como uma avalanche. O povo, ao grito (“a boiada”), corria e se escondia atrás do primeiro cercado que encontrasse à frente ou entrava na primeira porta que achasse aberta.
No meio da boiada, eram comuns bois bravos e muitos casos houve de acidentes com populares. Vinham eles num tropel e, em meio à poeira, os boiadeiros a cavalo de um para outro lado esporeando os animais, gritando e brandindo os chicotes. Este espetáculo dava a impressão de uma legião de demônios saídos do inferno. Os bois que vinham da Lapa também eram trazidos da mesma forma. Ao desembarcar na estação, eram trazidos para os lados do cemitério, e dali seguindo a Estrada das Corujas e os campos do Pedro Criste. Depois de atravessarem a rua Teodoro Sampaio, entravam na estrada do Bibi e depois, pelo Ibirapuera, chegavam às mangueiras (currais).
O prédio do matadouro era uma boa construção para aqueles tempos. Paredes com tijolos à vista, bem assentados e até com arte, davam bom aspecto. As partes internas eram amplas e as instalações de matança mais modernas que as do antigo. Depois do abate, a carne verde era também transportada para o mesmo tendal do Largo São Paulo. Agora, esse transporte era feito de trem até a estação de São Joaquim e, dali então, em carroções apropriados até o tendal. Ao lado do matadouro, pouco tempo depois, foi construído também o curtume, de onde saía um córrego de água sempre tinta de sangue (o córrego do Sapateiro).
Nas imediações e sobre o prédio do matadouro, havia sempre muitos urubus. Como se pode imaginar, em toda aquela área sentia-se o mau cheiro proveniente do matadouro e do curtume. No local do curtume, foi construída agora uma escola do Senai.
O largo em frente ao matadouro (hoje, Senador Raul Cardoso) era bem grande. No meio dele, uma paineira e um bambual. Alguns botequins e ambulantes faziam seu comércio. Ali, se reuniam operários do matadouro e do curtume, com suas roupas com marcas de sangue, facas de trabalho na cintura. Não eram figuras agradáveis à vista. Marchantes, tripeiros, carroceiros e mesmo mulheres e crianças. Cachorros, então, havia ali bandos deles.
Os bois eram sacrificados a golpes de lança na nuca por um magarefe, que ficava no alto de uma plataforma sobre o corredor, para onde os bois eram tangidos. Ali, o animal derreava já sobre um carro que então era transportado para o salão de carneio. O lugar da matança era público, qualquer pessoa podia assistir. Muita gente vinha da cidade beber sangue de boi, pois acreditava-se, então, que pessoas anêmicas ou fracas teriam com aquela prática grandes melhoras, ou poderiam até obter a cura de vez.
Os italianos que se instalaram na Vila Mariana eram quase todos oriundos da Província de Salerno, e mais especificamente daquela parte montanhosa, conhecida por Cilento (...). Todos ou quase todos se entregaram de corpo e alma, seja como donos ou como empregados, ao comércio de miúdos, e passaram a constituir a classe dos tripeiros.
O comércio de miúdos tornou-se um negócio lucrativo. (...) Moradores da época relatam que a violência imperava entre os tripeiros, com muitos crimes sem razão sendo praticados por uma palavra, um mal-entendido, enfim...
A Prefeitura, segundo depoimentos de antigos moradores, interessava-se em civilizar e urbanizar a região. Por esse motivo, cedia os terrenos para que fossem pagos em prazos dilatados, de até 30 anos.
Os primeiros terrenos foram cedidos, no perímetro em que estava centralizado o novo matadouro, para funcionários públicos municipais, como é o caso do major Eleutério Borges de Azevedo Lagoa (hoje, uma das principais artérias do bairro), que era o administrador do matadouro em 1891, e também proprietário de um lote de terreno nas proximidades do prédio recém inaugurado. Outro proprietário de lote também foi homenageado post morten, dando seu nome a uma rua: Leandro Dupré, igualmente funcionário público.
Em 1891, quatro anos depois do Matadouro Municipal de Vila Mariana ter sido inaugurado, um grupo de funcionários solicita aumento de vencimentos ao presidente da Câmara Municipal, Clementino de Souza e Castro, que assim se pronunciou: “Indico como solução ao pedido de aumento de ordenado feito por diversos empregados desta intendência, que se defira o pedido, aumentando-se-lhes 15% sobre o que recebem".
O aumento de salário, ao que tudo indica, deixou os funcionários radiantes. Eles prontamente, manifestaram-se, homenageando o presidente da Câmara, solicitando, em um abaixo-assinado, que fosse dado o nome de Clementino ao local, onde tinham seus lotes de terra.
Em sessão solene, no dia 5 de dezembro de 1891, resolveu-se aprovar a petição:
“Requerimento assinado por cento e vinte sete cidadãos pedindo que seja dado o nome de Vila Clementino à parte da Villa Marianna em que estão situados os lotes de terrenos que lhes foram concedidos”. O Conselho deliberou deferir a petição.
A Vila Clementino apareceu pela primeira vez no mapa em 1897, na Planta Geral da Cidade, organizada pelo intendente de obras Gomes Cardim. Nesta planta, observa-se a mesma delimitação de hoje.
(texto produzido em 1982, publicado pela Prefeitura Municipal de São Paulo, monografia premiada no concurso História dos Bairros de São Paulo)
quinta-feira, 19 de abril de 2018
Trecho do livro Pancake - um romance água com blush
"O
aeroporto Charles-De-Gaulle não é apenas o lugar onde você desembarca de um
avião. O meio ambiente multiconstruído, multidimensional, hiper-edificado é a
mensagem. Com suas escadas-rolantes gigantes e os túneis de acrílico, os
painéis publicitários suntuosos, as grifes se impondo com a ferocidade de um
tapa no rosto, a magnitude do espaço construído, o aeroporto Charles-De-Gaulle
é um recado claro de que você desembarcou não em uma cidade comum, uma
capitalzinha européia qualquer, mas que você está colocando os pés em um
território sagrado, você finalmente chegou em Paris.
Vic moveu-se a bordo de uma sandália dourada
básica de salto alto, jeans obscenamente grudados na bunda e nas coxas e
camiseta branca básica Hang-ten (aquela dos pezinhos). Gotas de Paloma Picasso
nos punhos e atrás do pescoço. Óculos escuros não poderiam faltar, depois de
uma viagem mal-dormida. É nessas horas que o supérfluo é essencial.
Nada a
falar da viagem. Umas 12 horas de encolhimento, comida pasteurizada, ruído
irritante das turbinas e a sensação de que as pernas estavam sempre esbarrando
na poltrona dianteira, posicionando-se onde não deveriam estar.
O vizinho
de poltrona era...Quem era mesmo? Alguém de paletó cinza e óculos. Usava
gravata? O pior que usava. Que cor era a gravata? Eles não se falaram. Houve cumprimentos
cordiais no início da viagem. Pedidos de desculpas na hora de levantar para ir
ao banheiro. E só.
Nenhum
problema na alfândega, principalmente, porque ela saiu por uma porta lateral,
longe da vista das autoridades.
É uma
dessas ocorrências inexplicáveis. Está certo: ela entregou seu passaporte para
um funcionário e ouviu o carimbo bater com força na página esverdeada.
As malas
eram muito grandes, muito desajeitadas, largas demais, pesadas demais. Colocou
aquilo tudo num carrinho e foi em direção à saída. Procurou o melhor caminho,
aquele com menos gente e malas. Desviou de um, desviou de outro, abriu uma
porta, passou por um corredor estreito. Abriu outra porta e voilà: o saguão de saída do
aeroporto.
Por isso
aconteciam tantos atentados. A segurança falha. Vic nem se deu conta, que
passou pela alfândega francesa sem ser percebida. Poderia estar transportando
armas de destruição em massa, agentes químicos poderosos, sementes malignas,
espécies nativas que destruiriam toda a vida vegetal francesa.
Felizmente,
para os franceses, suas malas traziam quilos de sapatos, sandálias, moules,
vestidos e maquiagem. Havia ali xampu, em quantidade considerável para
massagear o couro cabeludo do exército americano; cremes para os pés, para as
mãos, para o pescoço, contra as rugas, contra as estrias e a celulite; óleos
para endurecer a bunda e amaciar o couro. Não que não houvesse esses produtos
na França, mas por que arriscar.
Entrou no
táxi e mostrou o endereço, anotado em um papelzinho.
O
motorista perguntou qual caminho ela preferia e Vic respondeu: “Le moins cher et le plus vite”.
Quando
chegou na Passage des Fleurs, no 17ºeme, escurecia. As luzes amareladas
derramavam-se sobre os prédios cinzentos. A rua era estreita, ladeada por
construções de três até cinco andares. Todas pareciam ter um jardim na frente.
Vic desceu.
Pagou o taxista. E juntou as malas na frente da casa de número 116.
Olhou a
campainha e havia uma meia dúzia de nomes, cada um escrito sob uma tampinha de
plástico. Num deles, se lia: “Ferrara, Ângela”.
Vic
pressionou o botão.
“Oui?”,
disse o aparelho.
“Sou eu,
Vic.”
“Estou
descendo.”
Vic
virou-se e olhou para a rua. “Cristo”, pensou com lágrimas nos olhos. “Estou
viva e em Paris.”
segunda-feira, 16 de abril de 2018
Por que a série Merlí é bem-sucedida
A apresentação começa com uma mosca sobrevoando as páginas de uma aula em preparação. A mosca, no caso, é uma referência a Sócrates, o filósofo que perturbava a sociedade ateniense. Enquanto a mosca vai voando de página em página, toca uma música que parece mesmo um inseto voando próximo da nossa orelha, aquele zumbido irritante. A música que acompanha o sobrevoo da mosca foi escolhida a dedo (ou ouvido). É de um russo Korsakov (1844-1908) e chama-se O voo do besouro.
Assim tem início a série Merlí, que mostra o dia a dia de um professor de filosofia em uma escola pública de Barcelona (Espanha). Exibida pela TV3 da Catalunha, a série chegou à Netflix e tem encantado educadores brasileiros. Ouvi no mês passado pela Rádio USP o professor Renato Janine Ribeiro mencionar o ensino da filosofia no ensino médio, fazendo referência à Merlí. Meu dileto amigo, o professor e jornalista Arquimedes Pessoni, também mencionou o seriado em um post no Facebook. Em conversa com amigos, volta e meia, alguém menciona a série, utilizando o termo de varejo "imperdível".
O roteirista Héctor Lozano disse que baseou-se em um educador que enfrentou problemas semelhantes ao Merlí da ficção. Lozano também usou sua experiência pessoal para construir o personagem Bruno, que é um adolescente homossexual, com dificuldade para viver sua sexualidade. Bruno não consegue "sair do armário", como se diz popularmente no Japão e alhures.
Merlí, que tem nome parecido com o do mágico, é vivido pelo ator Francesc Orella. A interpretação de Orella fica próxima da perfeição. Em nenhum momento, você vê um ator fazendo o papel de um professor de filosofia. Ele incorpora o personagem e dá um show de interpretação. Os atores adolescentes não ficam atrás. São todos convincentes, capazes de nos fazer mergulhar em suas dores, prazeres, descobertas, aflições e alegrias. É difícil não se emocionar, não se deixar envolver pelo ritmo da história.
A escola pública da Espanha tem poucos alunos na sala de aula. O lugar é limpo. Tem recursos, mas os professores reclamam dos salários baixos, da falta de recursos, do orçamento restrito. A Espanha - país do primeiro mundo - parece longe de uma Dinamarca, de uma Suécia, quando se fala em ensino público. Ainda que, para quem conhece a escola pública brasileira, aquele colégio da série pareça um sonho ambicioso.
O roteiro de Héctor Lozano aborda problemas contemporâneos e próximos de nossa realidade: desemprego entre os jovens, corrupção na política, falta de recursos para a educação, dificuldade em aceitar a diversidade, drogas, gravidez na adolescência...É um leque amplo, tratado sempre com muito carinho e atenção pelo roteirista. Até a independência da Catalunha não fica de fora.
Cada seriado tem o nome de um filósofo. Discute-se o tema filosófico que aparece genialmente envolvido pela trama. Sócrates, Platão, Freud, Marx intitulam os episódios. Filósofos atuais não ficam de fora, como Judith Butler e Slavoz Zizek ("não agir, é deixá-los agir").
Judith esteve no ano passado no Brasil e seu seminário foi alvo de ataques neonacionalistas. Eles acusavam o evento de ser um "simpósio comunista" e a autora foi qualificada, entre outras coisas, de "pedófila". Judith ganhou notoriedade e chamou sobre si o ódio dos conservadores brasileiros ao discutir questões de gênero, categorias "masculina e feminina" e feminismo.
Como se vê, a série é muito atual, tendo sido lançada na Espanha em 2015. O professor Merlí está desempregado, foi despejado de casa, é divorciado e vai morar com a mãe, uma atriz idosa, mas ainda paparicada pela crítica e público. Sem colocação no mercado de trabalho, ele se recusa a buscar outra atividade, aguardando a vez de retornar ao ensino. Surge uma vaga em uma escola e lá vai Merlí transformar-se na mosca socrática da sociedade catalã.
Merlí esquiva-se da burocracia. Enfrenta o poder localizado. Vive filosoficamente questionando a realidade. Não fica restrito à sala de aula, mas leva sua vocação para a rua, para as casas de seus alunos, envolvendo-se em problemas pessoais. Merlí é o cara.
Comparações com outras séries são inevitáveis. Merlí é muito parecido com Rita, da série dinamarquesa. Ambos os personagens não se enquadram no sistema, mas ambos igualmente são competentes e adorados por seus alunos. Não cabe aqui dizer se Rita é melhor ou pior que Merli. Gostei das duas séries e - como em uma época da minha vida fui professor - me identifiquei com os dois educadores.
Ainda sobre séries vou voltar ao tema, porque descobri que assisto a essas mininovelas, desde a minha tenra infância. Rin-tin-tin, O Zorro, Combate, Perdidos no Espaço...Por que será que tanta gente gosta de séries e tantos ficam meio perdidos quando elas terminam? Talvez isso seja tema para uma próxima reflexão. Veremos.
Grande abraço!
terça-feira, 10 de abril de 2018
Trecho do livro Complexo de Servo - um romance sobre a submissão
1979
"O chefe do Departamento Fotográfico chamava-se Lambari. Tinha a pele escamosa, os cabelos como nadadeiras e um olhar viciado, de peixe morto. Na realidade, Lambari era o apelido, mas ninguém o conhecia pelo nome de batismo. Foi o próprio Lambari quem deu um armário enferrujado para Beto guardar suas câmaras e lentes. Lambari ofereceu-lhe também um filme rebobinado, “com umas 30 poses”, e o despachou para São Bernardo.
“Os
milicos vão matar o Lula e fazer uma faxina. Vai ser legal”, avisou Lambari.
Lula
era o apelido de Luiz Inácio da Silva, o líder sindical de São Bernardo.
Lambari não tinha ódio ideológico de Lula, ou algo assim parecido. Era apenas o
desejo de ver sangue escorrendo.
Era o acontecimento mais importante daquele dia. Por que
destinar uma pauta tão preferencial para um iniciante? “Eles querem me queimar,
por causa do meu tio”, Beto concluiu. Queriam testá-lo. A bem da verdade, mais
provavelmente, fritá-lo.
No instante seguinte, Beto já estava em São Bernardo , sob a
cor de chumbo daquela cidade que reunia as principais montadoras do país. No
ABC – região formada pelas cidades Santo André, São Bernardo e São Caetano –
eram feitos os carros, as peças dos carros e os acessórios. Os operários vinham
do Nordeste, principalmente. Moravam em favelas, em casas precárias edificadas
sobre áreas invadidas de mananciais. Destruíam as sobras da Mata Atlântica.
Viviam nas ventosas dos tentáculos do Monstro.
Com
a responsabilidade esmagando sua cabeça, preocupado com o tio, Beto circulava
pelo Paço Municipal de São Bernardo. Eram 14h. O lugar estava cheio de gente.
Chegavam notícias confusas: “Lula foi preso”, “Lula está com o prefeito”, “A
polícia cercou a casa do Lula”.
No
Teatro Cacilda Becker, a peça em cartaz chamava-se Quando as Máquinas Param.
Uma
coincidência temporal. Há 10 dias, os metalúrgicos mantinham sua greve,
enfrentavam a Ditadura Militar com bravura e determinação. Eram um anacronismo
histórico. Ressuscitavam a luta de classes, numa época em que ninguém mais
acreditava nisso.
Beto
tinha lido na Newsweek que o líder dos metalúrgicos, o Lula, era “o
herói da classe operária brasileira”.
Mas
onde estava o Lula?
Os
operários chegavam cada vez em maior número. Tomavam conta da praça. Gritavam
em coro: “A greve continua! A greve continua!” e “Lula! Lula! Lula!” Beto
encontrava-se no olho do furacão com um filme rebobinado. Tinha chance de fazer
umas 30 fotos, sendo que as duas primeiras e as duas últimas quase sempre
queimavam em um filme rebobinado. No cômputo geral, eram 26 fotos, apenas.
Chegavam mais informações desencontradas. Lula tinha sido
cassado e o Sindicato dos Metalúrgicos caíra sob intervenção federal.
Havia
20 mil operários na praça. Vinte mil expressões diferentes e Beto com um filme rebobinado na máquina. 26 poses.
A informação agora era confirmada: Lula tinha sido realmente cassado e o
Sindicato dos Metalúrgicos seria ocupado por interventores. A greve poderia
acabar naquela tarde.
Sob
o céu de chumbo, chegaram cem peruas C-14 da polícia. Elas rodearam a praça com
as sirenes ligadas e as luzes piscando. Vieram também os cavalos, os cães
pastores e os caminhões espinha-de-peixe, trazendo a tropa de choque.
Um
helicóptero sobrevoou o Paço Municipal de São Bernardo. Dentro do helicóptero
dava para ver um soldado do exército armado de metralhadora.
Um
carro de som servia de palanque. Líderes metalúrgicos diziam que a manifestação
era pacífica, que ninguém deveria reagir à provocação.
A
polícia cercava a praça. Um metalúrgico com chapéu da Volks circulava
impaciente. Era um cara baixinho, forte, híbrido de índios e negros. Ele andava
com o peito estufado, os braços em curva como se fosse uma xícara de duas asas.
De
onde Beto se encontrava, era possível ver os carros de choque Brucutu se
aproximando, ao lado dos carros dos bombeiros, dos cavalarianos e dos cães
pastores da Polícia Militar.
A
tropa de choque preparava as bombas de gás lacrimogêneo, aprumando os escudos e
os cassetetes.
Os
metalúrgicos comprimiam-se, tentando ficar nas proximidades do prédio da
Prefeitura. Naquele momento, a polícia já tinha cercado toda a praça. Não havia
mais para onde fugir.
Uma
repórter da legendária TV Tupi gravava uma passagem para a sua matéria. Ela
explicava que a praça estava cercada, que o ato público ia começar naquele
momento e dizia que os metalúrgicos estavam tensos e apreensivos. “Com o cu na
mão”, Beto completou, em pensamento.
A
praça tinha um estilo modernoso, repleto de concreto, com esqueletos de árvores
e grama encaixados nos vãos do cimento. O céu de chumbo ficou mais escuro.
Começou a garoar e a ventar forte. Fazia frio.
Os
uniformes dos policiais eram cinzentos, assim como os prédios em volta.
Beto
fez umas quatro ou cinco fotos dos policiais avançando. Bateu a câmara na
cabeça de um operário. O sujeito gritou de dor. Anos e anos fotografando noivos
de bolo atrapalham a gente muito mais do que se imagina.
O
vento estava mais forte agora. A garoa descia suja e ácida. Ele limpou a lente
com uma flanela. Usava uma capa plástica vermelha, fechada até o pescoço e com
um capuz de frade capuchinho sobre a cabeça. Era o chapeuzinho vermelho da
fotografia. Um atirador louco, entre os policiais, fatalmente o escolheria como
alvo. Era a própria capa do toureiro.
“Vou
tomar um tiro na espinha e ficar aleijado”, Beto pensou.
O cadáver...Aquela cueca
sobressaindo-se...A perda da dignidade e do orgulho...
Ordens
confusas partiam de lideranças esporádicas: “O governador Paulo Maluf, que deu
ordem para reprimir a manifestação, vai ser o responsável pelo que ocorrer hoje
nessa praça”, gritava o carro de som.
Os
operários berravam: “Abaixo a Ditadura! Abaixo a Ditadura!” E também: “A greve
continua! A greve continua!”. E ainda: “Lula! Lula! Lula!”
A primeira bomba foi disparada. A gritaria generalizou-se. As
palavras de ordem foram substituídas por frases partidas:
“Calma,
gente, calma.”
“Não
pisa na moça.”
“Abaixa
a cabeça.”
“Eles
estão disparando contra a gente.”
“Eles
vêm vindo.”
Beto
viu a repórter da TV Tupi falando no microfone e, em seguida, viu uma fumaça na
parte debaixo da saia dela. A repórter começou a voar pela praça.
Ela
foi deslocada por uns 10
metros e caiu sentada, ainda segurando o microfone,
tentando entender o que tinha acontecido.
O
cinegrafista botou a câmara no chão e começou a enfiar o dedo no ouvido.
Beto
fez umas dez fotos da correria. Os operários tentavam escapar do cerco. As C-14
com as sirenes ligadas entravam na praça. Gente caía, gente era pisoteada.
O operário com o chapéu da Volks apareceu dentro da câmara
de Beto com o rosto ensangüentado.
“Quebraram a minha
cabeça”, ele gritava. Os braços em xícara estavam agora na cabeça, tentando
estancar o sangue.
Os fotógrafos casamenteiros jamais acreditariam naquilo.
Os
policiais a cavalo empurraram os metalúrgicos para o meio da praça. A maioria
dos operários corria em direção ao prédio da Prefeitura. A passagem era
apertada. Não daria vazão para tanta gente.
Beto
encontrou uma grade e passou o braço esquerdo ao redor dela. Ficou ali em cima,
empoleirado.
Sua
lente viu vinte homens envoltos por uma nuvem branca, proveniente das bombas. A
fuga dos grevistas era desordenada. Os guardas batiam em tudo que se movia.
Cavalos, cães e viaturas eram jogados sobre os metalúrgicos.
O
fotógrafo olhou para a repórter da TV e viu que ela ainda não tinha se
levantado. O cinegrafista, sentado no chão, esfregava os olhos. Devia estar
momentaneamente cego e surdo por causa da bomba.
Beto
saltou do poleiro e foi em busca de uma posição melhor. “Devo ter ainda umas três
fotos”, calculou, enquanto corria.
Um
metalúrgico, próximo de Beto, levantou a mão e gritou. Beto parou de correr.
Olhou para o operário e virou a cabeça. Havia uma “parede” marrom ao seu lado.
O ar foi riscado por um instrumento cortante e um negócio duro bateu com força
no rosto do fotógrafo do Jornal Falido.
Beto
viu literalmente estrelas. Uma constelação de pequenos pontos luminosos.
Levantou a cabeça e viu o guarda a cavalo ao seu lado. O policial armado com um
cassetete gigante.
Beto
gritou:
“Eu
sou jornalista! Não faço greve!”
O
guarda decidiu procurar outra vítima e se afastou com seu cavalo. Beto pegou a
flanela no bolso e botou em cima do ferimento. Lembrou-se do sindicalista morto
pela manhã, diante da Metalforjado. Andava e repetia: “Eu sou jornalista. Não
faço greve”.
Sangue por todo
lado.
Os
homens gastavam todas as bombas. Era uma liquidação. Queima de estoque. O gás
lacrimogêneo espalhava-se pelo ar frio, daquele dia sujo.
A
manifestação tinha terminado.
Beto
sentou-se ao lado da repórter. A perna da moça tinha se transformado em uma das
chagas de Cristo. Apesar do ferimento, ela continuava trabalhando, escrevia sem
parar.
“O
que me fode é saber que os caras vão cortar tudo na edição”, dizia a repórter
para o cinegrafista, que não podia ouvi-la, porque ainda esfregava os ouvidos.
Beto entrou na Prefeitura. Procurou um banheiro e se lavou. O ferimento era
superficial. “Mas dói pra caramba.”
Preocupado
com o corte, o fotógrafo perdia a dimensão do que acabara de presenciar. Aquele
tinha sido o maior confronto entre a Ditadura Militar e a classe operária. Uma
luta campal. Um massacre. Aquele pessoal esmagado reuniria forças e se
aglutinaria em um partido político, que passaria a representar a esquerda, ou o
que sobraria dela dez anos depois, quando caísse o Muro de Berlim. Mas o que
importava naquele momento era o corte na cabeça.
“Batismo de fogo”, disse Lambari, quando ele chegou no
jornal, com o crânio remendado, e o filme rebobinado para ser revelado."
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