segunda-feira, 16 de abril de 2018

Por que a série Merlí é bem-sucedida


     A apresentação começa com uma mosca sobrevoando as páginas de uma aula em preparação. A mosca, no caso, é uma referência a Sócrates, o filósofo que perturbava a sociedade ateniense. Enquanto a mosca vai voando de página em página, toca uma música que parece mesmo um inseto voando próximo da nossa orelha, aquele zumbido irritante. A música que acompanha o sobrevoo da mosca foi escolhida a dedo (ou ouvido). É de um russo Korsakov (1844-1908) e chama-se O voo do besouro.

       Assim tem início a série Merlí, que mostra o dia a dia de um professor de filosofia em uma escola pública de Barcelona (Espanha). Exibida pela TV3 da Catalunha, a série chegou à Netflix e tem encantado educadores brasileiros. Ouvi no mês passado pela Rádio USP o professor Renato Janine Ribeiro mencionar o ensino da filosofia no ensino médio, fazendo referência à Merlí. Meu dileto amigo, o professor e jornalista Arquimedes Pessoni, também mencionou o seriado em um post no Facebook.  Em conversa com amigos, volta e meia, alguém menciona a série, utilizando o termo de varejo "imperdível".

       O roteirista Héctor Lozano disse que baseou-se em um educador que enfrentou problemas semelhantes ao Merlí da ficção. Lozano também usou sua experiência pessoal para construir o personagem Bruno, que é um adolescente homossexual, com dificuldade para viver sua sexualidade. Bruno não consegue "sair do armário", como se diz popularmente no Japão e alhures.

       Merlí, que tem nome parecido com o do mágico, é vivido pelo ator Francesc Orella. A interpretação de Orella fica próxima da perfeição. Em nenhum momento, você vê um ator fazendo o papel de um professor de filosofia. Ele incorpora o personagem e dá um show de interpretação. Os atores adolescentes não ficam atrás. São todos convincentes, capazes de nos fazer mergulhar em suas dores, prazeres, descobertas, aflições e alegrias. É difícil não se emocionar, não se deixar envolver pelo ritmo da história.

       A escola pública da Espanha tem poucos alunos na sala de aula. O lugar é limpo. Tem recursos, mas os professores reclamam dos salários baixos, da falta de recursos, do orçamento restrito. A Espanha - país do primeiro mundo - parece longe de uma Dinamarca, de uma Suécia, quando se fala em ensino público. Ainda que, para quem conhece a escola pública brasileira, aquele colégio da série pareça um sonho ambicioso. 
     
      O roteiro de Héctor Lozano aborda problemas contemporâneos e próximos de nossa realidade: desemprego entre os jovens, corrupção na política, falta de recursos para a educação, dificuldade em aceitar a diversidade, drogas, gravidez na adolescência...É um leque amplo, tratado sempre com muito carinho e atenção pelo roteirista. Até a independência da Catalunha não fica de fora.  
          
     Cada seriado tem o nome de um filósofo. Discute-se o tema filosófico que aparece genialmente envolvido pela trama. Sócrates, Platão, Freud, Marx intitulam os episódios. Filósofos atuais não ficam de fora, como Judith Butler e Slavoz Zizek ("não agir, é deixá-los agir"). 

     Judith esteve no ano passado no Brasil e seu seminário foi alvo de ataques neonacionalistas. Eles  acusavam o evento de ser um "simpósio comunista" e a autora foi qualificada, entre outras coisas, de "pedófila". Judith ganhou notoriedade e chamou sobre si o ódio dos conservadores brasileiros ao discutir questões de gênero, categorias "masculina e feminina" e feminismo. 

      Como se vê, a série é muito atual, tendo sido lançada na Espanha em 2015. O professor Merlí está desempregado, foi despejado de casa, é divorciado e vai morar com a mãe, uma atriz idosa, mas ainda paparicada pela crítica e público. Sem colocação no mercado de trabalho, ele se recusa a buscar outra atividade, aguardando a vez de retornar ao ensino. Surge uma vaga em uma escola e lá vai Merlí transformar-se na mosca socrática da sociedade catalã.

      Merlí esquiva-se da burocracia. Enfrenta o poder localizado. Vive filosoficamente questionando a realidade. Não fica restrito à sala de aula, mas leva sua vocação para a rua, para as casas de seus alunos, envolvendo-se em problemas pessoais. Merlí é o cara.

      Comparações com outras séries são inevitáveis. Merlí é muito parecido com Rita, da série dinamarquesa. Ambos os personagens não se enquadram no sistema, mas ambos igualmente são competentes e adorados por seus alunos. Não cabe aqui dizer se Rita é melhor ou pior que Merli. Gostei das duas séries e - como em uma época da minha vida fui professor - me identifiquei com os dois educadores. 

      Ainda sobre séries vou voltar ao tema, porque descobri que assisto a essas mininovelas, desde a minha tenra infância. Rin-tin-tin, O Zorro, Combate, Perdidos no Espaço...Por que será que tanta gente gosta de séries e tantos ficam meio perdidos quando elas terminam? Talvez isso seja tema para uma próxima reflexão. Veremos.

     Grande abraço!


          

     

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