quinta-feira, 19 de abril de 2018

Trecho do livro Pancake - um romance água com blush




"O aeroporto Charles-De-Gaulle não é apenas o lugar onde você desembarca de um avião. O meio ambiente multiconstruído, multidimensional, hiper-edificado é a mensagem. Com suas escadas-rolantes gigantes e os túneis de acrílico, os painéis publicitários suntuosos, as grifes se impondo com a ferocidade de um tapa no rosto, a magnitude do espaço construído, o aeroporto Charles-De-Gaulle é um recado claro de que você desembarcou não em uma cidade comum, uma capitalzinha européia qualquer, mas que você está colocando os pés em um território sagrado, você finalmente chegou em Paris.
 Vic moveu-se a bordo de uma sandália dourada básica de salto alto, jeans obscenamente grudados na bunda e nas coxas e camiseta branca básica Hang-ten (aquela dos pezinhos). Gotas de Paloma Picasso nos punhos e atrás do pescoço. Óculos escuros não poderiam faltar, depois de uma viagem mal-dormida. É nessas horas que o supérfluo é essencial.
Nada a falar da viagem. Umas 12 horas de encolhimento, comida pasteurizada, ruído irritante das turbinas e a sensação de que as pernas estavam sempre esbarrando na poltrona dianteira, posicionando-se onde não deveriam estar.
O vizinho de poltrona era...Quem era mesmo? Alguém de paletó cinza e óculos. Usava gravata? O pior que usava. Que cor era a gravata? Eles não se falaram. Houve cumprimentos cordiais no início da viagem. Pedidos de desculpas na hora de levantar para ir ao banheiro. E só.
Nenhum problema na alfândega, principalmente, porque ela saiu por uma porta lateral, longe da vista das autoridades.
É uma dessas ocorrências inexplicáveis. Está certo: ela entregou seu passaporte para um funcionário e ouviu o carimbo bater com força na página esverdeada.
As malas eram muito grandes, muito desajeitadas, largas demais, pesadas demais. Colocou aquilo tudo num carrinho e foi em direção à saída. Procurou o melhor caminho, aquele com menos gente e malas. Desviou de um, desviou de outro, abriu uma porta, passou por um corredor estreito. Abriu outra porta e voilà: o saguão de saída do aeroporto.
Por isso aconteciam tantos atentados. A segurança falha. Vic nem se deu conta, que passou pela alfândega francesa sem ser percebida. Poderia estar transportando armas de destruição em massa, agentes químicos poderosos, sementes malignas, espécies nativas que destruiriam toda a vida vegetal francesa.
Felizmente, para os franceses, suas malas traziam quilos de sapatos, sandálias, moules, vestidos e maquiagem. Havia ali xampu, em quantidade considerável para massagear o couro cabeludo do exército americano; cremes para os pés, para as mãos, para o pescoço, contra as rugas, contra as estrias e a celulite; óleos para endurecer a bunda e amaciar o couro. Não que não houvesse esses produtos na França, mas por que arriscar.
Entrou no táxi e mostrou o endereço, anotado em um papelzinho.
O motorista perguntou qual caminho ela preferia e Vic respondeu: “Le moins cher et le plus vite”. 

Quando chegou na Passage des Fleurs, no 17ºeme, escurecia. As luzes amareladas derramavam-se sobre os prédios cinzentos. A rua era estreita, ladeada por construções de três até cinco andares. Todas pareciam ter um jardim na frente.
Vic desceu. Pagou o taxista. E juntou as malas na frente da casa de número 116.
Olhou a campainha e havia uma meia dúzia de nomes, cada um escrito sob uma tampinha de plástico. Num deles, se lia: “Ferrara, Ângela”.
Vic pressionou o botão.
“Oui?”, disse o aparelho.
“Sou eu, Vic.”
“Estou descendo.”
Vic virou-se e olhou para a rua. “Cristo”, pensou com lágrimas nos olhos. “Estou viva e em Paris.”


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Humorista Leo Lins é censurado pela Justiça Federal

  Leonardo de Lima Borges Lins, o humorista condenado O início é óbvio: Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 5º, que trata...