1979
"O chefe do Departamento Fotográfico chamava-se Lambari. Tinha a pele escamosa, os cabelos como nadadeiras e um olhar viciado, de peixe morto. Na realidade, Lambari era o apelido, mas ninguém o conhecia pelo nome de batismo. Foi o próprio Lambari quem deu um armário enferrujado para Beto guardar suas câmaras e lentes. Lambari ofereceu-lhe também um filme rebobinado, “com umas 30 poses”, e o despachou para São Bernardo.
“Os
milicos vão matar o Lula e fazer uma faxina. Vai ser legal”, avisou Lambari.
Lula
era o apelido de Luiz Inácio da Silva, o líder sindical de São Bernardo.
Lambari não tinha ódio ideológico de Lula, ou algo assim parecido. Era apenas o
desejo de ver sangue escorrendo.
Era o acontecimento mais importante daquele dia. Por que
destinar uma pauta tão preferencial para um iniciante? “Eles querem me queimar,
por causa do meu tio”, Beto concluiu. Queriam testá-lo. A bem da verdade, mais
provavelmente, fritá-lo.
No instante seguinte, Beto já estava em São Bernardo , sob a
cor de chumbo daquela cidade que reunia as principais montadoras do país. No
ABC – região formada pelas cidades Santo André, São Bernardo e São Caetano –
eram feitos os carros, as peças dos carros e os acessórios. Os operários vinham
do Nordeste, principalmente. Moravam em favelas, em casas precárias edificadas
sobre áreas invadidas de mananciais. Destruíam as sobras da Mata Atlântica.
Viviam nas ventosas dos tentáculos do Monstro.
Com
a responsabilidade esmagando sua cabeça, preocupado com o tio, Beto circulava
pelo Paço Municipal de São Bernardo. Eram 14h. O lugar estava cheio de gente.
Chegavam notícias confusas: “Lula foi preso”, “Lula está com o prefeito”, “A
polícia cercou a casa do Lula”.
No
Teatro Cacilda Becker, a peça em cartaz chamava-se Quando as Máquinas Param.
Uma
coincidência temporal. Há 10 dias, os metalúrgicos mantinham sua greve,
enfrentavam a Ditadura Militar com bravura e determinação. Eram um anacronismo
histórico. Ressuscitavam a luta de classes, numa época em que ninguém mais
acreditava nisso.
Beto
tinha lido na Newsweek que o líder dos metalúrgicos, o Lula, era “o
herói da classe operária brasileira”.
Mas
onde estava o Lula?
Os
operários chegavam cada vez em maior número. Tomavam conta da praça. Gritavam
em coro: “A greve continua! A greve continua!” e “Lula! Lula! Lula!” Beto
encontrava-se no olho do furacão com um filme rebobinado. Tinha chance de fazer
umas 30 fotos, sendo que as duas primeiras e as duas últimas quase sempre
queimavam em um filme rebobinado. No cômputo geral, eram 26 fotos, apenas.
Chegavam mais informações desencontradas. Lula tinha sido
cassado e o Sindicato dos Metalúrgicos caíra sob intervenção federal.
Havia
20 mil operários na praça. Vinte mil expressões diferentes e Beto com um filme rebobinado na máquina. 26 poses.
A informação agora era confirmada: Lula tinha sido realmente cassado e o
Sindicato dos Metalúrgicos seria ocupado por interventores. A greve poderia
acabar naquela tarde.
Sob
o céu de chumbo, chegaram cem peruas C-14 da polícia. Elas rodearam a praça com
as sirenes ligadas e as luzes piscando. Vieram também os cavalos, os cães
pastores e os caminhões espinha-de-peixe, trazendo a tropa de choque.
Um
helicóptero sobrevoou o Paço Municipal de São Bernardo. Dentro do helicóptero
dava para ver um soldado do exército armado de metralhadora.
Um
carro de som servia de palanque. Líderes metalúrgicos diziam que a manifestação
era pacífica, que ninguém deveria reagir à provocação.
A
polícia cercava a praça. Um metalúrgico com chapéu da Volks circulava
impaciente. Era um cara baixinho, forte, híbrido de índios e negros. Ele andava
com o peito estufado, os braços em curva como se fosse uma xícara de duas asas.
De
onde Beto se encontrava, era possível ver os carros de choque Brucutu se
aproximando, ao lado dos carros dos bombeiros, dos cavalarianos e dos cães
pastores da Polícia Militar.
A
tropa de choque preparava as bombas de gás lacrimogêneo, aprumando os escudos e
os cassetetes.
Os
metalúrgicos comprimiam-se, tentando ficar nas proximidades do prédio da
Prefeitura. Naquele momento, a polícia já tinha cercado toda a praça. Não havia
mais para onde fugir.
Uma
repórter da legendária TV Tupi gravava uma passagem para a sua matéria. Ela
explicava que a praça estava cercada, que o ato público ia começar naquele
momento e dizia que os metalúrgicos estavam tensos e apreensivos. “Com o cu na
mão”, Beto completou, em pensamento.
A
praça tinha um estilo modernoso, repleto de concreto, com esqueletos de árvores
e grama encaixados nos vãos do cimento. O céu de chumbo ficou mais escuro.
Começou a garoar e a ventar forte. Fazia frio.
Os
uniformes dos policiais eram cinzentos, assim como os prédios em volta.
Beto
fez umas quatro ou cinco fotos dos policiais avançando. Bateu a câmara na
cabeça de um operário. O sujeito gritou de dor. Anos e anos fotografando noivos
de bolo atrapalham a gente muito mais do que se imagina.
O
vento estava mais forte agora. A garoa descia suja e ácida. Ele limpou a lente
com uma flanela. Usava uma capa plástica vermelha, fechada até o pescoço e com
um capuz de frade capuchinho sobre a cabeça. Era o chapeuzinho vermelho da
fotografia. Um atirador louco, entre os policiais, fatalmente o escolheria como
alvo. Era a própria capa do toureiro.
“Vou
tomar um tiro na espinha e ficar aleijado”, Beto pensou.
O cadáver...Aquela cueca
sobressaindo-se...A perda da dignidade e do orgulho...
Ordens
confusas partiam de lideranças esporádicas: “O governador Paulo Maluf, que deu
ordem para reprimir a manifestação, vai ser o responsável pelo que ocorrer hoje
nessa praça”, gritava o carro de som.
Os
operários berravam: “Abaixo a Ditadura! Abaixo a Ditadura!” E também: “A greve
continua! A greve continua!”. E ainda: “Lula! Lula! Lula!”
A primeira bomba foi disparada. A gritaria generalizou-se. As
palavras de ordem foram substituídas por frases partidas:
“Calma,
gente, calma.”
“Não
pisa na moça.”
“Abaixa
a cabeça.”
“Eles
estão disparando contra a gente.”
“Eles
vêm vindo.”
Beto
viu a repórter da TV Tupi falando no microfone e, em seguida, viu uma fumaça na
parte debaixo da saia dela. A repórter começou a voar pela praça.
Ela
foi deslocada por uns 10
metros e caiu sentada, ainda segurando o microfone,
tentando entender o que tinha acontecido.
O
cinegrafista botou a câmara no chão e começou a enfiar o dedo no ouvido.
Beto
fez umas dez fotos da correria. Os operários tentavam escapar do cerco. As C-14
com as sirenes ligadas entravam na praça. Gente caía, gente era pisoteada.
O operário com o chapéu da Volks apareceu dentro da câmara
de Beto com o rosto ensangüentado.
“Quebraram a minha
cabeça”, ele gritava. Os braços em xícara estavam agora na cabeça, tentando
estancar o sangue.
Os fotógrafos casamenteiros jamais acreditariam naquilo.
Os
policiais a cavalo empurraram os metalúrgicos para o meio da praça. A maioria
dos operários corria em direção ao prédio da Prefeitura. A passagem era
apertada. Não daria vazão para tanta gente.
Beto
encontrou uma grade e passou o braço esquerdo ao redor dela. Ficou ali em cima,
empoleirado.
Sua
lente viu vinte homens envoltos por uma nuvem branca, proveniente das bombas. A
fuga dos grevistas era desordenada. Os guardas batiam em tudo que se movia.
Cavalos, cães e viaturas eram jogados sobre os metalúrgicos.
O
fotógrafo olhou para a repórter da TV e viu que ela ainda não tinha se
levantado. O cinegrafista, sentado no chão, esfregava os olhos. Devia estar
momentaneamente cego e surdo por causa da bomba.
Beto
saltou do poleiro e foi em busca de uma posição melhor. “Devo ter ainda umas três
fotos”, calculou, enquanto corria.
Um
metalúrgico, próximo de Beto, levantou a mão e gritou. Beto parou de correr.
Olhou para o operário e virou a cabeça. Havia uma “parede” marrom ao seu lado.
O ar foi riscado por um instrumento cortante e um negócio duro bateu com força
no rosto do fotógrafo do Jornal Falido.
Beto
viu literalmente estrelas. Uma constelação de pequenos pontos luminosos.
Levantou a cabeça e viu o guarda a cavalo ao seu lado. O policial armado com um
cassetete gigante.
Beto
gritou:
“Eu
sou jornalista! Não faço greve!”
O
guarda decidiu procurar outra vítima e se afastou com seu cavalo. Beto pegou a
flanela no bolso e botou em cima do ferimento. Lembrou-se do sindicalista morto
pela manhã, diante da Metalforjado. Andava e repetia: “Eu sou jornalista. Não
faço greve”.
Sangue por todo
lado.
Os
homens gastavam todas as bombas. Era uma liquidação. Queima de estoque. O gás
lacrimogêneo espalhava-se pelo ar frio, daquele dia sujo.
A
manifestação tinha terminado.
Beto
sentou-se ao lado da repórter. A perna da moça tinha se transformado em uma das
chagas de Cristo. Apesar do ferimento, ela continuava trabalhando, escrevia sem
parar.
“O
que me fode é saber que os caras vão cortar tudo na edição”, dizia a repórter
para o cinegrafista, que não podia ouvi-la, porque ainda esfregava os ouvidos.
Beto entrou na Prefeitura. Procurou um banheiro e se lavou. O ferimento era
superficial. “Mas dói pra caramba.”
Preocupado
com o corte, o fotógrafo perdia a dimensão do que acabara de presenciar. Aquele
tinha sido o maior confronto entre a Ditadura Militar e a classe operária. Uma
luta campal. Um massacre. Aquele pessoal esmagado reuniria forças e se
aglutinaria em um partido político, que passaria a representar a esquerda, ou o
que sobraria dela dez anos depois, quando caísse o Muro de Berlim. Mas o que
importava naquele momento era o corte na cabeça.
“Batismo de fogo”, disse Lambari, quando ele chegou no
jornal, com o crânio remendado, e o filme rebobinado para ser revelado."
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