terça-feira, 10 de abril de 2018

Trecho do livro Complexo de Servo - um romance sobre a submissão


       

1979
        
"O chefe do Departamento Fotográfico chamava-se Lambari. Tinha a pele escamosa, os cabelos como nadadeiras e um olhar viciado, de peixe morto. Na realidade, Lambari era o apelido, mas ninguém o conhecia pelo nome de batismo. Foi o próprio Lambari quem deu um armário enferrujado para Beto guardar suas câmaras e lentes. Lambari ofereceu-lhe também um filme rebobinado, “com umas 30 poses”, e o despachou para São Bernardo.
         “Os milicos vão matar o Lula e fazer uma faxina. Vai ser legal”, avisou Lambari.
         Lula era o apelido de Luiz Inácio da Silva, o líder sindical de São Bernardo. Lambari não tinha ódio ideológico de Lula, ou algo assim parecido. Era apenas o desejo de ver sangue escorrendo.
Era o acontecimento mais importante daquele dia. Por que destinar uma pauta tão preferencial para um iniciante? “Eles querem me queimar, por causa do meu tio”, Beto concluiu. Queriam testá-lo. A bem da verdade, mais provavelmente, fritá-lo.
No instante seguinte, Beto já estava em São Bernardo, sob a cor de chumbo daquela cidade que reunia as principais montadoras do país. No ABC – região formada pelas cidades Santo André, São Bernardo e São Caetano – eram feitos os carros, as peças dos carros e os acessórios. Os operários vinham do Nordeste, principalmente. Moravam em favelas, em casas precárias edificadas sobre áreas invadidas de mananciais. Destruíam as sobras da Mata Atlântica. Viviam nas ventosas dos tentáculos do Monstro.
         Com a responsabilidade esmagando sua cabeça, preocupado com o tio, Beto circulava pelo Paço Municipal de São Bernardo. Eram 14h. O lugar estava cheio de gente. Chegavam notícias confusas: “Lula foi preso”, “Lula está com o prefeito”, “A polícia cercou a casa do Lula”.
         No Teatro Cacilda Becker, a peça em cartaz chamava-se Quando as Máquinas Param.
         Uma coincidência temporal. Há 10 dias, os metalúrgicos mantinham sua greve, enfrentavam a Ditadura Militar com bravura e determinação. Eram um anacronismo histórico. Ressuscitavam a luta de classes, numa época em que ninguém mais acreditava nisso.
         Beto tinha lido na Newsweek que o líder dos metalúrgicos, o Lula, era “o herói da classe operária brasileira”.
         Mas onde estava o Lula?
         Os operários chegavam cada vez em maior número. Tomavam conta da praça. Gritavam em coro: “A greve continua! A greve continua!” e “Lula! Lula! Lula!” Beto encontrava-se no olho do furacão com um filme rebobinado. Tinha chance de fazer umas 30 fotos, sendo que as duas primeiras e as duas últimas quase sempre queimavam em um filme rebobinado. No cômputo geral, eram 26 fotos, apenas.
         Chegavam mais informações desencontradas. Lula tinha sido cassado e o Sindicato dos Metalúrgicos caíra sob intervenção federal.
         Havia 20 mil operários na praça. Vinte mil expressões diferentes e Beto  com um filme rebobinado na máquina. 26 poses. A informação agora era confirmada: Lula tinha sido realmente cassado e o Sindicato dos Metalúrgicos seria ocupado por interventores. A greve poderia acabar naquela tarde.
         Sob o céu de chumbo, chegaram cem peruas C-14 da polícia. Elas rodearam a praça com as sirenes ligadas e as luzes piscando. Vieram também os cavalos, os cães pastores e os caminhões espinha-de-peixe, trazendo a tropa de choque.
         Um helicóptero sobrevoou o Paço Municipal de São Bernardo. Dentro do helicóptero dava para ver um soldado do exército armado de metralhadora.
         Um carro de som servia de palanque. Líderes metalúrgicos diziam que a manifestação era pacífica, que ninguém deveria reagir à provocação.
         A polícia cercava a praça. Um metalúrgico com chapéu da Volks circulava impaciente. Era um cara baixinho, forte, híbrido de índios e negros. Ele andava com o peito estufado, os braços em curva como se fosse uma xícara de duas asas.
         De onde Beto se encontrava, era possível ver os carros de choque Brucutu se aproximando, ao lado dos carros dos bombeiros, dos cavalarianos e dos cães pastores da Polícia Militar.
         A tropa de choque preparava as bombas de gás lacrimogêneo, aprumando os escudos e os cassetetes.
         Os metalúrgicos comprimiam-se, tentando ficar nas proximidades do prédio da Prefeitura. Naquele momento, a polícia já tinha cercado toda a praça. Não havia mais para onde fugir.
         Uma repórter da legendária TV Tupi gravava uma passagem para a sua matéria. Ela explicava que a praça estava cercada, que o ato público ia começar naquele momento e dizia que os metalúrgicos estavam tensos e apreensivos. “Com o cu na mão”, Beto completou, em pensamento.
         A praça tinha um estilo modernoso, repleto de concreto, com esqueletos de árvores e grama encaixados nos vãos do cimento. O céu de chumbo ficou mais escuro. Começou a garoar e a ventar forte. Fazia frio.
         Os uniformes dos policiais eram cinzentos, assim como os prédios em volta.
         Beto fez umas quatro ou cinco fotos dos policiais avançando. Bateu a câmara na cabeça de um operário. O sujeito gritou de dor. Anos e anos fotografando noivos de bolo atrapalham a gente muito mais do que se imagina.
         O vento estava mais forte agora. A garoa descia suja e ácida. Ele limpou a lente com uma flanela. Usava uma capa plástica vermelha, fechada até o pescoço e com um capuz de frade capuchinho sobre a cabeça. Era o chapeuzinho vermelho da fotografia. Um atirador louco, entre os policiais, fatalmente o escolheria como alvo. Era a própria capa do toureiro.
         “Vou tomar um tiro na espinha e ficar aleijado”, Beto pensou.
         O cadáver...Aquela cueca sobressaindo-se...A perda da dignidade e do orgulho...
         Ordens confusas partiam de lideranças esporádicas: “O governador Paulo Maluf, que deu ordem para reprimir a manifestação, vai ser o responsável pelo que ocorrer hoje nessa praça”, gritava o carro de som.
         Os operários berravam: “Abaixo a Ditadura! Abaixo a Ditadura!” E também: “A greve continua! A greve continua!”. E ainda: “Lula! Lula! Lula!”
         A primeira bomba foi disparada. A gritaria generalizou-se. As palavras de ordem foram substituídas por frases partidas:
         “Calma, gente, calma.”
         “Não pisa na moça.”
         “Abaixa a cabeça.”
         “Eles estão disparando contra a gente.”
         “Eles vêm vindo.”
         Beto viu a repórter da TV Tupi falando no microfone e, em seguida, viu uma fumaça na parte debaixo da saia dela. A repórter começou a voar pela praça.
         Ela foi deslocada por uns 10 metros e caiu sentada, ainda segurando o microfone, tentando entender o que tinha acontecido.
         O cinegrafista botou a câmara no chão e começou a enfiar o dedo no ouvido.
         Beto fez umas dez fotos da correria. Os operários tentavam escapar do cerco. As C-14 com as sirenes ligadas entravam na praça. Gente caía, gente era pisoteada.
         O operário com o chapéu da Volks apareceu dentro da câmara de Beto com o rosto ensangüentado.
 “Quebraram a minha cabeça”, ele gritava. Os braços em xícara estavam agora na cabeça, tentando estancar o sangue.
        
Os fotógrafos casamenteiros jamais acreditariam naquilo.
         Os policiais a cavalo empurraram os metalúrgicos para o meio da praça. A maioria dos operários corria em direção ao prédio da Prefeitura. A passagem era apertada. Não daria vazão para tanta gente.
         Beto encontrou uma grade e passou o braço esquerdo ao redor dela. Ficou ali em cima, empoleirado.
         Sua lente viu vinte homens envoltos por uma nuvem branca, proveniente das bombas. A fuga dos grevistas era desordenada. Os guardas batiam em tudo que se movia. Cavalos, cães e viaturas eram jogados sobre os metalúrgicos.
         O fotógrafo olhou para a repórter da TV e viu que ela ainda não tinha se levantado. O cinegrafista, sentado no chão, esfregava os olhos. Devia estar momentaneamente cego e surdo por causa da bomba.
         Beto saltou do poleiro e foi em busca de uma posição melhor. “Devo ter ainda umas três fotos”, calculou, enquanto corria.
         Um metalúrgico, próximo de Beto, levantou a mão e gritou. Beto parou de correr. Olhou para o operário e virou a cabeça. Havia uma “parede” marrom ao seu lado. O ar foi riscado por um instrumento cortante e um negócio duro bateu com força no rosto do fotógrafo do Jornal Falido.
         Beto viu literalmente estrelas. Uma constelação de pequenos pontos luminosos. Levantou a cabeça e viu o guarda a cavalo ao seu lado. O policial armado com um cassetete gigante.
         Beto gritou:
         “Eu sou jornalista! Não faço greve!”
         O guarda decidiu procurar outra vítima e se afastou com seu cavalo. Beto pegou a flanela no bolso e botou em cima do ferimento. Lembrou-se do sindicalista morto pela manhã, diante da Metalforjado. Andava e repetia: “Eu sou jornalista. Não faço greve”.
 Sangue por todo lado.
         Os homens gastavam todas as bombas. Era uma liquidação. Queima de estoque. O gás lacrimogêneo espalhava-se pelo ar frio, daquele dia sujo.
         A manifestação tinha terminado.
         Beto sentou-se ao lado da repórter. A perna da moça tinha se transformado em uma das chagas de Cristo. Apesar do ferimento, ela continuava trabalhando, escrevia sem parar.
         “O que me fode é saber que os caras vão cortar tudo na edição”, dizia a repórter para o cinegrafista, que não podia ouvi-la, porque ainda esfregava os ouvidos. Beto entrou na Prefeitura. Procurou um banheiro e se lavou. O ferimento era superficial. “Mas dói pra caramba.”
         Preocupado com o corte, o fotógrafo perdia a dimensão do que acabara de presenciar. Aquele tinha sido o maior confronto entre a Ditadura Militar e a classe operária. Uma luta campal. Um massacre. Aquele pessoal esmagado reuniria forças e se aglutinaria em um partido político, que passaria a representar a esquerda, ou o que sobraria dela dez anos depois, quando caísse o Muro de Berlim. Mas o que importava naquele momento era o corte na cabeça.

“Batismo de fogo”, disse Lambari, quando ele chegou no jornal, com o crânio remendado, e o filme rebobinado para ser revelado."

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