segunda-feira, 19 de março de 2018
No império de gelo
Tocou o telefone. Atendi. Do outro lado da linha, estava o diretor de Redação do Jornal da Tarde, Murilo Felisberto. Eu havia escrito uma extensa reportagem sobre a situação dos trens da CPTM para o Diário do Grande ABC, onde era repórter especial. A matéria chamou a atenção de Murilo que retornava ao JT para tentar "salvar" a publicação. Ele queria conversar comigo e me chamou para uma reunião.
Muita gente sonha com determinadas realizações. Fazer sucesso em um grupo de rock, desfilar para uma grife conhecida, ser consultor financeiro e ganhar muito dinheiro, participar do Esquadrão da Morte, tornar-se atriz de novela, virar político e resolver a vida de familiares próximos e herdeiros secundários. Meu sonho era trabalhar no JT, realizar grandes reportagens e inscrever meu nome na história daquele jornal mítico. Por isso, aquela ligação teve o sabor de uma porta deslumbrante que se abria para mim.
Cheguei no horário marcado. Entrei na Redação do JT de cabeça erguida e peito estufado. Júlio César atravessando o Rubicão...Entrei no aquário, onde Murilo Felisberto ficava. Estendi a mão para ele e o aperto me pareceu fraco, meio sem vida. Ele me pareceu um homem doente, pálido, extremamente envelhecido. Devia estar com 60 anos, mas parecia ter 20 anos mais. Escolhia fontes tipográficas para a próxima reforma do JT. Essa escolha de fontes nunca chegou a ser concluída, nem houve reforma do JT, que encerraria sua vida nas bancas, posteriormente.
Ele me ofereceu um emprego de repórter especial, com salário maior do que eu recebia no DGABC. Mais do que isso: iria sentar na mesa do grande repórter policial Percival de Souza, que estava de saída do JT para trabalhar na TV Record.
Fui para casa dando pulos de alegria. Literalmente. Socava o ar, como Pelé. Era o ápice da minha carreira. Desde que era adolescente e lia aquelas reportagens sensacionais, via aquela capa célebre do garoto chorando com a derrota do Brasil em 1982 (foto do Domício Pinheiro), sonhava em trabalhar naquele jornal.
Em casa, convoquei a família. Expliquei que iria sair do DGABC, onde era bem tratado, querido e bem remunerado, para enfrentar o desafio de uma casa nova. O pessoal deu sinal verde para a mudança. Todo mundo ficou feliz e exultante. "Que legal! Que bacana!", diziam, sorridentes, felizes da vida.
Os primeiros dias no emprego novo me deram a impressão de estar em uma geladeira. O ambiente era frio. Um lugar gelado. Anos luz daquela Redação deliciosa do Dipo. Quando eu falava, dava impressão de sair da boca vapor condensado, como naquele filme Sexto Sentido, "I see dead people". As pessoas conversavam pouco. Não havia clima de camaradagem. Éramos concorrentes. Um precisava alimentar-se do outro para sobreviver.
O JT vivia dias amargos. Já havia aquela espada de Dâmocles sobre a cabeça do jornal.
De bom, fiquei amigo e parceiro de Marinês Campos, excepcional repórter policial. Conheci também Valdir Sanches, de texto correto e apaixonado pelo bom gosto. Chegamos a ir com nossas famílias em um dos jantares que a mulher de Valdir Sanches preparava em determinadas datas. Era uma casa bem acolhedora, situada em uma bairro tranquilo de Guarulhos, com motivos rústicos e decoração atraente.
Nosso chefe era um sujeito de pele escamosa, de rosto vermelho, tão vermelho que quem não o conhecesse acharia que ele iria sofrer um ataque cardíaco no minuto seguinte. Esse cara fumava o tempo inteiro e eu era obrigado a fazer reunião de pauta, suportando o cigarro queimando a centímetros do nariz.
Entre as matérias que mais gostei de ter produzido nesta época, uma delas contava o dia a dia de funcionários da Carrocinha, serviço emblemático da Prefeitura de São Paulo que recolhe cães sem dono. Entrei dentro do caminhão e acompanhei o trabalho dos "homens da Carrocinha". Era delicioso ver como eles se sentiam policiais e como creditavam aos vira-latas aspectos "humanos". "Esse é cadeeiro velho", comentavam sobre o esperto cão pretinho que se escondia deles e fugia sem ser alcançado pela corda ameaçadora.
Outra reportagem interessante foi feita durante uma transferência de presos perigosos para uma penitenciária de segurança máxima. Durante o trajeto, um motociclista aproximou-se perigosamente do comboio. O policial que estava ao meu lado me deu um revólver 38 e me aconselhou a ficar deitado no chão do veículo. "Se a gente for baleado, você fica deitado e quando alguém colocar a cabeça na janela, você atira", foi o conselho do agente. Felizmente, o motociclista percebeu que estava no lugar errado na hora errada e puxou o carro, quer dizer, a moto.
Com Marinês Campos, fizemos extensas reportagens sobre uma facção criminosa, que o governo estadual dizia não existir. Publicamos o estatuto da facção e até fotos de seus principais líderes. O então governador Geraldo Alckmin desmentia as matérias e dizia que a facção era uma invenção da imprensa. Por essa série de reportagens, o JT foi finalista nacional do Prêmio Esso.
Lembro de ir com Marinês a um almoço com um ex-detento, apelidado de "Tatu". Nosso encontro aconteceu em uma churrascaria na avenida Marquês de São Vicente. "Tatu" era especialista em...
Adivinhe?
Cavar túneis, evidentemente. Ele nos contou histórias inacreditáveis sobre fugas.
Uma de nossas fontes trabalhava em um órgão do governo e detinha conhecimento profundo no "submundo do crime". Lembro de uma reportagem que produzimos, dando conta da fuga de um detento da Casa de Detenção. Informamos que ele fugiria nos próximos dias. Três dias depois, o detento realmente fugiu, escapando por um túnel cavado sob a avenida Cruzeiro do Sul. A manchete foi óbvia: "Fulano fugiu e o JT tinha avisado".
Todos os dias publicávamos histórias tenebrosas que ocorriam na Casa de Detenção. Foram tantas e tantas reportagens, batendo sem parar na Casa de Detenção que, o governador Geraldo Alckmin convocou a imprensa e afirmou que iria demolir o velho presídio, construído em 1920, com repertório de horrores inesgotável, como aquela execução em massa que matou 111 presos, em 1992.
Em março, eu e Marinês Campos disputamos a final nacional do Prêmio Esso, o principal da imprensa. Uma semana depois, no início de abril, fui chamado pelo chefe escamoso para uma reunião. Achei que seria promovido. Teria o salário dobrado. No entanto, terrível constatação: fui demitido.
A espada de Dâmocles fazia suas vítimas na Redação do JT. Os cortes haviam começado. Aos poucos, o integrante da família Mesquita que ficava em um dos aquários do JT também seria retirado, assim como Murilo Felisberto e o chefe escamoso perderiam o emprego. O JT, de tantas glórias, prêmios e reputação, desapareceria para sempre das bancas.
Lembro que cheguei em casa desesperado. Andava de um lado para o outro sem saber o que fazer. Meu filho estava na escola. Tinha inúmeras obrigações financeiras. Aquele meu castelo de sonhos e realizações tinha desabado com estrondo. Minha mulher me encontrou no quarto, viu meu desespero e sugeriu: "Liga para o Irineu". Ela referia-se ao meu amigo e parceiro de longa data Irineu Masiero que, na época, ocupava o cargo de diretor de Redação do DGABC.
Respirei fundo. Peguei o telefone e disquei o número do Diário. A telefonista atendeu. Pedi para falar com ele. Ela passou a ligação. Tocou uma musiquinha e a voz do Irineu ocupou a linha. Expliquei o que tinha acontecido e a resposta dele foi uma sinfonia de Bach para os meus ouvidos desesperados: "Seja bem-vindo", ele disse.
No dia seguinte mesmo, eu reiniciava minha carreira de repórter especial no DGABC. E nunca mais voltaria a pisar no império de gelo.
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