quinta-feira, 31 de agosto de 2017

A Redação do Dipo (6)



Henrique Matteucci pertencia à velha guarda do jornalismo. Em 1984, quando pisei pela primeira vez em uma redação de jornal, Matteucci, ou Matt como ele era conhecido, era editor de Local. Cronista de talento, autor de livros interessantes, Matt era apaixonado pelo boxe e havia escrito uma biografia de referência sobre o campeão Eder Jofre. Foi além: subiu no ringue e fez duas lutas. Venceu uma e perdeu outra. Escreveu uma reportagem célebre que depois viraria o livro Eu já beijei a lona.

Lembro de ter comparecido a uma noite de autógrafos quando Matt lançou O biombo grená, coletânea de contos que ele havia escrito para o Dipo. Tinha muita gente. O bar ou restaurante (não me lembro exatamente onde foi) estava repleto. Matt deve ter ficado com o braço doendo de tantos autógrafos que distribuiu naquela noite. Matt era uma celebridade do Dipo, amado por milhares de leitores (principalmente pelo público feminino) e pela quase totalidade da Redação.

Estranhei que o colega Luiz Antonio de Paula, o Luizinho, quando escreveu, em 2008, sua tese de mestrado para a USP As sete mortes do Diário Popular, não tenha feito uma única referência ao Matt. Por sinal, quando Luizinho me cita em seu trabalho comete erro. Ele se refere a uma discussão que tive com o diretor de Redação, Jorge Miranda Jordão, em torno de uma capa da Revista, que eu editava, dizendo que a matéria fazia referência à morte de Charles Bukovsky. Na realidade, o morto era o dramaturgo Samuel Beckett. O ocorrido (a morte de Beckett) aconteceu em 22 de dezembro de 1989. Bukovsky ainda estava vivo nessa época e só viria a morrer cinco anos depois. Fui premiado com uma citação na tese e ela está errada.

Matt era de esquerda, o que na época significava ser contra a Ditadura Militar, o capitalismo, a indústria cultural norte-americana, o PDS (sucessor da Arena), Paulo Maluf e a classe dominante. Matt era um sobrevivente da Greve dos Jornalistas de 1979. Continuava empregado. A velha guarda, a quase totalidade daquela geração de jornalistas talentosos, foi varrida do mapa, depois da greve fatídica, promovida pelos maluquetes da Liberdade e Luta.

Dentro do Dipo, Matt batia de frente com o então secretário de Redação, Edgard de Oliveira Barros, de posicionamento conservador e direitista. Edgard também era cronista da cidade e publicava suas histórias. Quando havia manifestação na cidade, contra a ditadura agonizante, e a polícia reprimia, Edgard costumava comentar: "A polícia não precisa saber por que está batendo, o povo sabe por que está apanhando". A marca registrada de Edgard era percorrer a Redação e chamar os repórteres e editores de "canalhas!".

A página 2 do Diário Popular tinha a coluna Que fique bem claro, criada pelo Edgard, e que trazia as opiniões dos jornalistas da Redação. Eram textos curtos, rápidos e contundentes. Diariamente, Matt produzia uma boa leva de textos. No dia seguinte, apenas alguns eram publicados. A maioria, ignorados por Edgard, que editava a página 2. Matt indignava-se. Dizia que nunca mais iria colaborar com a seção, mas acabava produzindo novos textos e a vida seguia.

Pessoalmente, eu me relacionava bem com os dois - Matt e Edgard. Matt elogiava meus textos, dava dicas profissionais importantes e procurava sempre catequizar a garotada, nós - os focas, para os ideias sagrados da esquerda. No polo oposto, Edgard um dia me chamou no aquário e pediu para eu escrever uma coluna, voltada para a ecologia (hoje, se diz "sustentabilidade"). Ele batizou a coluna de Viva a vida - nome que depois seria copiado por uma rede de lojas de moda feminina. Foi a minha primeira coluna em um jornal diário e talvez uma das primeiras do País a tratar exclusivamente de meio ambiente.

Quando o Diário Popular foi vendido, em 1988, para o então governador Orestes Quércia, chegaram os cariocas de O Dia para ocupar a Redação. Supostamente, em um primeiro momento, não era Quércia quem estava comprando o jornal, mas Ary Carvalho (dono de O Dia), ainda que o Estadão publicasse uma série de matérias, informando que o grupo Arca (Ari Carvalho) seria "laranja" do verdadeiro proprietário (Orestes Quércia). Com o tempo, Quércia assumiu a compra.

Matt seria uma das primeiras vítimas, uma das primeiras cabeças a rolar, depois da venda do Diário. Quem lhe deu a notícia da demissão, por sinal, foi o Luizinho. Para traumatizar menos a Redação, Luizinho disse a Matt que ele seria um "colaborador", podendo continuar publicando suas crônicas eventualmente. Revoltado com a demissão, Matt publicou uma foto esquisita do então secretário de segurança Luiz Antonio Fleury Filho (apadrinhado de Quércia e futuro governador). Foi a gota que transbordou o caldo. O futuro de Matt como "colaborador eventual" encerrou-se ali.

Nove anos se passaram, em novembro de 1997, lembro de estar na Redação do Diário do Grande ABC, quando recebo uma ligação do colega Anderson França, ex-editor de Internacional no Dipo. As notícias não eram boas. Matt havia morrido, vítima de um câncer fulminante.   

Lembro dele sorrindo, um riso aberto, confiante. Lembro de suas histórias incríveis sobre o boxe, sobre a vida de repórter que o levou um dia a sofrer um nocaute em uma luta de verdade. Sinto saudades daquela Redação, a última romântica. Queria voltar no tempo, viver novamente tudo aquilo. Como foi bom ter convivido com jornalistas da grandeza de um Matt e que pena ter acabado.    
  

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A Redação do Dipo (5)




Naqueles tempos, o diretor de Redação do Diário Popular era o general Moziul Moreira Lima, ex-pracinha, que havia lutado na tomada de Monte Castelo. O general era uma garantia dos donos do jornal (a família Lisboa Soares) à Ditadura Militar de que não fariam nada que trouxesse constrangimento ao regime. O Dipo nunca foi censurado, nem precisou substituir informação por sonetos de Camões.

Em pleno regime militar, ainda que na sua derrocada final, vivia-se com aquela ansiedade do que o futuro nos reservava. Sonhava-se com a liberdade de expressão - ampla e irrestrita -, que se seguiria ao último general no poder. No nosso caso, tínhamos um general no aquário (aquela sala envidraçada, onde ficavam os chefes). Apesar da desconfiança que a geração jovem sentia em relação aos militares, o general Moziul era definitivamente um bom papo.

Ele gostava de falar da campanha brasileira na Itália, onde estivera acompanhado por Rubem Braga, o célebre cronista. Em sua mesa, grampeadores, pesos de papéis, agendas transformavam-se em ninhos de metralhadoras, baterias antiaéreas, trincheiras. Ele relatava as operações militares em Monte Castelo. Lembrava-se de uma bomba alemã, disparada por um canhão, que havia caído no QG dos brasileiros. "Se ela tivesse explodido, tínhamos perdido nossos principais comandantes, inclusive eu não estaria aqui para contar história", recordava.

O general Moziul era extremamente crítico em relação àqueles que ocupavam o poder em Brasília. Falava de um general, conhecido seu, ministro do governo João Figueiredo, que havia enriquecido, durante as construções de obras monumentais como a ponte Rio-Niterói e a Transamazônica. "Quando eu o conheci no Colégio Militar, ele usava sapato furado, porque não tinha dinheiro para comprar um novo", lembrava o general, "hoje ficou milionário".

A Redação tinha muita gente de esquerda e a maioria respeitava o general, imagino, por seu passado na luta contra o nazismo. Ele gostava de ir ao cinema, acompanhado da mulher, e me chamava para saber quais lançamentos valeriam a pena. Na época, eu fazia crítica de cinema. Ele ouvia com atenção e escolhia o filme que iria ver, com base nas minhas avaliações. Dias depois, me chamava no aquário para concordar ou discordar da minha opinião. Sua argumentação era sempre equilibrada, gentil e divertida. 

O general era também condescendente com os escorregões dos meninos da reportagem. Um repórter, que ficava violento depois que bebia, atracou-se com outro repórter, que havia sido patrulheiro rodoviário em emprego anterior. O ex-patrulheiro encerrou a discussão com pancadas de impacto profundo. Os dois foram chamados à sala do general. Depois de ouvir os dois lados, o general mandou o repórter bebum para casa por uns dois dias e perdoou o ex-patrulheiro. "Se eu estivesse em seu lugar, teria feito a mesma coisa", contemporizou.

O telex da Redação ficava em uma sala fechada e era operado por um rapaz boa pinta, negro, grande e forte (telex era uma máquina barulhenta que funcionava com fitas amarelas perfuradas e servia para receber e transmitir notícias). O teletipista charmoso recebia sempre a visita de uma secretária, moça atraente e sensual. Tarde de sábado, um morador, vizinho ao prédio do Dipo, ligou para o general e pediu providências: "Estão trepando aqui na minha frente", o sujeito protestou.

O general deu um tempo. Esperou a moça sair da sala e chamou o operador do telex. Explicou que aquilo não devia ser feito em ambiente de trabalho, que pegava mal para o jornal. "Além do mais, a sala onde você está é de vidro transparente", chamou a atenção. Ninguém foi demitido por justa causa ou suspenso. Era outro mundo aquele, pré-Netflix, celular, tablet e também pré-pessoas de suscetibilidade extremada.    

(na foto, o general Moziul Moreira Lima, na época em que era coronel do 23º Batalhão de Infantaria).  

terça-feira, 29 de agosto de 2017

A Redação do Dipo (4)



A Redação do Diário Popular recebia visitas diárias. Quase todo dia aparecia, quase sempre na hora do fechamento, uma figura pública, uma celebridade, alguém que queria divulgar algo ou simplesmente ia lá para fazer uma média com os jornalistas. O mestre Assis, de Embu das Artes, era figura querida e carimbada. Volta e meia aparecia na Redação para tomar um café com a gente. Hoje, ele é nome de um Centro Cultural em Embu. Morreu há oito anos.

Uma tarde, estávamos entretidos com nossas pecados diurnos, quando entra na Redação a atriz Christiane Tricerri, em pleno vigor muscular e escultural de seus 26 anos. De calcinha e sutiã pretos, meia arrastão, sapato salto 7/8 de verniz preto, chicote em punho, óculos escuros, ela percorria as mesas, enrolando os pescoços alheios em sua chibata. Havia aqueles mais exibidos que pediam uma breve chicotada no bumbum para guardar de lembrança. Christiane divulgava a peça Mara Tara, baseada no personagem de HQ, criado pelo Angeli.

Uma visita não muito cordial era de um colega, um jornalista que todos adoravam. Era festejado ao entrar na Redação. As meninas corriam para abraçá-lo, beijá-lo, apalpá-lo. Os rapazes o cumprimentavam com alegria. Assim que ele ia embora, começava o desespero. "Roubaram a minha carteira", gritava uma repórter. "Levaram meu relógio", informava outro. "A minha bolsa? A minha bolsa?", se desesperava uma editora. Todo mundo sabia quem tinha sido o ladrão, mas ficava por isso mesmo. A gente esquecia o ocorrido e seis meses depois ele voltava e era recebido com muita festa e propriedade.

Comida não faltava. Eram as garotas da Feira da Uva de Jundiaí que vinham distribuir cachos e cachos de niágara rosada, thompson, rubi. A princesa e a rainha da Festa da Uva desfilavam com seus vestidos coloridos de misses e as respectivas faixas cruzadas no peito. Distribuíam uvas como fariam as discípulas de Dionísio. No dia seguinte, a cena se repetia com as misses da Festa do Figo. No fim de semana, era o pessoal da Festa do Caqui. E seguíamos em frente.

Talvez a figura mais querida nessas visitas era o padre Patarello. Ele chegava sempre por volta de 18h, em pleno horário de fechamento, e percorria a Redação, dando pãezinhos de Santo Antônio para o reportariado. "Padre Patarello!", alguém dava o alarme lá na frente. "Padre Patarello! Padre Patarello!", começava a gritaria.O padre acenava, rosto vermelho, ciente de sua celebridade. Naquela hora da tarde, início da noite, a gente morrendo de fome, os pãezinhos do padre Patarello eram sempre um quitute indispensável.
"PADRE PATARELLO!!!"


     

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

A Redação do Dipo (3)



A música "Prá não dizer que não falei das flores", de Geraldo Vandré, se transformou em um hino que simbolizava a luta contra a Ditadura Militar. Vandré era um símbolo icônico. Alguém que havia sido torturado pelo regime e se transformado em vítima do governo opressor. Nos anos 80, os jovens que se opunham aos generais no poder, em pleno ocaso da Ditadura, viam na figura de Vandré um herói mítico. Da mesma estatura de Chê Guevara.

A Redação do Dipo em 1984/85/86 não dormia. Tinha sempre alguém de plantão. Havia um editor,  repórter e fotógrafo preparados para o que desse e viesse noite a dentro. Um editor plantonista mantinha sempre um copo cheio de Coca-Cola. Uma madrugada, morrendo de sede, peguei o copo e dei um gole. Saí cuspindo labaredas de fogo. Aquilo tinha 1% de refrigerante e o resto devia ser uma mistura de Fogo Paulista com Conhaque de Alcatrão e sabe Deus mais lá o quê.

 Certa noite, depois de uma exaustiva e interminável reportagem, cheguei lá pelas 3h da manhã na Redação. O lugar estava escuro, com apenas uma luz sobre o editor de plantão. Próximo dele percebi alguém que martelava a máquina de escrever. Achei que fosse um repórter, metido em outra cobertura noturna. Mas não era. A fisionomia me pareceu conhecida, mas como estava morrendo de cansaço, tratei de escrever minha matéria e ir embora pra casa.

 A gente escrevia em laudas, que eram umas páginas com marcadores, que facilitavam o trabalho da diagramação. O sujeito que escrevia perto de mim ia bem rápido. Devia estar inspirado àquela altura da madrugada.

Depois que terminei o texto, entreguei para o editor. Ele deu uma olhada e ficamos conversando um pouco, naquele momento de relaxamento que vem em seguida à produção de uma reportagem e nos dá aquela sensação de dever cumprido. Nisso, o sujeito levanta-se. Põe o paletó, que estava atrás da cadeira, vem até nós e nos cumprimenta. Dá boa noite e vai embora.

"Sabe quem é ele?", o editor pergunta.
"Não tenho a menor ideia", respondi.
"É o Geraldo Vandré."

Fiquei gelado. Como era possível ter ficado alguns metros de um dos maiores ídolos da minha geração e não tê-lo reconhecido.

O editor me contou que Vandré, que morava ali no Centro, costumava ir de madrugada na Redação do Dipo e escolhia aleatoriamente uma máquina e escrevia durante horas.

Depois que Vandré se retirou, o editor foi até a mesa onde ele tinha ficado e recolheu as laudas. Eram várias delas. Talvez umas dez ou quinze. Escritas de uma ponta a outra. Será que era uma nova versão de "Prá não dizer que não falei de flores"? Um capítulo de um livro? Memórias do cárcere? O que Geraldo Vandré poderia ter escrito naquela madrugada?

Quando fui ler, percebi que o texto não tinha lógica. Não fazia sentido. Eram palavras atiradas a esmo, sem começo nem fim. Uma algaravia muito doida. Fui para casa como se tivesse sonhado aquilo tudo.

Depois daquela noite, nunca mais vi Geraldo Vandré.           

 (a foto que ilustra o relato é do Diário de Pernambuco, que guarda certa semelhança com a Redação do Dipo)

sexta-feira, 25 de agosto de 2017

A Redação do Dipo (2)


Nos anos 80, o Diário Popular era ainda produzido com linotipos (foto). Essas máquinas em funcionamento lembravam um inferno incandescente. Resumidamente, derretiam chumbo para produzir linhas de tipos, que eram colocados em caixas. Daí faziam-se placas. Tirava-se um molde maleável que ia para a rotativa. Era um processo demorado, arcaico e fumegante.

O linotipista aposentava-se cedo. Depois de 20 anos de serviço, os pulmões desse profissional pesavam uns 20 quilos, por causa do chumbo aspirado. No Diário Popular, lia-se no degrau do linotipo gravado em aço: "W.R.Hearst, The NewYork Journal". Era uma máquina herdada do magnata da imprensa norte-americana - William Randolph Hearst - no tempo em que ele dirigia o poderoso The New York Journal lá por volta de 1890. Os linotipos do Dipo tinham cem anos de vida.

Fazer jornal naquela época era "simples": o repórter vinha da rua e escrevia a matéria. O editor dava uma olhada e mandava para o copy-desk, que acertava pontos, vírgulas e, às vezes, reescrevia o texto. O editor dava um tapa final. Punha título. Escolhia a foto e vamos em frente. A matéria era enviada para a Linotipia para ser impressa. Tirava-se uma cópia que ia, em seguida, para a revisão. Faziam-se os acertos e o texto retornava para o linotipista fazer as correções. Era um vai e vem interminável, sujeito a catástrofes.

Quem entrava no 3º andar do prédio da Major Quedinho, onde ficava a Linotipia, mergulhava em um ambiente enfumaçado, fervente, sufocante. Eu saía da Redação, que ficava no 5º andar, e descia regularmente lá para conversar com o pessoal. Gostava daquele exército de linotipistas. Eles sempre ingerindo leite para evitar a contaminação pelo chumbo. Sabia que era questão de tempo para toda aquela gente perder o emprego, quando o processo fosse substituído pelas modernas impressoras offset. Fiz amizade com um linotipista palmeirense, que gostava de imprimir meus textos. Ele "digitava" com zelo e carinho, reduzindo assim bastante a possibilidade de erro.

A Linotipia tinha um chefe, o seu Eustáquio. Antes do jornal ser impresso, seu Eustáquio verificava se estava tudo nos conformes. Às vezes, a placa com o texto precisava ser cortada, por causa dos estouros. Esse procedimento quase sempre dava certo, porque naquela época havia lide, sublide e assim por diante, com as informações cruciais sendo colocadas nas linhas iniciais da reportagem. Só que, de vez em quando, o texto terminava em um suspense aterrador.

Não raro, o leitor ia ler o jornal no dia seguinte e topava com coisas do tipo: "O ministro da saúde disse que todas as medidas serão tomadas para evitar novas mortes, mas...". Mas o quê, meu Deus?

Ninguém nunca iria descobrir. O seu Eustáquio tinha topado com um estouro e, sem qualquer dor na consciência, havia botado a placa em uma espécie de guilhotina e eliminado as sobras do texto nos deixando para sempre com aquela dúvida secular: "mas..."? 
   

quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A Redação do Dipo (1)



Comecei a trabalhar no Diário Popular em 1984. A Redação do Dipo, como o jornal era chamado, foi talvez a última romântica. Quase todo dia acontecia alguma coisa surpreendente e inacreditável. Lembro de um tipo que chegava todos os dias religiosamente às 17h30, sentava-se diante de uma máquina de escrever e punha-se a datilografar, de maneira sempre muito compenetrada e rápida.

O cara era uma metralhadora. Usava todos os dedos. Mandava ver no teclado. Sempre bem vestido, de terno, gravata e sapato social, ele era um cara educado. Cumprimentava os repórteres e os editores. Dava um tempo no café para falar sobre futebol e lá pelas 20h ia embora. Uma rotina e disciplina invejáveis.

Ninguém sabia exatamente em qual editoria trabalhava. Alguns achavam que era um setorista do Deic, outros achavam que dava plantão na Câmara Municipal. Havia aqueles que achavam que era um "espião" da chefia. O fato é que o sujeito era uma máquina para trabalhar. Um exemplo a ser seguido por nós, repórteres, que demorávamos para entregar as matérias, matando de aflição os editores.

Certo dia, alguém da Diretoria, impressionado com o rapaz, mandou chamá-lo. A intenção talvez fosse boa. Dar um aumento para ele. Recompensá-lo pela rapidez e a assiduidade.

Quando o chefe perguntou em qual editoria ele trabalhava, veio a surpresa:
"Em nenhuma", ele respondeu. "Sou vendedor de uma fábrica de vassouras e venho aqui preencher meus relatórios de vendas. Adoro essa Redação e as máquinas de escrever estão sempre com a manutenção em dia."

O coitado foi considerado "persona non grata" e teve seu ingresso no prédio da rua Major Quedinho barrado para sempre.


 

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Poder público é culpado pelas 189 mortes de motociclistas


Nos primeiros seis meses do ano, morreram 189 motociclistas em São Paulo. No mesmo período, foram atropelados e mortos 248 pedestres e ainda 23 ciclistas perderam a vida. São números frios. Não se sabe quem está por trás deles. Eles morrem e se transformam em mera estatística. Desconhecemos sua história. Eram pais de família? Deixaram viúva? Morreram jovens? Foram pais que perderam seus filhos?

A estatística parece comprovar que a política de trânsito do suposto presidenciável João Dória fracassou. Ao aumentar os limites de velocidade, Dória teria sido o responsável pelo aumento das mortes.Mais uma vez, a briga entre PT e PSDB reaparece. Os petistas vão criticar o prefeito e os partidários do tucano vão dizer que a culpa é da imprudência.

Na prática, o poder público é sim responsável por todas essas mortes. As prefeituras fazem muito pouco para evitá-las. Fui motociclista. Fazia barbaridades no trânsito. Andava nos corredores em velocidade incompatível. Uma vez na avenida Rubem Berta estava no corredor, acelerando firme em direção ao Aeroporto de Congonhas, onde trabalhava. Chovia muito. Tempestade de verão. A visibilidade era limitada. Usava óculos de motociclista e capacete. Óculos, como se sabe, não têm limpador. Então, imagine o que eu conseguia enxergar pela frente.

Ao passar por baixo daquele viaduto sob a avenida Indianópolis, vi um pedestre, tentando atravessar a Rubem Berta. Preso entre as correntes incessantes de tráfego, ensopado, perdido ali no meio, o desgraçado esperava pela oportunidade de ser atropelado. Não devia ser um suicida, mas quem sabe...
Lembro que por um milagre da física quântica passei, em alta velocidade, entre ele e os carros que voavam baixo pela avenida. Foi uma fração de segundos. Um momento onde eu poderia ter atropelado e matado o sujeito. Em seguida, seria também atropelado pelos veículos que trafegavam acima de 90 km/h. Minha moto Yamaha 125 c/c viraria ferro-velho. Mas passei batido entre ele e os carros. Ninguém se feriu e fui em frente. Cheguei com os joelhos bambos no serviço.

Em outra oportunidade, fiz tantos cortes entre as faixas da avenida 23 de Maio, passando rente entre os milhares de veículos parados, que um senhor, dirigindo uma lambreta me seguiu e, ao estacionar minha moto na rua Libero Badaró, o lambretista parou ao meu lado e me mandou ter juízo. Ele me passou uma descompostura. Disse que eu dirigia como um maluco, que ia acabar matando uma criança, uma senhora, um pai de família. Esse cara fez algo que o poder público da minha época não fez e continua não fazendo. Ele me chamou à razão. Já o poder público é omisso. Vive escondido.

Por experiência própria, sei que esses motociclistas que vão morrer hoje são, em sua maioria, imprudentes. Não obedecem as regras elementares de trânsito. Trafegam em velocidades incompatíveis com as vias. Cometem barbaridades no trânsito: andam na contramão, desrespeitam faróis, destroem retrovisores e por aí vai. A lista é imensa e cansativa.

 O problema é que ninguém liga para eles. A gente sabe que vai topar daqui a pouco com um motociclista caído, machucado, às vezes, morto. Se eu fosse poder público, se estivesse à frente de uma Secretaria de Trânsito, faria o papel daquele senhor de lambreta. É inadmissível deixar esses motociclistas à vontade, esperando só o momento deles estarem destruídos no asfalto para agir. E agir na forma de um caminhão de resgate dos bombeiros, que vai recolher os cacos.

Lembro do meu amigo Gerson, jornalista e professor, que morava perto da gente, em Brighton (Inglaterra). Gerson tinha uma bicicleta preta, bonita, impecável. O único problema da bicicleta é que ela não tinha farol. E sem farol você (de carro, moto, bicicleta) não circula à noite na Inglaterra. Toda vez que o Gerson saía à noite, era parado pela polícia. Os agentes o mandavam descer. Pediam documentos e o obrigavam a desmontar e voltar para casa, empurrando a bicicleta. Isso aconteceu umas seis vezes. Na sétima, Gerson passou na boa. Tinha comprado um farol.

Se o poder público funcionasse, o motociclista imprudente deveria ser parado, multado e obrigado a frequentar um curso de reciclagem. Em caso de reincidência, perderia a carta. A fiscalização precisaria também observar o estado das motos. A gente percebe moto com placa tão suja que não se consegue ver os números. Outras têm pneus sem ranhuras. Imagine frear em um dia chuvoso? A moto não para. Acredite. Já tive moto com pneu careca e sei que ela não para no asfalto molhado. No interior, dizem, é mais comum você encontrar gente sem carta dirigindo, do que devidamente habilitado. Na realidade, falta fiscalização ativa, presente, ostensiva.

O poder público deveria se preocupar com as pessoas; começar a existir em função dessa gente que paga impostos, que paga também seus salários. Enquanto as pessoas continuam morrendo em nossas ruas e avenidas, discute-se fundo partidário, se o PSDB deve sair ou não do governo, se o Lula faz campanha ou não, se o presidencialismo é melhor ou pior que o parlamentarismo...São pautas frívolas, de quem há muito tempo deixou de viver a realidade das ruas.      

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

Neymar e o futebol arte


Tarde de domingo, debaixo de chuva. A água corria solta pelo telhado e se arrebentava no quintal. O sol tinha desaparecido e dava impressão de nunca mais retornar. De repente, a sala encheu-se de luz, de claridade. A tarde escura e chuvosa transformou-se. Encheu-se de luz. A TV exibia o jogo entre PSG (abreviação de Paris Saint Germain) e Toulouse. Em campo, Neymar.
Responsável pela conquista do ouro olímpico (sonho sonhado por tantas gerações) em cima dos impiedosos alemães, Neymar vale cada centavo dos famosos 222 milhões de euros que o milionário Al-Khelaïfi, dono do PSG, pagou por ele.
Contra o Toulouse, time bem armado e honesto dentro de suas limitações, Neymar fez dois gols, deu passe de trivela em escanteio, sofreu pênalti e fez um gol arrebatador, digladiando-se contra cinco defensores toulousianos. Nesse lance, brigou pela bola, puxou daqui, tirou de lá, driblou mais um, driblou outro e ficou frente a frente com o goleiro, arrematando de forma impiedosa, certeira, cirúrgica marcando o sexto tento da goleada. Só vi Pelé fazer igual. Coisa de craque, a plenitude do futebol arte.
A TV aberta exibia, no mesmo horário, Avaí e São Paulo. Os dois lutando para sobreviver na série A. Comparado com o PSG e Toulouse, o jogo do time paulistano contra o catarinense era o mesmo que você estar hospedado em um hotel cinco estrelas e, de repente, ser transferido para uma pensão modesta na Barra Funda, daquelas com faixa suja de fuligem na porta: "Aluga-se quartos". Assim mesmo com erro de português para ficar mais deprimente.
O dinheiro do árabe milionário colocou na prateleira do PSG brasileiros selecionáveis como Daniel Alves, Thiago Silva, Marquinhos e Lucas (Thiago Motta agora virou "italiano", por causa da dupla nacionalidade).
O dinheiro multinacional tirou todos os craques do Brasil. Hoje, o Brasileirão é um campeonato medíocre, disputado por equipes medíocres, sem craques, sem atrações. Levantamento feito por esse comentarista que gosta de números - PVC (Paulo Vinícius Coelho) - revela que, em apenas 27 por cento das partidas, o time vencedor teve mais posse de bola. São times defensivos, medrosos, despidos de talento e de brilho. O futebol brasileiro é o espelho de um país que perdeu o rumo, a arte, a alegria.         

sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Notícias da matilha



O Facebook lembra um motel sem a parte divertida. São quartos e quartos disponíveis para você ocupar do jeito que imagina. Mas sem o sexo. Sexo não pode no Facebook. Até seio de mãe amamentando  costuma sofrer a censura implacável do Face. No Orkut, valia tudo. Só que o Google encerrou com essa rede em 30 de setembro de 2014. O Orkut reinou por 10 anos e chegou a ter 29 milhões de usuários. O nome da rede deletada vem de Orkut Büyükkökten, engenheiro que trabalhava para o Google.

Enquanto se espera o fim do Face, vamos lendo livros que nos caem na mão.

Notícias da matilha, de Luiz Augusto Michelazzo, editora Coruja, conta a história de um jornalista que trabalhava na sucursal de um grande jornal (seria o Globo?) entre os anos 80/90.  Pouca gente leu Notícias da Matilha. Foram feitas umas duas resenhas tímidas e só. Lançado em 2011, o livro tem passado despercebido. É lamentável.

Trabalhei com Michelazzo em 1989, quando era editor do caderno de variedades Revista, do falecido Diário Popular. Eu o conheci em 1978, quando trabalhei na Proal (Programação e Assessoria Editorial). Estava iniciando minha carreira como repórter e Michelazzo era o editor da revista Panorama, publicada pela General Motors. Ficamos amigos. Discutíamos muito e o transformei em um dos personagens de meu livro Nicola, um romance transgênero. Talvez como vingança, ele me usou também como um dos vilões de seu Notícias da matilha. Eu sou um dos editores malvados, que usava suspensório yuppie, e o fazia trabalhar 12 horas por dia, em plantões intermináveis aos sábados e domingos.

Notícias da matilha é emblemático. Se você quiser saber como era trabalhar em um jornal de alcance nacional no final do governo Sarney e início do governo Collor, a obra de Michelazzo é a melhor fonte. Estão lá a inflação galopante de quase 7 mil por cento ao ano, os plantões assassinos, os chefetes ditatoriais, as viagens intermináveis e - é claro, não poderiam faltar - as relações amorosas, com suas paixões destrutivas, imorais, lascivas, incandescentes.

 O personagem Antônio Capuleto troca um jornal local (seria o Diário Popular?) por um veículo nacional (O Globo?) e reencontra um antigo amor (Maria Luiza). Ela, casada; ele, divorciado, infeliz e sem ilusões. Surge uma terceira figura, a repórter Bete, que se apaixona por Capuleto.

Lembro de um editor de texto (uma espécie de máquina de escrever iluminada), que havia no apartamento de Michelazzo, e cheguei a ler trechos deste livro, quando ainda estava sendo escrito. Ambientado em São Paulo, o texto é fiel à loucura daquela época.

Divertido, surpreendente, Notícias da matilha foi mergulhado em uma tina de erotismo e saiu um produto delicioso.

Leia, divirta-se, entre na pele de um repórter obreiro que camelava 12 a 15 horas por dia e ganhava um salário ridículo. Conheça o Dr. Rubão, dono do jornal; o Camarada Stalin; Boca Mole e demais canalhas. Quem sabe, se você for jovem e trabalhar hoje em jornal diário, pode até se identificar com Antônio Capuleto. Boa sorte, rapaz.  
     

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

O Facebook - esse vampiro insaciável





O Facebook tornou-se hoje um repositório de opiniões, críticas, dúvidas, sugestões, encrencas e a tão propalada publicidade de si mesmo. O Face é uma vala comum. Ali, tudo será despejado. É gente que precisa achar o cachorro, o gato, o furão. É o militante de direita atacando a liderança de esquerda. E vice-versa.

É o sujeito que viaja para um fim de mundo qualquer e faz questão que todos saibam onde ele se esconde. É a dona de casa que assopra a velinha de seu 80º aniversário. Tem receita de bolo, torta, pizza, molho de macarrão. No Face, você encontra ódio, amor, polêmica, guerra, paz, literatura, poesia, música, suicídio ao vivo...

Gente talentosa, sem espaço nos meios de comunicação, escreve de graça para essa rede social. O Face é um sugador de talentos. Não paga nada pelos textos. Pior: todos os dias, milhares de pessoas pirateiam textos de jornalistas e publicam de graça em suas páginas. O Face engorda. Torna-se obeso. Pleno de informação. Ocupa todos os espaços. Chega a todos os continentes, países, cidades, vilas, ruelas. 

A linguagem do Face é ligeira. Não adianta usar mais de 500 palavras. Ninguém lerá. O chamado "textão" é motivo de repulsa. "Lá vem textão", os seduzidos pelas imagens costumam pontificar, tapando o nariz de nojo.

 O Face censura. Não se pode mostrar bunda, peito, vagina, pênis. Até obra de arte, fotografia artística, quadro famoso entra na tesoura do Face. O Face é "família". É como se a Disney se transformasse em rede social. O Pato Donald e a Margarida não eram casados, nem viviam juntos. Sobravam os "três sobrinhos" (Huguinho, Zezinho e Luizinho) gerados por inseminação de lápis de cor. O Face é assim: um ambiente sem sexo, sem reprodução, sem mostrar as partes pudendas da humanidade. O Face é a família americana, vermelha e sorridente, do cansativo comercial de margarina.

O Face é uma criação de um gênio universitário. Surgiu no campus de uma prestigiosa universidade norte-americana. Cresceu, expandiu-se, dominou o mundo.

Em noites de insônia, olhamos para o céu e vemos esse vampiro gordo e insaciável, voando soturnamente sobre nossas casas. Como seria bom enfiar uma estaca de madeira em seu coração. Como seria bom vê-lo queimando, ardendo em chamas, desfazendo-se em milhares de pedaços fuliginosos. Como seria bom acordar de manhã, sair de casa e ir até a banca de jornal comprar o diário de nossa preferência.

O problema é que não existe mais a banca de jornal e o diário de nossa preferência também já não existe mais.  


 

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