quarta-feira, 30 de agosto de 2017
A Redação do Dipo (5)
Naqueles tempos, o diretor de Redação do Diário Popular era o general Moziul Moreira Lima, ex-pracinha, que havia lutado na tomada de Monte Castelo. O general era uma garantia dos donos do jornal (a família Lisboa Soares) à Ditadura Militar de que não fariam nada que trouxesse constrangimento ao regime. O Dipo nunca foi censurado, nem precisou substituir informação por sonetos de Camões.
Em pleno regime militar, ainda que na sua derrocada final, vivia-se com aquela ansiedade do que o futuro nos reservava. Sonhava-se com a liberdade de expressão - ampla e irrestrita -, que se seguiria ao último general no poder. No nosso caso, tínhamos um general no aquário (aquela sala envidraçada, onde ficavam os chefes). Apesar da desconfiança que a geração jovem sentia em relação aos militares, o general Moziul era definitivamente um bom papo.
Ele gostava de falar da campanha brasileira na Itália, onde estivera acompanhado por Rubem Braga, o célebre cronista. Em sua mesa, grampeadores, pesos de papéis, agendas transformavam-se em ninhos de metralhadoras, baterias antiaéreas, trincheiras. Ele relatava as operações militares em Monte Castelo. Lembrava-se de uma bomba alemã, disparada por um canhão, que havia caído no QG dos brasileiros. "Se ela tivesse explodido, tínhamos perdido nossos principais comandantes, inclusive eu não estaria aqui para contar história", recordava.
O general Moziul era extremamente crítico em relação àqueles que ocupavam o poder em Brasília. Falava de um general, conhecido seu, ministro do governo João Figueiredo, que havia enriquecido, durante as construções de obras monumentais como a ponte Rio-Niterói e a Transamazônica. "Quando eu o conheci no Colégio Militar, ele usava sapato furado, porque não tinha dinheiro para comprar um novo", lembrava o general, "hoje ficou milionário".
A Redação tinha muita gente de esquerda e a maioria respeitava o general, imagino, por seu passado na luta contra o nazismo. Ele gostava de ir ao cinema, acompanhado da mulher, e me chamava para saber quais lançamentos valeriam a pena. Na época, eu fazia crítica de cinema. Ele ouvia com atenção e escolhia o filme que iria ver, com base nas minhas avaliações. Dias depois, me chamava no aquário para concordar ou discordar da minha opinião. Sua argumentação era sempre equilibrada, gentil e divertida.
O general era também condescendente com os escorregões dos meninos da reportagem. Um repórter, que ficava violento depois que bebia, atracou-se com outro repórter, que havia sido patrulheiro rodoviário em emprego anterior. O ex-patrulheiro encerrou a discussão com pancadas de impacto profundo. Os dois foram chamados à sala do general. Depois de ouvir os dois lados, o general mandou o repórter bebum para casa por uns dois dias e perdoou o ex-patrulheiro. "Se eu estivesse em seu lugar, teria feito a mesma coisa", contemporizou.
O telex da Redação ficava em uma sala fechada e era operado por um rapaz boa pinta, negro, grande e forte (telex era uma máquina barulhenta que funcionava com fitas amarelas perfuradas e servia para receber e transmitir notícias). O teletipista charmoso recebia sempre a visita de uma secretária, moça atraente e sensual. Tarde de sábado, um morador, vizinho ao prédio do Dipo, ligou para o general e pediu providências: "Estão trepando aqui na minha frente", o sujeito protestou.
O general deu um tempo. Esperou a moça sair da sala e chamou o operador do telex. Explicou que aquilo não devia ser feito em ambiente de trabalho, que pegava mal para o jornal. "Além do mais, a sala onde você está é de vidro transparente", chamou a atenção. Ninguém foi demitido por justa causa ou suspenso. Era outro mundo aquele, pré-Netflix, celular, tablet e também pré-pessoas de suscetibilidade extremada.
(na foto, o general Moziul Moreira Lima, na época em que era coronel do 23º Batalhão de Infantaria).
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