Henrique Matteucci pertencia à velha guarda do jornalismo. Em 1984, quando pisei pela primeira vez em uma redação de jornal, Matteucci, ou Matt como ele era conhecido, era editor de Local. Cronista de talento, autor de livros interessantes, Matt era apaixonado pelo boxe e havia escrito uma biografia de referência sobre o campeão Eder Jofre. Foi além: subiu no ringue e fez duas lutas. Venceu uma e perdeu outra. Escreveu uma reportagem célebre que depois viraria o livro Eu já beijei a lona.
Lembro de ter comparecido a uma noite de autógrafos quando Matt lançou O biombo grená, coletânea de contos que ele havia escrito para o Dipo. Tinha muita gente. O bar ou restaurante (não me lembro exatamente onde foi) estava repleto. Matt deve ter ficado com o braço doendo de tantos autógrafos que distribuiu naquela noite. Matt era uma celebridade do Dipo, amado por milhares de leitores (principalmente pelo público feminino) e pela quase totalidade da Redação.
Estranhei que o colega Luiz Antonio de Paula, o Luizinho, quando escreveu, em 2008, sua tese de mestrado para a USP As sete mortes do Diário Popular, não tenha feito uma única referência ao Matt. Por sinal, quando Luizinho me cita em seu trabalho comete erro. Ele se refere a uma discussão que tive com o diretor de Redação, Jorge Miranda Jordão, em torno de uma capa da Revista, que eu editava, dizendo que a matéria fazia referência à morte de Charles Bukovsky. Na realidade, o morto era o dramaturgo Samuel Beckett. O ocorrido (a morte de Beckett) aconteceu em 22 de dezembro de 1989. Bukovsky ainda estava vivo nessa época e só viria a morrer cinco anos depois. Fui premiado com uma citação na tese e ela está errada.
Matt era de esquerda, o que na época significava ser contra a Ditadura Militar, o capitalismo, a indústria cultural norte-americana, o PDS (sucessor da Arena), Paulo Maluf e a classe dominante. Matt era um sobrevivente da Greve dos Jornalistas de 1979. Continuava empregado. A velha guarda, a quase totalidade daquela geração de jornalistas talentosos, foi varrida do mapa, depois da greve fatídica, promovida pelos maluquetes da Liberdade e Luta.
Dentro do Dipo, Matt batia de frente com o então secretário de Redação, Edgard de Oliveira Barros, de posicionamento conservador e direitista. Edgard também era cronista da cidade e publicava suas histórias. Quando havia manifestação na cidade, contra a ditadura agonizante, e a polícia reprimia, Edgard costumava comentar: "A polícia não precisa saber por que está batendo, o povo sabe por que está apanhando". A marca registrada de Edgard era percorrer a Redação e chamar os repórteres e editores de "canalhas!".
A página 2 do Diário Popular tinha a coluna Que fique bem claro, criada pelo Edgard, e que trazia as opiniões dos jornalistas da Redação. Eram textos curtos, rápidos e contundentes. Diariamente, Matt produzia uma boa leva de textos. No dia seguinte, apenas alguns eram publicados. A maioria, ignorados por Edgard, que editava a página 2. Matt indignava-se. Dizia que nunca mais iria colaborar com a seção, mas acabava produzindo novos textos e a vida seguia.
Pessoalmente, eu me relacionava bem com os dois - Matt e Edgard. Matt elogiava meus textos, dava dicas profissionais importantes e procurava sempre catequizar a garotada, nós - os focas, para os ideias sagrados da esquerda. No polo oposto, Edgard um dia me chamou no aquário e pediu para eu escrever uma coluna, voltada para a ecologia (hoje, se diz "sustentabilidade"). Ele batizou a coluna de Viva a vida - nome que depois seria copiado por uma rede de lojas de moda feminina. Foi a minha primeira coluna em um jornal diário e talvez uma das primeiras do País a tratar exclusivamente de meio ambiente.
Quando o Diário Popular foi vendido, em 1988, para o então governador Orestes Quércia, chegaram os cariocas de O Dia para ocupar a Redação. Supostamente, em um primeiro momento, não era Quércia quem estava comprando o jornal, mas Ary Carvalho (dono de O Dia), ainda que o Estadão publicasse uma série de matérias, informando que o grupo Arca (Ari Carvalho) seria "laranja" do verdadeiro proprietário (Orestes Quércia). Com o tempo, Quércia assumiu a compra.
Matt seria uma das primeiras vítimas, uma das primeiras cabeças a rolar, depois da venda do Diário. Quem lhe deu a notícia da demissão, por sinal, foi o Luizinho. Para traumatizar menos a Redação, Luizinho disse a Matt que ele seria um "colaborador", podendo continuar publicando suas crônicas eventualmente. Revoltado com a demissão, Matt publicou uma foto esquisita do então secretário de segurança Luiz Antonio Fleury Filho (apadrinhado de Quércia e futuro governador). Foi a gota que transbordou o caldo. O futuro de Matt como "colaborador eventual" encerrou-se ali.
Nove anos se passaram, em novembro de 1997, lembro de estar na Redação do Diário do Grande ABC, quando recebo uma ligação do colega Anderson França, ex-editor de Internacional no Dipo. As notícias não eram boas. Matt havia morrido, vítima de um câncer fulminante.
Lembro dele sorrindo, um riso aberto, confiante. Lembro de suas histórias incríveis sobre o boxe, sobre a vida de repórter que o levou um dia a sofrer um nocaute em uma luta de verdade. Sinto saudades daquela Redação, a última romântica. Queria voltar no tempo, viver novamente tudo aquilo. Como foi bom ter convivido com jornalistas da grandeza de um Matt e que pena ter acabado.
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