sexta-feira, 19 de março de 2021

Vossa excelência faltou com o decoro

 


Estamos mal de representantes políticos. Muito mal. Quando a gente mais necessitava de lideranças, caímos em um cadafalso de luminares da mediocridade. Lá em Brasília... Ah, Brasília... Nosso querido presidente fez o possível e o impossível para destruir sua popularidade. E conseguiu. Parabéns. Pesquisas mostram que ele é o mandatário com a pior avaliação, em apenas um ano e três meses de governo. 40% dos brasileiros o consideram “ruim” ou “péssimo”. “Os outros não entenderam a pergunta”, brincou o colunista José Simão.

Aqui, em São Paulo, de onde teclo para os meus três seguidores (oi mãe, oi filhos), em meio à pandemia, tivemos um momento de “falta de decoro”. Decoro, de acordo com o dicionário, seria “decência no agir e no falar”; “seriedade nas maneiras”; “compostura”.

O nobre deputado Fernando Cury (Cidadania), eleito com 100 mil votos, assumiu seu segundo mandato em 15 de março de 2019. Em meio a uma sessão legislativa, ele alisou (apalpou?) os seios da deputada Isa Penna. Deu o maior bafafá. A nobre deputada pediu a cassação do mandato de Cury. O caso foi para a Comissão de Ética que decidiu suspender o deputado por 111 dias. Se fossem 120 dias, ele não poderia manter o gabinete aberto na Assembleia Legislativa.

Cury é filho do ex-prefeito de Botucatu Antonio Jamil Cury. O irmão dele, João Cury, também foi prefeito de Botucatu. A cidade é uma espécie de capitania hereditária.

Por onde a gente andava, em Botucatu, em época de eleição, tinha poste com banner do então candidato a deputado Fernando Cury (veja foto). Eu o conheci pessoalmente em reunião, durante um evento esportivo/cultural daquela região. Ele discursou. Foi aplaudido. Abraçado (na época, a gente podia abraçar e até beijar os candidatos). E foi embora. Não levou com ele o meu voto. Sinceramente, não senti firmeza, como se diz no boteco do seu Jair.

Durante a pugna que antecedeu a suspensão do nobre deputado Fernando Cury, os colegas do parlamentar chamaram a atenção para momentos do que eles consideraram “falta de decoro” da deputada Isa Penna, eleita pelo PSOL, representando a Mandata Coletiva e Feminista.

Na eleição para a Prefeitura de São Paulo, Isa Penna fez um vídeo para levantar a candidatura de Guilherme Boulos, seu colega do PSOL. No vídeo em questão  (https://www.youtube.com/watch?v=XD7B8k1hNIg), assistido com vivo interesse pelos parlamentares e por outros 66 mil 150 mortais, a deputada Isa Penna dança um funk. Está com uma roupa de ficar em casa (talvez um pijama). Durante a música, ela rebola e mostra a bunda, em close, para a câmera. Se minha querida avozinha viva estivesse (que a terra lhe seja leve), diria que a deputada foi “indecorosa”.

Devo constatar aos que me conhecem na intimidade, que não sou uma pessoa que apoia o decoro. Sou mesmo indecoroso. Todos os dias. A maior parte do tempo. O fato é que não sou deputado, ninguém votou em mim, nem nunca irá votar, porque candidato jamais serei. Portanto, danço mesmo funk em casa, mas não gravo vídeo, nem mando minha bunda para o restante da humanidade, que já tem desgraças demais para aturar, além do meu traseiro sofrido.

Na rede social, não faltaram comentários:

“Caraiiiii nobre deputada.....tá sensualizando bem hein! Quebra tudo...quebra tudo!”

“Eita que aqui em Pernambuco não tem uma deputada dessa”.

“Muito legal a pessoa gostar de dançar. Eu também faço isso, porém não dá pra entender a mensagem que se passa com relação à proposta política do candidato”.

“Vossa excelência está um regasso (sic) nesse vídeo. Gostei.”

Não foi o único momento de “falta de decoro”, apontado com o dedo duro pelos nobres parlamentares. Eles lembraram um momento constrangedor, para eles, em que Isa Penna decidiu homenagear as putas e leu um poema da jovem poetisa Helena Ferreira, então com 18 anos, intitulado "Sou puta, sou mulher":

Quando uso a boca vermelha

Meu salto agulha E meu vestido preto.

Sou puta: Mordo no final do beijo
Não fico reprimindo desejo
E nem me escondo na aparência de menina.
Sou uma puta de primeira
Acordo às 6:30
Pego ônibus debaixo de chuva
Não dependo de salário de macho
E compro a pílula no final do mês.
Sou uma puta com P maiúsculo
Dispenso o compromisso
Opto pela independência
Não morro de amor
Acordo sozinha
Cresço sozinha
Vivo na minha
Bebo em um bar de esquina
Vomito no chão da cozinha.
Sou uma putinha
Passo a noite em seus braços
Mas não me prendo no laço
Que você quer me prender.
Sou puta
Você tem o meu corpo
Porque eu quis te dar
E quando essa noite acabar
Eu não vou te pertencer
E se de mim você falar
Eu não vou me importar
Porque um homem que não me faz gozar
Nunca terá meu endereço.
E não é gozo de buceta
É gozo de alma
É gozo de vida
É me fazer sentir amada
Valorizada
E merecida
E se de puta você me chamar
Eu vou agradecer.
Porque a puta aqui foi criada
Por uma puta brasileira
Que ralava pra sustentar os filhos
E sofria de racismo na feira
Foi espancada e desmerecida
E mesmo sofrida
Sorria o dia inteiro
Uma puta mulher ela foi
E puta também eu quero ser.
Porque ser mulher independente
Resolvida
Segura
Divertida
Colorida
E verdadeira
Assusta os homens
E os machos
Faz acontecer um alvoroço.
Onde já se viu mulher com voz?
Tem que ser prendada e educada
E se por acaso for "amada"
Tem direito de ser morta pelo parceiro
Cachorra adestrada pelo povo brasileiro
Sai pelada na revista
Excita
Dança
Bate uma
Cai de boca
Mama ele e os amigos
E depois vai ser encontrada num bueiro
Num beco
Estuprada
Porque tava de batom vermelho
Tava pedindo
Foi merecido
E se foi crime "passional"
Pobre do rapaz
Apaixonado estragou a própria vida.
Por isso que eu sou puta
Porque sou forte
Sou guerreira
Não sou reprimida
Nem calada
Sou feminista
Sou revoltada
Indignada
E sou rotulada assim
Como PUTA!
Então que eu seja puta
E não menos do que isso”.

A leitura foi feita na casa das leis, em uma sessão normal, onde se discutia aquelas coisas chatas de sempre: verbas, projetos, orçamentos...

De camiseta vermelha (vermelha mesmo, do tipo comunista, confira a foto), com a inscrição no peito “Lute como uma garota”, Isa Penna pegou o microfone e mandou bala na poesia. Foi um deus nos acuda. O presidente apertava a campainha. Vossas excelências reclamavam, pediam que ela ficasse quieta, que parasse de falar tanta putaria naquela casa séria, de leis e trabalho honesto.

 Estaria tudo certo se a nobre deputada estivesse naqueles cafés concertos, que existiam antigamente no Bexiga, onde gente jovem, cabelo ao vento, reunia-se para ler poesias, textos teatrais e ouvir música MPB de qualidade. Talvez os 53.838 votos eleitores de Isa Penna quisessem que a deputada, ao invés de ler poesia em sessão plenária, optasse por criar leis que defendessem os transgêneros, sempre ameaçados, em um País que mais mata LGBTs no mundo. Leis que defendessem melhor as mulheres, vítimas de feminicídio. A deputada Isa Penna poderia também usar melhor o tempo na Assembleia para fiscalizar se o nosso querido governador João Doria está trabalhando direitinho, se não está favorecendo esta ou aquela empreiteira, naquele jogo sujo do toma lá dá cá.

Foi um momento de afronta, é claro. Ela fez questão de criar constrangimento, para atacar a hipocrisia dos homens que ali estavam e que, talvez, quem sabe, em algum momento de sua existência viril, tivessem usado os préstimos de garotas de programas, de mulheres de vida fácil, ou como a poesia simplificou, com o perdão da palavra, putas mesmo.

Ao reagir à agressão sexual do deputado Fernando Cury, Isa Penna protestou:

“Sou uma autoridade e mesmo assim eles não me respeitam”.

Por 5 a 4 (votação apertada), o Conselho de Ética da Assembleia Legislativa votou pela pena mais branda, mantendo as benesses do cargo para Fernando Cury, “pai, deputado, que é família, que é marido de uma só mulher, uma pessoa que ama sua esposa, um cara carinhoso”, como bem disse vossa excelência o deputado Wellington Moura, ao sair em defesa do colega.

Em artigo publicado no Uol, Isabela Del Monde, advogada da rede feminista de juristas, defendeu a parlamentar apalpada e atacou os integrantes do Conselho de Ética da Assembleia Legislativa:  

“Um já foi apontado por violência doméstica e intimidação de colega deputada; outro votou pela punição de Isa Penna por ter recitado um poema em homenagem a trabalhadoras sexuais; o terceiro é pastor evangélico, quer impedir que se fale de gênero nas escolas e teve suas contas das eleições de 2018 reprovadas; já o quarto responde a três ações na Justiça de São Paulo por improbidade administrativa; e o último já foi investigado por nada mais nada menos que tortura! Esse é um breve resumo, feito aleatoriamente, de parte da trajetória de Adalberto Freitas (PSL), Alex de Madureira (PSD), Delegado Olim (PP), Estevam Galvão (DEM) e Wellington Moura (Republicanos), os cinco deputados que votaram para diminuir a pena de Fernando Cury”.

Os quatro parlamentares que votaram pela condenação de Cury e saíram derrotados foram: o relator Emídio Souza (PT), a deputada Erica Malunguinho (PSOL), Barros Munhoz (PSDB) e a presidente Maria Lúcia Amaray (PSDB).

Em sua análise, a advogada feminista Isabela Del Monde discutia os argumentos dos deputados, que haviam votado pela punição mais leve, que apregoavam: “Como ela pode exigir respeito, se não se dá o respeito”. Era uma referência de suas excelências, é claro, ao vídeo funkeiro e à insólita homenagem às putas.

Isabela Del Monde afirmava:

“No mundo da masculinidade, torturar, intimidar e tocar sem consentimento o corpo de uma mulher são condutas corriqueiras”.

Nesse ponto, com a devida vênia, a nobre advogada Isabela Del Monde generaliza e pisa no tomate. Ela situa todos os homens “no mundo da masculinidade” e coloca todos os integrantes do sexo masculino como adeptos da tortura e da intimidação.

E os homens de bem, doutora? E os Amélios da vida? Aqueles homens que amam suas mulheres, que cozinham para elas, que as tratam com carinho e devoção. Onde eles estão, doutora? Como a senhora pode ter se esquecido deles? Ah, doutora, quantos crimes a gente comete quando generaliza.

Enfim, como me disse certa vez Bob Marley, “política não me interessa, política é negócio do demônio”.

  

  


quarta-feira, 17 de março de 2021

57 milhões 796 mil e 986 brasileiros têm culpa

 

A esquerda popularizou o termo "genocida", carimbando com ele a testa do nosso querido presidente Jair Bolsonaro. O termo "pegou", depois de o "influencer" Felipe Neto ter sido intimado a depor, após chamar Bolsonaro de "genocida". 

De acordo com o que diz o dicionário (Houaiss, por exemplo), trata-se de um exagero. Bolsonaro seria genocida se tivesse autorizado a matar 300 mil brasileiros, em campos de extermínio. Não foi o caso.

Adolf Hitler era genocida. Acreditava no extermínio de judeus, homossexuais, ciganos, comunistas, para tornar a raça humana "mais pura". Ninguém foi tão burocraticamente eficiente para traçar toda uma política genocida como os nazistas. Havia a logística, com o transporte de judeus de toda a Europa invadida, em comboios de trens. A engenharia, com a criação de fornos crematórios, câmaras de gás e a edificação de campos de concentração. Havia pesquisa, como o médico Josef Mengele, que amputava membros (sem qualquer necessidade), injetava clorofórmio no coração e produtos químicos em olhos de suas vítimas, para tentar "mudar a cor". Hitler e nazistas eram genocidas.

Felipe Neto está na lista das "100 pessoas mais influentes do mundo". Ao saber que o "youtuber" havia sido chamado para depor, o ex-presidente Lula correu para apoiá-lo e mostrar solidariedade. Político é assim: pensa com a cabeça e nunca com o fígado. Felipe Neto usou toda sua influência digital para torpedear o governo Dilma e, por extensão, o PT. Falava palavrões, xingava, esbravejava. Publiquei um vídeo dele no Facebook, com toda essa coleção de impropérios, e ele censurou a divulgação por se tratar de "propriedade pessoal". O governo Dilma nunca pensou na hipótese de chamar o golpista Felipe Neto para depor. Em outras palavras, usar a violência jurídica para silenciar um opositor. Felipe Neto xingou e atacou o governo Dilma até o final, até o impeachment. Ele mesmo declarou, recentemente, que falava barbaridades contra o PT e que nunca foi alvo de perseguição política/judiciária. Agora, no governo Bolsonaro, ele virou alvo e correu assustado, pedindo ajuda. 

Pensando com a cabeça e não com o fígado, os frequentadores de redes sociais de esquerda não pensaram duas vezes. Criaram o carimbo com o termo "genocida" e bateram com a tinta na cara do presidente, saindo em defesa do "influencer". Embora Felipe Neto seja golpista e não mereça toda essa solidariedade.

Eles sabem que Bolsonaro não é genocida de fato. Bolsonaro é um dirigente péssimo, sem a "liturgia do cargo", talvez o pior presidente brasileiro da história. Getúlio de 1930 a 1945 e os ditadores de 1964 a 1985 não entram na relação, porque não foi a gente que escolheu; eles se impuseram pelas armas, então, ficam de fora. Como costuma dizer Luis Fernando Veríssimo, "a gente tem a razão, mas eles têm as armas".

No ano passado, Bolsonaro cometeu todas as bobagens possíveis, sentado no posto mais alto da nação. A exemplo de seu homólogo, o derrotado presidente Trump, não conseguiu compreender a gravidade da doença covid-19. Foi incapaz de prever o desastre que se consumou ao longo de 12 meses. 

Escrevo agora quando morreram, em um ano, quase 300 mil brasileiros. Durante a 2ª Guerra Mundial, perderam a vida 2 mil soldados brasileiros em combate ou de doenças diversas. Somente ontem, dia 16 de março, em um único dia, foram a óbito 2.798 pessoas, vítimas de covid-19. Bem mais que todos os pracinhas que morreram, combatendo os nazistas, em solo italiano.

A sucessão de erros de Bolsonaro é tão extensa e cansativa que já foi discutida, comentada, dissecada, diariamente, por tudo quanto é analista político de esquerda, centro, direito, do raio que o parta.

Lembro de Bolsonaro em um jardim (acho que era no Palácio do Planalto), erguendo uma caixa de cloroquina, como se fosse um capitão da Seleção, ostentando a taça de campeão do mundo. Dezenas, centenas, milhares de cientistas diziam que cloroquina não era indicativo para controlar a covid-19. Mostravam estudos técnicos. Aliás, não havia qualquer tratamento para a covid-19. A única solução seria ter uma vacina. Na época, lá no início da pandemia, dizia-se que a vacina, se viesse, demoraria cerca de um ano. Esse era o tempo que os cientistas levavam para estudar o vírus e criar formas de torná-lo inofensivo ao organismo humano. Felizmente, a ciência correu contra o tempo e surgiram várias vacinas, entre elas a Coronavac, produzida no Instituto Butantan, em parceria com os chineses da Sinovac. 

Em julho do ano passado, quando os laboratórios já comercializavam a vacina, por que o governo Bolsonaro não comprou os imunizantes? Por absoluta incompreensão da realidade que o cercava.  

Lá atrás, no início das restrições de mobilidade, já se falava que a melhor resposta contra a epidemia eram o uso da máscara de proteção e o distanciamento social. Por isso, cafés, bares, restaurantes, centros comerciais de rua, shoppings, entre outros, precisariam ser fechados para evitar o contágio pelo coronavírus, que provoca a doença covid-19. 

Mesmo diante da esmagadora postura de cientistas de tudo quanto é canto da Terra, o presidente Bolsonaro insistia no negacionismo. Não usava máscara, era contra o fechamento do comércio e fazia pouco das vacinas que começavam a surgir, como a Coronavac. Dizia que não iria tomar, por não saber a origem do produto. Seus correlegionários, diplomaticamente despreparados, faziam pilhéria com os chineses. O então ministro da Educação, Abraham Weintraub, publicou um texto, como se fosse o Cebolinha (personagem de Maurício de Souza), trocando os "Ls" pelos "Rs", tirando sarro do jeito de falar dos chineses. Dias atrás, a mãe de Bolsonaro foi vacinada. O medicamento utilizado foi o "chinês" Coronavac. 

No início desta semana, ficamos sabendo que teremos um novo ministro da Saúde. É o quarto no governo Bolsonaro. É um entra e sai no Ministério, evidenciando um comando que titubeia, que não sabe bem para qual lado ir. Enquanto isso, os hospitais estão lotados. Não há mais vaga nas Unidades de Tratamento Intensivo. Pacientes morrem por falta de ar, em desespero. Nas favelas, as pessoas passam fome. Precisam sobreviver com esmolas, doações ofertadas por beneméritos. É um estado que trata mal seus governados. Não dá a mínima para o sofrimento alheio. O país é uma ilha, cercada de miseráveis por todos os lados.

Voltando à questão inicial, Bolsonaro não é genocida, mas suas ações errôneas, sua incapacidade em tratar um problema sanitário gravíssimo, inédito na história da humanidade, levaram ao quadro de terror atual. Ele é somente um presidente errado, um desastre administrativo. Foi uma péssima escolha de 57 milhões, 796 mil e 986 brasileiros. Todos esses eleitores têm culpa. Eles são culpados por terem eleito alguém que apoiava um torturador, alguém que se mostrava homofóbico e, em vários momentos, racista (há registros de falas contra japoneses, indígenas, chineses e afrodescendentes). Esse alguém, esse político obscuro, não apoiava o torturador apenas na sala escura, mas de boca aberta, a plenos pulmões, ao votar "sim" pelo impeachment da presidente Dilma, "em memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ulstra".

Na cabeça de quem seria possível imaginar que um político dessa estatura moral seria capaz de fazer um bom governo? Todos sabiam quem ele era, como ele pensava. Não ia dar certo, como de fato não deu. 

Candidato, Bolsonaro era então um político menor, extremista, que viveu quase três décadas à sombra das benesses públicas. Carregou com ele três filhos - 01, 02, 03, que abocanharam sua "teta" na carreira política. Pelo que as investigações estão apontando, Jair, Flávio e Carlos podem ter usado o esquema de "rachadinhas" para engordar o patrimônio. "Rachadinha" é um nome simpático, bonitinho. Na prática, os especialistas em política chamam de um nome mais feio: "corrupção". Com a "rachadinha", o político se apropria de parte ou da totalidade do salário de um assessor (existente ou "fantasma"). Não é algo novo, inédito, na política brasileira. É só mais um descalabro cometido pelos políticos, entre tantos. Eleito como expoente da luta contra a corrupção, contra o comunismo (sempre o comunismo!), percebe-se que não era bem assim. Como explicar os 89 mil reais, depositados por Fabrício Queiroz, na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro?  

Escolhas erradas podem representar a diferença entre a vida e a morte. No caso brasileiro, a escolha sabidamente errada de 57 milhões, 796 mil e 986 eleitores levou o País ao estado desolador em que se encontra hoje. 

Meus caros eleitores de Bolsonaro, ontem morreram quase três mil pessoas. Se o presidente, em março do ano passado, tivesse defendido o isolamento social, a paralisação das atividades de comércio de rua, o uso de máscaras e não ficasse defendendo medicamentos inócuos; muita gente teria sobrevivido. Bastava ouvir os infectologistas, os cientistas. Mas não. 

Um amigo, eleitor e admirador de Bolsonaro, morreu vítima de covid-19. Era alguém divertido, feliz da vida, que, seguindo o exemplo de seu líder maior, não usava máscaras, jogava futebol nos fins de semana, fazia churrasco com o pessoal. Não estava nem aí para o inimigo invisível. Ele ficou doente no sábado. Na sexta-feira seguinte, morreu. Não pudemos nos despedir. Não teve velório. Nada. Ele estava aqui no trabalho e, no momento seguinte, não estava mais. Nunca mais estaria. 

Nesse momento de gravidade inédita e devastadora, a população precisava mais do que um presidente. Tinha necessidade de um líder, um político carismático, inteligente, preparado, com tirocínio para o cargo. No lugar desse perfil de presidente ideal, veio o que está aí. E o resultado não poderia ser pior.   

 Estamos em março. Faltam nove meses para acabar o ano. E outros 12 meses para terminar o mandato de Bolsonaro. Pesquisa (Datafolha) indica que 46% querem impeachment de Bolsonaro. Seria um sonho, mas pensando bem tomara que ele fique até o fim do mandato. São mais 21 meses de dor e sofrimento diário. Até os 57 milhões, 796 mil e 986 eleitores aprenderem a votar. 

   

domingo, 7 de março de 2021

Documentário da Netflix erra ao conduzir Pelé para a política

 


Dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas, o documentário "Pelé"  (Netflix, 2021) tem seu melhor momento ao mostrar o maior jogador de todos os tempos relembrar os momentos que antecederam à final da Copa de 1970. 

Pelé estava no ônibus, que conduzia a delegação, e viu o veículo cercado por milhares de entusiasmados torcedores, que não viam a hora de a Seleção entrar em campo e enfrentar a aguerrida "Azurra", que dias antes havia protagonizado aquele que foi considerado o "jogo do século", ao vencer a Alemanha por 4 a 3, em uma partida dramática, fatal para os cardiopatas, com inacreditáveis cinco gols marcados em uma prorrogação.  

Aos 80 anos, combalido, chegando para a entrevista em um andador, o vencedor de três Copas do Mundo, dois campeonatos mundiais interclubes, duas Libertadores, seis campeonatos brasileiros, dez campeonatos paulistas (na época, valiam mais que a Libertadores), autor de 1.283 gols, senta-se com dificuldade em uma cadeira, postada em uma sala vazia, sem objetos de decoração, como se os produtores quisessem desnudar seu entrevistado. 

Pelé empurra o andador para o lado e aguarda as perguntas de seus entrevistados. Começa assim o documentário "Pelé". Lá pelas tantas, Pelé vai relembrar o episódio da Copa de 70. Ele menciona a chegada do ônibus da delegação no estádio. Os torcedores enlouquecidos em volta e ele não suporta a pressão e começa a chorar. 

Ele chora ao lembrar a distensão na virilha que o tirou do jogo contra a Checoslováquia, em 1962, e também o tirou da Copa. Recorda-se da pífia participação brasileira no Mundial de 1966, quando ele foi caçado em campo pelos portugueses e saiu contundido (é parecido com que jogadores de times franceses fazem hoje contra Neymar, sob o olhar omisso dos árbitros). 

Terminada a Copa de 1966, Pelé afirma que não vai mais disputar outras copas. Estava se retirando do palco. Em 1969, ele é chamado para as eliminatórias e comparece. Mais uma vez, volta a vestir a canarinho. A Seleção massacra seus adversários. Venezuela, Colômbia e Paraguai são goleados sem perdão por um time de "feras", como dizia o técnico João Saldanha. Saldanha, que era do Partido Comunista Brasileiro, acabou sendo demitido pela Ditadura Militar. Assumiu Zagallo que arrojadamente montou um ataque só com camisas 10 (Jairzinho, Gerson, Tostão, Pelé e Rivellino). 

Em 1970, tinha finalmente chegado o jogo da final contra a Itália. O "filme" das copas anteriores passa pela cabeça de Pelé e ele chora, chora convulsivamente, diante dos outros jogadores que não entendiam o que acontecia com o maior craque de todos os tempos, que viria a ser o "atleta do século". Era um momento de desabafo, de exorcizar os demônios. Ele enxugou as lágrimas e estava pronto para deixar seu legado maior: marcar com ferro quente em nossa memória sua vitória mais contundente. A Seleção fez uma partida que encheu os olhos da humanidade. Foi uma participação perfeita. Vitória de 4 a 1. 

E que Copa foi aquela...Brasil 4 x Checoslováquia 1, Brasil 1 x Inglaterra 0, Brasil 3 x Romênia 2, Brasil 4 x Peru 2, Brasil 3 x Uruguai 1.

Muitos cronistas esportivos dizem que aquela seleção de 1970 foi a melhor de todas. Pessoalmente, concordo com eles. Lembro de assistir aos jogos com um grupo de amigos, lembro de nossas comemorações e, depois da vitória sobre a Itália, estar na avenida 23 de Maio, paralisada pelos torcedores e veículos, e a gente se abraçando com desconhecidos, agitando bandeiras, gritando e chorando de alegria. Era uma catarse. O País, sob a mais dura Ditadura Militar, abria uma janela para a felicidade. Por isso, aproveitávamos ao máximo. Como era bom ver aquele time jogar, como ele fazia a gente sentir prazer.

O documentário da Netflix tem esse momento de confissão. Vi dezenas de entrevistas de Pelé e sinceramente não me lembrava dessa história, que tinha se passado no ônibus, momentos antes da final. Pelé se emociona. Começa a chorar. Pede desculpas. Depois, o documentário prossegue. Mas esse é realmente o melhor momento, o mais humano, o mais penetrante. 

Vencer uma Copa do Mundo é atingir o grau máximo no futebol. Comparado com a graduação acadêmica, é igual a conquistar um doutorado. Messi venceu a Liga dos Campeões com o Barcelona. Muito bom. Equivale a um mestrado. Messi nunca venceu uma Copa do Mundo. É igual a Zico. Ambos, só têm o mestrado. Nenhum deles conquistou o título de "doutor". Pelé tem doutorado. É rei e doutor. PhD em futebol.  

O documentário erra ao insistir na relação entre Pelé e os ditadores de plantão. Mostra imagens da Seleção campeã, sendo recepcionada por Médici, que ergue em triunfo a taça Jules Rimet. Fica subentendido que Pelé apoiava a Ditadura. Isso nunca ocorreu, porque Pelé nunca tomou partido. Nem a favor, nem contra.  

Para os documentaristas David Tryhorn e Ben Nicholas, Pelé teria "obrigação" de se posicionar contra a Ditadura. Seguir o exemplo de Muhammad Ali, que se negou a lutar no Vietnã e, por isso, foi preso e perseguido em seu país (Estados Unidos). O ideal seria Pelé estar preso e torturado em 1970 e não disputar a Copa? 

O problema, caros Tryhorn e Nicholas, é que Pelé transcende o político. Pelé não faz parte de partidos políticos. Nunca fez. Pelé escreveu sua história dentro das quatro linhas. E que história... Antes dele, o Brasil era um lugar desconhecido, um fim de mundo qualquer. Pelé colocou o Brasil no mapa. Deu ao país uma identidade, um lugar de honra. 

Lembro de estar em Champagne, interior da França, onde trabalhava na colheita de uvas, em 1982. O pessoal da vindima organizou uma pelada e tive a sorte de fazer vários gols. Daquele dia em diante, passei a ser chamado de "Pelezinho". Na Europa, onde você chegava nos anos 1980 e mesmo nos anos 1990, era só falar a palavra mágica "Brasil", que logo em seguida o interlocutor dizia, com olhar cheio de admiração: "Brasil! Pelé".  

Por que cargas d'água Pelé estragaria sua biografia ao fazer parte do MDB, por exemplo? Ou do PT? Ou do PSL? Ou de qualquer outro partido político, que só tem trazido vergonha para os brasileiros? Pelé fez muito bem em ficar acima dos partidos políticos. 

Ao assumir o Ministério dos Esportes, em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, Pelé criou uma lei específica para tentar acabar com a corrupção e dar mais liberdade aos atletas, que antes tinham uma relação de "escravidão" com os clubes. Ficou conhecida como a "Lei Pelé".

O documentário não mostra, mas é bom lembrar que Pelé declarou que "brasileiro não está preparado para votar". Quando a gente constata que 57 milhões de eleitores deram a Presidência do Brasil a um político que homenageia torturadores, ficamos assim, meio que envergonhados, em constatar que Pelé estava com a razão. Nada a ver com a volta da Ditadura, mas, sinceramente, estava na hora dessa "gente de valor" começar a estudar história, ler livros, se informar. É preciso estar "preparado" para votar. Preparado intelectualmente. 

Por causa desses 57 milhões 796 mil e 986 brasileiros, que apoiaram alguém que é declaradamente homofóbico, não temos vacina contra a covid-19, não temos plano de vacinação, estamos morrendo às pencas, destruindo a imagem do país tropical, "abençoado por Deus e bonito por natureza".

Sinto pena da garotada de hoje que não terá a mesma sorte que tive. No alambrado do Pacaembu (antes de ser privatizado), assisti a jogos memoráveis, na companhia do meu pai. Vi Pelé fazer gols, jogadas inacreditáveis, driblar e nos enfeitiçar com seu brilho único. Aquele uniforme branco do Santos era um deslumbre. Vi Mané Garrincha também. Se fechar os olhos, vejo Garrincha em duelo contra Geraldo Scotto, o lateral esquerdo do Palmeiras, que conseguia dar o bote e, às vezes (nem sempre), desarmar Garrincha. Quando isso acontecia a gente gritava, como se o Palmeiras tivesse feito um gol.

Sinto pena da garotada por não poder frequentar os estádios por causa da pandemia, por culpa da inaptidão de um presidente negacionista e, pior, quando isso tudo for deixado para trás, sinto pena da garotada que não encherá as arquibancadas porque sem craques não há futebol que resista.

E sinto mais pena ainda dos argentinos que nunca tiveram um Pelé e tiveram que se contentar com um Maradona.

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