domingo, 7 de março de 2021

Documentário da Netflix erra ao conduzir Pelé para a política

 


Dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas, o documentário "Pelé"  (Netflix, 2021) tem seu melhor momento ao mostrar o maior jogador de todos os tempos relembrar os momentos que antecederam à final da Copa de 1970. 

Pelé estava no ônibus, que conduzia a delegação, e viu o veículo cercado por milhares de entusiasmados torcedores, que não viam a hora de a Seleção entrar em campo e enfrentar a aguerrida "Azurra", que dias antes havia protagonizado aquele que foi considerado o "jogo do século", ao vencer a Alemanha por 4 a 3, em uma partida dramática, fatal para os cardiopatas, com inacreditáveis cinco gols marcados em uma prorrogação.  

Aos 80 anos, combalido, chegando para a entrevista em um andador, o vencedor de três Copas do Mundo, dois campeonatos mundiais interclubes, duas Libertadores, seis campeonatos brasileiros, dez campeonatos paulistas (na época, valiam mais que a Libertadores), autor de 1.283 gols, senta-se com dificuldade em uma cadeira, postada em uma sala vazia, sem objetos de decoração, como se os produtores quisessem desnudar seu entrevistado. 

Pelé empurra o andador para o lado e aguarda as perguntas de seus entrevistados. Começa assim o documentário "Pelé". Lá pelas tantas, Pelé vai relembrar o episódio da Copa de 70. Ele menciona a chegada do ônibus da delegação no estádio. Os torcedores enlouquecidos em volta e ele não suporta a pressão e começa a chorar. 

Ele chora ao lembrar a distensão na virilha que o tirou do jogo contra a Checoslováquia, em 1962, e também o tirou da Copa. Recorda-se da pífia participação brasileira no Mundial de 1966, quando ele foi caçado em campo pelos portugueses e saiu contundido (é parecido com que jogadores de times franceses fazem hoje contra Neymar, sob o olhar omisso dos árbitros). 

Terminada a Copa de 1966, Pelé afirma que não vai mais disputar outras copas. Estava se retirando do palco. Em 1969, ele é chamado para as eliminatórias e comparece. Mais uma vez, volta a vestir a canarinho. A Seleção massacra seus adversários. Venezuela, Colômbia e Paraguai são goleados sem perdão por um time de "feras", como dizia o técnico João Saldanha. Saldanha, que era do Partido Comunista Brasileiro, acabou sendo demitido pela Ditadura Militar. Assumiu Zagallo que arrojadamente montou um ataque só com camisas 10 (Jairzinho, Gerson, Tostão, Pelé e Rivellino). 

Em 1970, tinha finalmente chegado o jogo da final contra a Itália. O "filme" das copas anteriores passa pela cabeça de Pelé e ele chora, chora convulsivamente, diante dos outros jogadores que não entendiam o que acontecia com o maior craque de todos os tempos, que viria a ser o "atleta do século". Era um momento de desabafo, de exorcizar os demônios. Ele enxugou as lágrimas e estava pronto para deixar seu legado maior: marcar com ferro quente em nossa memória sua vitória mais contundente. A Seleção fez uma partida que encheu os olhos da humanidade. Foi uma participação perfeita. Vitória de 4 a 1. 

E que Copa foi aquela...Brasil 4 x Checoslováquia 1, Brasil 1 x Inglaterra 0, Brasil 3 x Romênia 2, Brasil 4 x Peru 2, Brasil 3 x Uruguai 1.

Muitos cronistas esportivos dizem que aquela seleção de 1970 foi a melhor de todas. Pessoalmente, concordo com eles. Lembro de assistir aos jogos com um grupo de amigos, lembro de nossas comemorações e, depois da vitória sobre a Itália, estar na avenida 23 de Maio, paralisada pelos torcedores e veículos, e a gente se abraçando com desconhecidos, agitando bandeiras, gritando e chorando de alegria. Era uma catarse. O País, sob a mais dura Ditadura Militar, abria uma janela para a felicidade. Por isso, aproveitávamos ao máximo. Como era bom ver aquele time jogar, como ele fazia a gente sentir prazer.

O documentário da Netflix tem esse momento de confissão. Vi dezenas de entrevistas de Pelé e sinceramente não me lembrava dessa história, que tinha se passado no ônibus, momentos antes da final. Pelé se emociona. Começa a chorar. Pede desculpas. Depois, o documentário prossegue. Mas esse é realmente o melhor momento, o mais humano, o mais penetrante. 

Vencer uma Copa do Mundo é atingir o grau máximo no futebol. Comparado com a graduação acadêmica, é igual a conquistar um doutorado. Messi venceu a Liga dos Campeões com o Barcelona. Muito bom. Equivale a um mestrado. Messi nunca venceu uma Copa do Mundo. É igual a Zico. Ambos, só têm o mestrado. Nenhum deles conquistou o título de "doutor". Pelé tem doutorado. É rei e doutor. PhD em futebol.  

O documentário erra ao insistir na relação entre Pelé e os ditadores de plantão. Mostra imagens da Seleção campeã, sendo recepcionada por Médici, que ergue em triunfo a taça Jules Rimet. Fica subentendido que Pelé apoiava a Ditadura. Isso nunca ocorreu, porque Pelé nunca tomou partido. Nem a favor, nem contra.  

Para os documentaristas David Tryhorn e Ben Nicholas, Pelé teria "obrigação" de se posicionar contra a Ditadura. Seguir o exemplo de Muhammad Ali, que se negou a lutar no Vietnã e, por isso, foi preso e perseguido em seu país (Estados Unidos). O ideal seria Pelé estar preso e torturado em 1970 e não disputar a Copa? 

O problema, caros Tryhorn e Nicholas, é que Pelé transcende o político. Pelé não faz parte de partidos políticos. Nunca fez. Pelé escreveu sua história dentro das quatro linhas. E que história... Antes dele, o Brasil era um lugar desconhecido, um fim de mundo qualquer. Pelé colocou o Brasil no mapa. Deu ao país uma identidade, um lugar de honra. 

Lembro de estar em Champagne, interior da França, onde trabalhava na colheita de uvas, em 1982. O pessoal da vindima organizou uma pelada e tive a sorte de fazer vários gols. Daquele dia em diante, passei a ser chamado de "Pelezinho". Na Europa, onde você chegava nos anos 1980 e mesmo nos anos 1990, era só falar a palavra mágica "Brasil", que logo em seguida o interlocutor dizia, com olhar cheio de admiração: "Brasil! Pelé".  

Por que cargas d'água Pelé estragaria sua biografia ao fazer parte do MDB, por exemplo? Ou do PT? Ou do PSL? Ou de qualquer outro partido político, que só tem trazido vergonha para os brasileiros? Pelé fez muito bem em ficar acima dos partidos políticos. 

Ao assumir o Ministério dos Esportes, em 1995, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, Pelé criou uma lei específica para tentar acabar com a corrupção e dar mais liberdade aos atletas, que antes tinham uma relação de "escravidão" com os clubes. Ficou conhecida como a "Lei Pelé".

O documentário não mostra, mas é bom lembrar que Pelé declarou que "brasileiro não está preparado para votar". Quando a gente constata que 57 milhões de eleitores deram a Presidência do Brasil a um político que homenageia torturadores, ficamos assim, meio que envergonhados, em constatar que Pelé estava com a razão. Nada a ver com a volta da Ditadura, mas, sinceramente, estava na hora dessa "gente de valor" começar a estudar história, ler livros, se informar. É preciso estar "preparado" para votar. Preparado intelectualmente. 

Por causa desses 57 milhões 796 mil e 986 brasileiros, que apoiaram alguém que é declaradamente homofóbico, não temos vacina contra a covid-19, não temos plano de vacinação, estamos morrendo às pencas, destruindo a imagem do país tropical, "abençoado por Deus e bonito por natureza".

Sinto pena da garotada de hoje que não terá a mesma sorte que tive. No alambrado do Pacaembu (antes de ser privatizado), assisti a jogos memoráveis, na companhia do meu pai. Vi Pelé fazer gols, jogadas inacreditáveis, driblar e nos enfeitiçar com seu brilho único. Aquele uniforme branco do Santos era um deslumbre. Vi Mané Garrincha também. Se fechar os olhos, vejo Garrincha em duelo contra Geraldo Scotto, o lateral esquerdo do Palmeiras, que conseguia dar o bote e, às vezes (nem sempre), desarmar Garrincha. Quando isso acontecia a gente gritava, como se o Palmeiras tivesse feito um gol.

Sinto pena da garotada por não poder frequentar os estádios por causa da pandemia, por culpa da inaptidão de um presidente negacionista e, pior, quando isso tudo for deixado para trás, sinto pena da garotada que não encherá as arquibancadas porque sem craques não há futebol que resista.

E sinto mais pena ainda dos argentinos que nunca tiveram um Pelé e tiveram que se contentar com um Maradona.

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