quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

PT precisa de autocrítica e expurgo para sua redenção

 

Em plena greve dos metalúrgicos, em 1978, eu fazia frila para um jornal de esquerda, que era impresso todo em vermelho. Eles não costumavam pagar os colaboradores. Havia uma lógica nisso, mas nunca entendi bem qual era. Eu sei que, para cobrir uma pauta, fui parar no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Tarde fria, com a neblina característica daquela cidade.  

Ditadura militar, as greves estavam proibidas, livros de autores como Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, Jorge Amado foram censurados, filmes vetados, atores de teatro espancados, gente torturada e morta e mesmo assim os metalúrgicos, que trabalhavam nas grandes montadoras, em um ato político de coragem invejável, desafiaram os militares e paralisaram as fábricas. 

Na época, Lula não usava barba. Apenas, um bigode. Havia ali no sindicato, grevistas, muita agitação nos corredores e Lula era um polo magnético, um buraco negro atraindo e puxando tudo em volta dele. Nos anos 70, falava-se muito em aura. Então, havia uma aura de celebridade ao redor do líder metalúrgico, que ganhava as manchetes no Brasil e no exterior.

Eu estava ao lado de Lula, anotando suas declarações, quando surge alguém e dá uma caixa de sapato para ele. Lula para de falar. Abre a caixa e seu rosto fica iluminado por um sorriso de satisfação. Dentro, um par de sapatos de cor escura. Lula perguntou para a pessoa, que tinha lhe dado o agrado: "É mesmo cromo alemão?". O outro confirmou. 

Não sei por que, achei aquilo um mau presságio. Maior greve, milhares de trabalhadores iam perder o emprego, um momento de ruptura institucional e o cara que estava por trás de tudo aquilo ficava feliz, como uma criança, ao receber um presente...Um par de sapatos?

Nos meus anos de jornalista, em empresas de comunicação, nunca aceitei presentes, que os colegas chamavam de "jabaculê". Passei por situações constrangedoras, com assessor me ligando, xingando, por eu ter recusado um presente. "Você acha que estou querendo te comprar com essa porra?", um assessor gritou comigo no telefone. 

Quer saber, sim, você estava tentando me comprar com o seu presentinho. "Quem presenteia quer seduzir", dizia o camarada Marx. Hoje, o "jacabulê" institucionalizou-se. Os tais "influencers" ganham para divulgar produtos. Qual é a ética desse procedimento? Talvez, não haja ética alguma. As pessoas esqueceram esse comprometimento, em determinado momento da caminhada.

Dois anos depois, em 1980, o PT era criado e nascia espalhando-se vertical e horizontalmente por todo o País. O PT era uma marca de sucesso. A estrela vermelha de cinco pontas, idealizada pelo jornalista Julinho de Grammont no Bar da Rosa (vizinho ao Sindicato dos Metalúrgicos), era vendida em broches, em bandeirinhas, em adesivos de plástico. Um sucesso! 

(Em conversa comigo, Grammont falou que estava com colegas no Bar da Rosa, tomando conhaque Domecq, quando desenhou um esboço da estrela em cima da mesa de madeira. A Rosa, dona do bar, guardou durante alguns anos a mesa, até a peça ser substituída por mobiliário moderno. A estrela ganharia contornos mais definidos com a ajuda de Hélio Vargas, ilustrador, que fazia um personagem de muito sucesso no jornal do sindicato, chamado João Ferrador. "Muitos metalúrgicos achavam que João Ferrador existia mesmo", me contou Grammont, pouco antes de falecer em um acidente de carro na via Anchieta.)

O crescimento do PT começa de forma exponencial crescente. Nove anos depois da fundação do partido, Lula disputa a Presidência e vai para o segundo turno com Collor. Erundina conquista a prefeitura de São Paulo, em uma virada incrível sobre Paulo Maluf. A campanha de Collor é rasteira, fedorenta. Traz uma ex-mulher de Lula para atingir o candidato petista no seu lado mais vulnerável: a intimidade. Surge uma filha de Lula, "bomba bomba", como um asteroide fumegante, que desaba sobre o telhado dos eleitores. No outro dia, Lula aparece com a filha, que fica muda diante da TV (por que ela ficou muda?), enquanto Lula fala que era ele quem cuidava da menina.  

No debate na TV Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então todo poderoso executivo da TV de Roberto Marinho, pega pastas e enche de papéis em branco e as entrega a Collor, como se ele fosse fazer alguma grande denúncia contra o ex-metalúrgico. No debate, Collor menciona, com inveja simulada, que Lula tinha um "três em um" em sua casa. Três em um, na época, era vitrola, rádio e toca-fitas. Lula fica constrangido, responde de forma enviesada, esquecendo de mencionar no debate que Collor não tinha apenas um prosaico "três em um", mas era dono de uma gigantesca retransmissora de TV em Alagoas, filiada da Rede Globo.

Como sempre, o surrado discurso anticomunista da direita tornava-se próximo das pessoas comuns. Lembro de levar minha mãe votar no Liceu Pasteur, na Vila Clementino, e na porta do colégio eleitoral um brucutu agitava a bandeira do Brasil e gritava para nós: "Não vamos deixar os comunistas tomar o poder. Vote em Collor". 

O governo Collor acaba, desmanchado pela corrupção. Assume o vice, Itamar Franco, que faz um "mandato tampão" excepcional, enfiando uma estaca de madeira no coração da inflação, que era de seis ou mais dígitos. Viriam oito anos de Fernando Henrique Cardoso, que tinha, sem dúvida, a liturgia do cargo. Era um presidente educado, gentil, inteligente, sociólogo, acadêmico, ex-professor, na Universidade de Nanterre, do líder da revolta estudantil de 1968, em Paris, Daniel Cohn-Bendit, o "Danny le rouge". 

Diante daquilo que temos hoje no Palácio do Planalto, sinto muita falta da polidez ilustrada de FHC.

Na campanha eleitoral de 1998, FHC é exibido com terno, gravata, asseado e bem disposto, sentado ao lado de um cardeal (ou equivalente), no que parecia ser um jardim edílico; enquanto Lula e dona Marisa faziam uma caminhada cansativa, de doer os calos, dar bolhas nos pés, pelo abandonado Caminho do Mar. 

Nos anos seguintes, a campanha do PT torna-se profissional ("brilha uma estrela, Lula lá") e vai garantir a eleição de Lula em 2002; sua reeleição em 2006; a eleição de Dilma Roussef, em 2010; e também a reeleição de Dilma, em 2014.

O PT não era apenas uma marca de sucesso. O PT tinha conquistado o poder. Dominava estados e prefeituras. Em 2002, eu estava no luxuoso Hotel Intercontinental, em São Paulo, fazendo a cobertura do discurso de vitória de Lula. A emoção era contagiante. Vinte e dois anos depois de fundar o PT, Lula chegava à Presidência e rebatia Regina Duarte e direitistas, apavorados diante do "perigo vermelho": "A esperança venceu o medo". 

Os governos Lula até a derrocada de Dilma Roussef foram de crescimento econômico, elevação do IDH, investimento em educação, saúde e estabilidade econômica. O País ia bem. A cada nova eleição, Lula e os políticos, que tinham sua benção, eram sacramentados pelos votos.

Em relação aos inimigos, Lula agia de forma pragmática. Deixava o fígado de lado. No apoio a Fernando Haddad, que venceu a eleição para a prefeitura de São Paulo, chegou a ir com o seu candidato dar a mão a Paulo Maluf. Por mais que você limpe com álcool, passe desinfetante, não tem como ficar realmente limpo, depois de dar a mão a Paulo Maluf. 

Velhos oligarcas como José Sarney, Fernando Collor viravam aliados. A Rede Globo ia bem, obrigado, ganhando verbas do poder público, se municiando, esperando a hora de atacar e derrubar o governo petista. 

Então, desabaram os escândalos. O primeiro "Mensalão", com Roberto Jefferson que, entrevistado por Renata Lo Prete, da "Folha de S.Paulo", contou que o PT comprava deputados por 30 mil reais, para votar projetos de interesse do governo. Veio o "Petrolão", gigantesco esquema de corrupção, denunciado pela operação Lava Jato, que revelou - finalmente - as entranhas das negociatas entre empreiteiras, partidos políticos, operadores, que deram um prejuízo estimado de 42 bilhões de reais à Petrobras. Políticos, empreiteiros, doleiros, funcionários foram presos e condenados. A Lava Jato conseguiu recuperar cerca de 6 bilhões de reais. 

O esquema era simples: a empreiteira era contratada pela Petrobras e cobrava um valor superfaturado pela obra. A quantia "extra" paga pelos empresários, para conseguir fazer a obra, ia para os cofres dos partidos e de políticos corruptos.

Nesse momento, a estrela do PT começou a perder o brilho. Foi se desfazendo aos poucos. Foi se descolorindo. 

Até então, era impensável que o PT, um partido de trabalhadores, pudesse estar envolvido em tanta coisa suja, imoral, antiética. Como um partido, que se pretendia ser diferente dos demais, podia ter caído nas mesmas artimanhas dos partidos tradicionalmente corruptos? Era um descalabro. Tudo bem, o PT não havia inventado a corrupção, mas o partido não tinha o direito de mergulhar no mesmo jogo sujo.

A Lava Jato foi atrás de Lula. O promotor Deltan Dallagnol e o então juiz Sergio Moro fecharam o cerco. Em setembro de 2016, Dallagnol convoca a imprensa e exibe um "power point" amador e pouco convincente com flechas apontando para o "chefão do crime" (Lula). 

Lula seria condenado e preso por Sergio Moro. Ficaria na prisão por 580 dias. Investigado pelo apartamento no Guarujá e pelo sítio em Atibaia, não havia realmente provas de que os imóveis pertencessem a Lula, nem que o dinheiro de propina da Petrobras fora usado como favorecimento ao ex-presidente. 

A Vaza Jato, série de documentos revelados pelo site "The Intercept Brasil", com colaboração do premiado jornalista Glenn Greenwald, revelou que os promotores da Lava Jato mantinham uma relação "incestuosa" com o juiz Sergio Moro, que orientava e aconselhava a acusação, em uma inédita - e preocupante - demonstração de parcialidade entre acusador e juiz.  

Moro conquistou a simpatia do público e deu um tiro no pé ao aceitar o Ministério da Justiça, oferecido pelo recém-eleito Jair Bolsonaro. Moro, que havia abandonado sua carreira de juiz federal, encerraria sua passagem-relâmpago no Ministério da Justiça, depois de 15 meses ou 480 dias. Moro saiu atirando. Acusou Bolsonaro de interferir nas investigações da Polícia Federal.

Em novembro de 2020, o PT foi varrido das urnas. Não conseguiu eleger nem um único candidato a prefeito nas capitais. Cansados, os eleitores derrotaram Lula e também Bolsonaro. 

O que fazer agora com a estrela do PT? Em uma postagem recente, pré-eleições municipais, o jornalista Ricardo Kotscho escreveu, em sua coluna no Uol: "Aos 40 anos, PT chega às eleições envelhecido, sem votos e sem rumo". Como se tivesse bola de cristal, Kotscho previa que o PT dificilmente elegeria algum candidato nas capitais. O PT pediu direito de resposta, mas a resposta principal veio das urnas. O Partido dos Trabalhadores naufragou de fato na eleição municipal. Kotscho foi secretário de imprensa do Governo Lula, de 2003 a 2004, portanto devia saber o que estava escrevendo.

O PT conta com 1 milhão e 500 mil filiados. É uma força política considerável. Mas parece ter perdido o magnetismo. Enquanto nos anos 80, o partido crescia, a marca brilhava intensamente, era um centro de atração irrefreável (lembro das barraquinhas de feira do PT, vendendo broches, bandeiras e adesivos; lembro das militantes de minissaia, batendo na porta dos eleitores; lembro dos patrões proibindo os jornalistas de usar o broche estrelado do PT); hoje, as pessoas querem distância da estrela. 

Talvez, uma solução possível fosse um expurgo, semelhante ao célebre discurso de Nikita Kruschev, em 1956, diante de 1.500 estupefatos dirigentes do Partido Comunista da URSS, denunciando a prisão de 1 milhão e 500 mil pessoas e assassinatos de outras 690 mil, todas vítimas do ditador soviético Josef Stalin, "o guia genial de todos os povos". Kruschev lavou roupa suja em público. Jogou merda no ventilador. 

O PT deveria fazer o mesmo, uma rigorosa autocrítica, um expurgo cortando na própria carne, em busca de sobrevivência e redenção.     

 

       


 

   

   

     

  


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