Seu autor era completamente desconhecido. Chamava-se Émile Ajar. Sucesso de vendas, o livro foi agraciado com o Goungourt - o principal prêmio literário francês.
Em 1980, morre o escritor Romain Gary, mundialmente conhecido, vencedor do prêmio Gouncourt, em 1956. Em seu testamento, o imigrante lituano, radicado na França, Romain Gary confessava que ele e "Émile Ajar" eram a mesma pessoa.
Lançado no Brasil pela editora Todavia, "A vida pela frente" não perdeu a atualidade. É daqueles livros para se ler em um fim de semana. Conta a história de um garoto árabe, de olhos azuis, chamado Momo (Mohammed), sem pai, sem mãe, entregue aos cuidados de Madame Rosa, ex-prostituta, que ganhava a vida cuidando dos filhos de prostitutas ainda em atividade. Eles moram no quartier popular de Belleville, no sexto andar de um prédio sem elevador.
Madame Rosa é muito gorda, está com quase 70 anos, sofre de várias morbidades, mas - como gosta de afirmar Momo - "não tem câncer".
Madame Rosa é judia e sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz. Cada vez que precisa subir as escadas e chegar até o 6º andar, onde mora, Madame Rosa é tão imensa, que precisa ser auxiliada pelas crianças, que cuida, e até por parrudos carregadores de piano.
O autor traz, então, um menino muçulmano, sendo cuidado por uma velha judia. A mensagem subliminar é que todos nós precisamos de alguém, independente de nossas origens e crenças. Aliás, afirmações de raça, origem, religião costumam ter o mérito de atrapalhar as relações.
No velho prédio de Belleville, a desgraça e a miséria une todos, sem ligar para procedências. No prédio, moram imigrantes africanos, árabes e até franceses.
A casa de Madame Rosa é frequentada por cafiolas. Um deles, o sr. N'Da Amédée, analfabeto, pede para Madame Rosa escrever cartas para seus parentes da África, contando suas realizações imaginárias na França, onde estaria cursando uma suposta faculdade de engenharia.
Madame Lola, vizinha de Madame Rosa, veio do Senegal. Lá, ele era um robusto e agressivo lutador de boxe. Em Paris, ganhou seios, bunda, feminilidade e leva a vida prostituindo-se no Bois de Boulogne. É a "travestite", como Momo a chama.
Na versão da Netflix, Momo é um garoto negro. Madame Rosa é vivida por Sophia Loren, magérrima, dirigida por seu filho Eduardo Ponti. Outra personagem - Madame Lola - é uma travesti branca, que toca discos de autores brasileiros. São remanejamentos que a gente até entende, mas, para quem conhece o livro original, causa estranhamento.
Sophia Loren, símbolo sexual nos anos 50 e 60, está com 86 anos. Ela povoava os sonhos eróticos de gerações de meninos e adolescentes. Suas fotos emblemáticas, com os seios em projeção nos decotes ousados, ornavam as paredes dos quartos de milhares de garotos. É preciso ter muita coragem para expor sua velhice inexorável, diante das câmeras.
Bem diferente de Greta Garbo, "a esfinge sueca", que abandonou a carreira no cinema, em pleno apogeu, quando estava com 36 anos, nunca mais quis ficar diante de uma câmera e foi viver uma vida reclusa em Nova York. Procurada pela imprensa, alvo crônico dos paparazzi, Greta Garbo costumava dizer àqueles que batiam à sua porta: "Quero ficar só" (I want to be alone). Frase que se tornaria emblemática.
A velhice de Sophia Loren, atirada sem fotoshop na tela, tem essa simbologia triste da vida e da beleza efêmeras. Ao vê-la assim, percebemos que os fãs, aqueles meninos que a projetavam em seus desejos proibidos, também se tornaram idosos. Seus acalentados sonhos eróticos também desapareceram, tristemente, na neblina do tempo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário