sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

"A vida pela frente" ganhou a versão "Rosa e Momo"



Quando "A vida pela frente" foi lançado na França, em 1975, o livro transformou-se em sucesso imediato. Trazia temas em ebulição, como conflito árabe-israelense, a relação entre argelinos e franceses, imigrantes excluídos, preconceito racial, LGBTs e eutanásia. 

Seu autor era completamente desconhecido. Chamava-se Émile Ajar. Sucesso de vendas, o livro foi agraciado com o Goungourt - o principal prêmio literário francês. 

Em 1980, morre o escritor Romain Gary, mundialmente conhecido, vencedor do prêmio Gouncourt, em 1956. Em seu testamento, o imigrante lituano, radicado na França, Romain Gary confessava que ele e "Émile Ajar" eram a mesma pessoa. 

Lançado no Brasil pela editora Todavia, "A vida pela frente" não perdeu a atualidade. É daqueles livros para se ler em um fim de semana. Conta a história de um garoto árabe, de olhos azuis, chamado Momo (Mohammed), sem pai, sem mãe, entregue aos cuidados de Madame Rosa, ex-prostituta, que ganhava a vida cuidando dos filhos de prostitutas ainda em atividade. Eles moram no quartier popular de Belleville, no sexto andar de um prédio sem elevador. 

Madame Rosa é muito gorda, está com quase 70 anos, sofre de várias morbidades, mas - como gosta de afirmar Momo - "não tem câncer".
Madame Rosa é judia e sobrevivente do campo de extermínio de Auschwitz. Cada vez que precisa subir as escadas e chegar até o 6º andar, onde mora, Madame Rosa é tão imensa, que precisa ser auxiliada pelas crianças, que cuida, e até por parrudos carregadores de piano. 

O autor traz, então, um menino muçulmano, sendo cuidado por uma velha judia. A mensagem subliminar é que todos nós precisamos de alguém, independente de nossas origens e crenças. Aliás, afirmações de raça, origem, religião costumam ter o mérito de atrapalhar as relações.

No velho prédio de Belleville, a desgraça e a miséria une todos, sem ligar para procedências. No prédio, moram imigrantes africanos, árabes e até franceses. 

A casa de Madame Rosa é frequentada por cafiolas. Um deles, o sr. N'Da Amédée, analfabeto, pede para Madame Rosa escrever cartas para seus parentes da África, contando suas realizações imaginárias na França, onde estaria cursando uma suposta faculdade de engenharia. 

Madame Lola, vizinha de Madame Rosa, veio do Senegal. Lá, ele era um robusto e agressivo lutador de boxe. Em Paris, ganhou seios, bunda, feminilidade e leva a vida prostituindo-se no Bois de Boulogne. É a "travestite", como Momo a chama. 

Na versão da Netflix, Momo é um garoto negro. Madame Rosa é vivida por Sophia Loren, magérrima, dirigida por seu filho Eduardo Ponti. Outra personagem - Madame Lola - é uma travesti branca, que toca discos de autores brasileiros. São remanejamentos que a gente até entende, mas, para quem conhece o livro original, causa estranhamento.

Sophia Loren, símbolo sexual nos anos 50 e 60, está com 86 anos. Ela povoava os sonhos eróticos de gerações de meninos e adolescentes. Suas fotos emblemáticas, com os seios em projeção nos decotes ousados, ornavam as paredes dos quartos de milhares de garotos. É preciso ter muita coragem para expor sua velhice inexorável, diante das câmeras. 

Bem diferente de Greta Garbo, "a esfinge sueca", que abandonou a carreira no cinema, em pleno apogeu, quando estava com 36 anos, nunca mais quis ficar diante de uma câmera e foi viver uma vida reclusa em Nova York. Procurada pela imprensa, alvo crônico dos paparazzi, Greta Garbo costumava dizer àqueles que batiam à sua porta: "Quero ficar só" (I want to be alone). Frase que se tornaria emblemática. 

A velhice de Sophia Loren, atirada sem fotoshop na tela, tem essa simbologia triste da vida e da beleza efêmeras. Ao vê-la assim, percebemos que os fãs, aqueles meninos que a projetavam em seus desejos proibidos, também se tornaram idosos. Seus acalentados sonhos eróticos também desapareceram, tristemente, na neblina do tempo.       

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

PT precisa de autocrítica e expurgo para sua redenção

 

Em plena greve dos metalúrgicos, em 1978, eu fazia frila para um jornal de esquerda, que era impresso todo em vermelho. Eles não costumavam pagar os colaboradores. Havia uma lógica nisso, mas nunca entendi bem qual era. Eu sei que, para cobrir uma pauta, fui parar no Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo. Tarde fria, com a neblina característica daquela cidade.  

Ditadura militar, as greves estavam proibidas, livros de autores como Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, Jorge Amado foram censurados, filmes vetados, atores de teatro espancados, gente torturada e morta e mesmo assim os metalúrgicos, que trabalhavam nas grandes montadoras, em um ato político de coragem invejável, desafiaram os militares e paralisaram as fábricas. 

Na época, Lula não usava barba. Apenas, um bigode. Havia ali no sindicato, grevistas, muita agitação nos corredores e Lula era um polo magnético, um buraco negro atraindo e puxando tudo em volta dele. Nos anos 70, falava-se muito em aura. Então, havia uma aura de celebridade ao redor do líder metalúrgico, que ganhava as manchetes no Brasil e no exterior.

Eu estava ao lado de Lula, anotando suas declarações, quando surge alguém e dá uma caixa de sapato para ele. Lula para de falar. Abre a caixa e seu rosto fica iluminado por um sorriso de satisfação. Dentro, um par de sapatos de cor escura. Lula perguntou para a pessoa, que tinha lhe dado o agrado: "É mesmo cromo alemão?". O outro confirmou. 

Não sei por que, achei aquilo um mau presságio. Maior greve, milhares de trabalhadores iam perder o emprego, um momento de ruptura institucional e o cara que estava por trás de tudo aquilo ficava feliz, como uma criança, ao receber um presente...Um par de sapatos?

Nos meus anos de jornalista, em empresas de comunicação, nunca aceitei presentes, que os colegas chamavam de "jabaculê". Passei por situações constrangedoras, com assessor me ligando, xingando, por eu ter recusado um presente. "Você acha que estou querendo te comprar com essa porra?", um assessor gritou comigo no telefone. 

Quer saber, sim, você estava tentando me comprar com o seu presentinho. "Quem presenteia quer seduzir", dizia o camarada Marx. Hoje, o "jacabulê" institucionalizou-se. Os tais "influencers" ganham para divulgar produtos. Qual é a ética desse procedimento? Talvez, não haja ética alguma. As pessoas esqueceram esse comprometimento, em determinado momento da caminhada.

Dois anos depois, em 1980, o PT era criado e nascia espalhando-se vertical e horizontalmente por todo o País. O PT era uma marca de sucesso. A estrela vermelha de cinco pontas, idealizada pelo jornalista Julinho de Grammont no Bar da Rosa (vizinho ao Sindicato dos Metalúrgicos), era vendida em broches, em bandeirinhas, em adesivos de plástico. Um sucesso! 

(Em conversa comigo, Grammont falou que estava com colegas no Bar da Rosa, tomando conhaque Domecq, quando desenhou um esboço da estrela em cima da mesa de madeira. A Rosa, dona do bar, guardou durante alguns anos a mesa, até a peça ser substituída por mobiliário moderno. A estrela ganharia contornos mais definidos com a ajuda de Hélio Vargas, ilustrador, que fazia um personagem de muito sucesso no jornal do sindicato, chamado João Ferrador. "Muitos metalúrgicos achavam que João Ferrador existia mesmo", me contou Grammont, pouco antes de falecer em um acidente de carro na via Anchieta.)

O crescimento do PT começa de forma exponencial crescente. Nove anos depois da fundação do partido, Lula disputa a Presidência e vai para o segundo turno com Collor. Erundina conquista a prefeitura de São Paulo, em uma virada incrível sobre Paulo Maluf. A campanha de Collor é rasteira, fedorenta. Traz uma ex-mulher de Lula para atingir o candidato petista no seu lado mais vulnerável: a intimidade. Surge uma filha de Lula, "bomba bomba", como um asteroide fumegante, que desaba sobre o telhado dos eleitores. No outro dia, Lula aparece com a filha, que fica muda diante da TV (por que ela ficou muda?), enquanto Lula fala que era ele quem cuidava da menina.  

No debate na TV Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, então todo poderoso executivo da TV de Roberto Marinho, pega pastas e enche de papéis em branco e as entrega a Collor, como se ele fosse fazer alguma grande denúncia contra o ex-metalúrgico. No debate, Collor menciona, com inveja simulada, que Lula tinha um "três em um" em sua casa. Três em um, na época, era vitrola, rádio e toca-fitas. Lula fica constrangido, responde de forma enviesada, esquecendo de mencionar no debate que Collor não tinha apenas um prosaico "três em um", mas era dono de uma gigantesca retransmissora de TV em Alagoas, filiada da Rede Globo.

Como sempre, o surrado discurso anticomunista da direita tornava-se próximo das pessoas comuns. Lembro de levar minha mãe votar no Liceu Pasteur, na Vila Clementino, e na porta do colégio eleitoral um brucutu agitava a bandeira do Brasil e gritava para nós: "Não vamos deixar os comunistas tomar o poder. Vote em Collor". 

O governo Collor acaba, desmanchado pela corrupção. Assume o vice, Itamar Franco, que faz um "mandato tampão" excepcional, enfiando uma estaca de madeira no coração da inflação, que era de seis ou mais dígitos. Viriam oito anos de Fernando Henrique Cardoso, que tinha, sem dúvida, a liturgia do cargo. Era um presidente educado, gentil, inteligente, sociólogo, acadêmico, ex-professor, na Universidade de Nanterre, do líder da revolta estudantil de 1968, em Paris, Daniel Cohn-Bendit, o "Danny le rouge". 

Diante daquilo que temos hoje no Palácio do Planalto, sinto muita falta da polidez ilustrada de FHC.

Na campanha eleitoral de 1998, FHC é exibido com terno, gravata, asseado e bem disposto, sentado ao lado de um cardeal (ou equivalente), no que parecia ser um jardim edílico; enquanto Lula e dona Marisa faziam uma caminhada cansativa, de doer os calos, dar bolhas nos pés, pelo abandonado Caminho do Mar. 

Nos anos seguintes, a campanha do PT torna-se profissional ("brilha uma estrela, Lula lá") e vai garantir a eleição de Lula em 2002; sua reeleição em 2006; a eleição de Dilma Roussef, em 2010; e também a reeleição de Dilma, em 2014.

O PT não era apenas uma marca de sucesso. O PT tinha conquistado o poder. Dominava estados e prefeituras. Em 2002, eu estava no luxuoso Hotel Intercontinental, em São Paulo, fazendo a cobertura do discurso de vitória de Lula. A emoção era contagiante. Vinte e dois anos depois de fundar o PT, Lula chegava à Presidência e rebatia Regina Duarte e direitistas, apavorados diante do "perigo vermelho": "A esperança venceu o medo". 

Os governos Lula até a derrocada de Dilma Roussef foram de crescimento econômico, elevação do IDH, investimento em educação, saúde e estabilidade econômica. O País ia bem. A cada nova eleição, Lula e os políticos, que tinham sua benção, eram sacramentados pelos votos.

Em relação aos inimigos, Lula agia de forma pragmática. Deixava o fígado de lado. No apoio a Fernando Haddad, que venceu a eleição para a prefeitura de São Paulo, chegou a ir com o seu candidato dar a mão a Paulo Maluf. Por mais que você limpe com álcool, passe desinfetante, não tem como ficar realmente limpo, depois de dar a mão a Paulo Maluf. 

Velhos oligarcas como José Sarney, Fernando Collor viravam aliados. A Rede Globo ia bem, obrigado, ganhando verbas do poder público, se municiando, esperando a hora de atacar e derrubar o governo petista. 

Então, desabaram os escândalos. O primeiro "Mensalão", com Roberto Jefferson que, entrevistado por Renata Lo Prete, da "Folha de S.Paulo", contou que o PT comprava deputados por 30 mil reais, para votar projetos de interesse do governo. Veio o "Petrolão", gigantesco esquema de corrupção, denunciado pela operação Lava Jato, que revelou - finalmente - as entranhas das negociatas entre empreiteiras, partidos políticos, operadores, que deram um prejuízo estimado de 42 bilhões de reais à Petrobras. Políticos, empreiteiros, doleiros, funcionários foram presos e condenados. A Lava Jato conseguiu recuperar cerca de 6 bilhões de reais. 

O esquema era simples: a empreiteira era contratada pela Petrobras e cobrava um valor superfaturado pela obra. A quantia "extra" paga pelos empresários, para conseguir fazer a obra, ia para os cofres dos partidos e de políticos corruptos.

Nesse momento, a estrela do PT começou a perder o brilho. Foi se desfazendo aos poucos. Foi se descolorindo. 

Até então, era impensável que o PT, um partido de trabalhadores, pudesse estar envolvido em tanta coisa suja, imoral, antiética. Como um partido, que se pretendia ser diferente dos demais, podia ter caído nas mesmas artimanhas dos partidos tradicionalmente corruptos? Era um descalabro. Tudo bem, o PT não havia inventado a corrupção, mas o partido não tinha o direito de mergulhar no mesmo jogo sujo.

A Lava Jato foi atrás de Lula. O promotor Deltan Dallagnol e o então juiz Sergio Moro fecharam o cerco. Em setembro de 2016, Dallagnol convoca a imprensa e exibe um "power point" amador e pouco convincente com flechas apontando para o "chefão do crime" (Lula). 

Lula seria condenado e preso por Sergio Moro. Ficaria na prisão por 580 dias. Investigado pelo apartamento no Guarujá e pelo sítio em Atibaia, não havia realmente provas de que os imóveis pertencessem a Lula, nem que o dinheiro de propina da Petrobras fora usado como favorecimento ao ex-presidente. 

A Vaza Jato, série de documentos revelados pelo site "The Intercept Brasil", com colaboração do premiado jornalista Glenn Greenwald, revelou que os promotores da Lava Jato mantinham uma relação "incestuosa" com o juiz Sergio Moro, que orientava e aconselhava a acusação, em uma inédita - e preocupante - demonstração de parcialidade entre acusador e juiz.  

Moro conquistou a simpatia do público e deu um tiro no pé ao aceitar o Ministério da Justiça, oferecido pelo recém-eleito Jair Bolsonaro. Moro, que havia abandonado sua carreira de juiz federal, encerraria sua passagem-relâmpago no Ministério da Justiça, depois de 15 meses ou 480 dias. Moro saiu atirando. Acusou Bolsonaro de interferir nas investigações da Polícia Federal.

Em novembro de 2020, o PT foi varrido das urnas. Não conseguiu eleger nem um único candidato a prefeito nas capitais. Cansados, os eleitores derrotaram Lula e também Bolsonaro. 

O que fazer agora com a estrela do PT? Em uma postagem recente, pré-eleições municipais, o jornalista Ricardo Kotscho escreveu, em sua coluna no Uol: "Aos 40 anos, PT chega às eleições envelhecido, sem votos e sem rumo". Como se tivesse bola de cristal, Kotscho previa que o PT dificilmente elegeria algum candidato nas capitais. O PT pediu direito de resposta, mas a resposta principal veio das urnas. O Partido dos Trabalhadores naufragou de fato na eleição municipal. Kotscho foi secretário de imprensa do Governo Lula, de 2003 a 2004, portanto devia saber o que estava escrevendo.

O PT conta com 1 milhão e 500 mil filiados. É uma força política considerável. Mas parece ter perdido o magnetismo. Enquanto nos anos 80, o partido crescia, a marca brilhava intensamente, era um centro de atração irrefreável (lembro das barraquinhas de feira do PT, vendendo broches, bandeiras e adesivos; lembro das militantes de minissaia, batendo na porta dos eleitores; lembro dos patrões proibindo os jornalistas de usar o broche estrelado do PT); hoje, as pessoas querem distância da estrela. 

Talvez, uma solução possível fosse um expurgo, semelhante ao célebre discurso de Nikita Kruschev, em 1956, diante de 1.500 estupefatos dirigentes do Partido Comunista da URSS, denunciando a prisão de 1 milhão e 500 mil pessoas e assassinatos de outras 690 mil, todas vítimas do ditador soviético Josef Stalin, "o guia genial de todos os povos". Kruschev lavou roupa suja em público. Jogou merda no ventilador. 

O PT deveria fazer o mesmo, uma rigorosa autocrítica, um expurgo cortando na própria carne, em busca de sobrevivência e redenção.     

 

       


 

   

   

     

  


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Walking dead, O gambito da rainha et caetera


Buscar o verossímil em uma série inverossímil é uma tarefa árdua. A série norte-americana "Walking Dead" fala de zumbis. Mortos-vivos. Um vírus alienígena (ou algo parecido) transformou a maior parte dos habitantes da terra em zumbis. Eles andam pra lá e pra cá, em busca de seres vivos (sobreviventes). Quando encontram um coitado, avançam sobre ele e o comem. O sujeito é devorado, em meio a gritos lancinantes. Imagine como deve doer ser comido vivo por um zumbi, que é um morto-vivo. 

Mas os mortos-vivos também morrem de vez. Para isso, você precisa espetar seu cérebro com um objeto afiado. Pode ser uma faca. Se você não tiver uma faca, pegue um martelo e arrebente a cabeça dele. Os mortos-vivos estão em decomposição. Seus corpos estão se desintegrando, enquanto percorrem longas distâncias em busca de carne fresca. Pedaços de carne ficam pendurados nos braços, pernas e pescoço. O rosto é uma caveira, parcialmente, coberta de restos de carne podre. A visão não é das mais agradáveis. 

Se você não tem mais nada de importante para fazer na vida, nada mesmo, se você está se sentindo extremamente cansado de tanta notícia ruim, nada melhor que sentar na sua poltrona puída, se armar com uma cerveja quente, salgadinhos e "maratonar" a série, transmitida pela Netflix, em sua - inacreditável - 9ª temporada.

A série baseia-se em uma história em quadrinhos. É, portanto, destinada ao público adolescente. Os adultos devem assistir com um certo peso na consciência. O roteiro é limitado ao extremo: grupo de sobreviventes, que não se transformaram em mortos-vivos, luta para encontrar um local seguro (não há local seguro em um mundo dominado por zumbis, é claro). Ao longo de sua jornada, precisa enfrentar, além dos zumbis, os vilões. É esse o roteiro, repetido à exaustão. A partir daí, é possível criar uma série de situações. Fique preparado: os vilões são muito vilões. São malvados mesmo. Sádicos, assassinos, cruéis, insensíveis. Estão lá para bagunçar o coreto. 

Um desses vilões - um certo Negan - prende o grupo de sobreviventes, comandado pelo ex-xerife Rick Grimes. Os infelizes são obrigados a se ajoelhar, enquanto Negan mata uns dois ou três, aleatoriamente, com um taco de beisebol, enrolado em arame farpado. 

Enquanto até a sexta temporada, havia algum nexo, na sétima e oitava temporada, os roteiristas fizeram tantas bobagens, que passou a ser um sacrifício tentar acompanhar a história. Sem mais ideias, eles (os roteiristas) passaram a perder o nosso tempo com personagens, sem qualquer interesse. Era preciso achar histórias para encompridar os episódios. É um exercício exaustivo. Cada temporada tem 16 episódios. Cada episódio, em média, 48 minutos. 

Em meio a uma guerra contra um vilão cruel, como Negan, aparece um "sensei" pacifista, armado com um bastão. O "sensei" se recusa a matar os vilões. 

Imagine você na pele de um pacifista, diante de um campo de concentração nazista. Tem lugares que não foram feitos para pacifistas. Para destruir o campo de extermínio nazista, você precisa de armas, estratégia de combate e soldados com coragem suficiente para matar todos os nazistas que estiverem na sua frente. 

Então, esse "sensei" não tem o que fazer nesse fim de mundo de "Walking Dead". É tão inverossímil quanto as milhares de oportunidades que o herói Rick Grimes teve em 32 episódios ou 1.536 minutos para acabar com a raça do vilão Negan. Mas não. Até a sexta temporada, o ex-xerife não pensava duas vezes: se tivesse chance, acabava com a raça do vilão. 

Não sei se houve troca de roteiristas. Não sei se os roteiristas estavam com o saco cheio de escrever sempre a mesma história, o fato é que o ex-xerife vira um bobão. 

O vilão aparece sozinho diante da porta da comunidade em que Rick Grimes vivia. O que qualquer sobrevivente de zumbis faria? Meteria chumbo grosso no vilão Negan. Menos o novo Rick Grimes. Não, ele se submete de bom grado. Fica à mercê das desgraças perpetradas pelo vilão. 

As bobagens da sétima e oitava temporada se sucedem, impiedosamente. A série tem um personagem rastreador, meio índio, capaz de se movimentar com fluidez na floresta. Ele se chama Daryl e está sempre com o cabelo sujo, a franja jogada estrategicamente sobre os olhos (alguém poderia fazer a gentileza de cortar o cabelo dele?). Mesmo tendo em seu currículo a capacidade de encontrar rastros, quase invisíveis na mata, volta e meia Daryl é surpreendido por vilões, em seu habitat natural - a floresta. Seria o mesmo que você conseguir se aproximar de um tigre e dar um tapinha nas costas do bicho.

Em geral, personagens simpáticos, que atraem a empatia do público, são sumariamente eliminados da série. A maior parte dos diálogos não tem qualquer sentido. Como diz um amigo meu caipira, "é conversa pra boi dormir". 

Sem falar das milhares de possibilidades desperdiçadas. O mundo, como a gente conhecia, acabou. Perfeito. Cães, gatos, animais selvagens vão dominar territórios. Imagine aves carniceiras, como abutres, que festa não fariam em meio a milhões de seres putrefactos ambulantes. Cães aparecem rapidamente e não há mais gatos no mundo "Walking Dead". Os roteiristas, talvez, odeiem felinos.

O aviso da Netflix informa se tratar de série com cenas violentas e de "extrema violência". Talvez esteja aí o segredo das nove temporadas. Existe uma função terapêutica nas sucessivas mortes, que acontecem no decorrer dos episódios. O público descarrega sua pulsão de destruição, de forma vicária. Os mortos-vivos são apenas id (pulsões inconscientes, às vezes, incontroláveis), na designação de Freud. 

O público sente prazer ao ver como os zumbis são eliminados. É como se o cara gordão, enfiado na poltrona esmaecida, mastigando seu salgadinho engordurado, estivesse ele mesmo enterrando uma estaca na cara do zumbi feioso. Os vilões, igualmente, também são id. 

Já os sobreviventes são egos, perdidos em uma floresta imensa de ids. Segundo Freud, o ego faz a intermediação entre o inconsciente e a realidade. Quem se comunica com a sociedade é o ego. Às vezes, o id aflora e ocorre o que se chama de "ato falho".

Não vou mencionar os nomes dos roteiristas, nem dos atores e diretores. Eles devem ter vergonha de colocar essa participação profissional em seus currículos. Eu também teria.


Eis que a minissérie "O gambito da rainha" tem atraído o público de aficionados por xadrez e outros nem tanto. Em sete episódios, acompanhamos a trajetória de uma menina-prodígio, que sai de um orfanato para duelar com os grandes mestres do xadrez. 

A minissérie baseia-se em um livro, publicado em 1983. Um jornalista do "The New York Times" gostou tanto do livro, que resolveu comprar os direitos para filmagem. Só que o filme não foi feito. Transformado em série da Netflix, quase deixei de assistir, por causa do título. "Gambito" me lembra "cambito" que é perna fina. Na realidade, "gambito da rainha" é uma jogada de enxadristas. Não sabia. Não tenho paciência para jogar xadrez, nem cartas, nem banco imobiliário.

A minissérie conta com a participação da atriz Anya Taylor-Joy, de olhos perturbadores e expressão enigmática. Mesmo quem não gosta de xadrez, vai se interessar pela série, que conta aquela história que sempre dá resultado. Pessoa pobre, abandonada, humilhada pela vida, consegue sucesso por méritos próprios. É uma fábula. Mas quem é que não gosta de fábulas.

O problema maior de "O gambito da rainha" é o viés ideológico. Os norte-americanos parecem não se conformar que a Rússia deixou de ser comunista e continuam incomodados com esse gigante da Europa Oriental. Lá vamos nós, novamente, em plena guerra fria, para provar que os norte-americanos são superiores aos russos e vão vencer todas as batalhas. Ainda que seja em um tabuleiro medíocre de xadrez. 

Enfim, como me disse Dostoiévsky, "parar de ler livros é parar de pensar". 

Vamos em frente. 

"Walking Dead, The Queen's Gambit etc."

Seeking the plausible in an implausible series is a daunting task. The American series "The Walking Dead" is about zombies. The undead. An alien virus (or something similar) has turned most of the Earth's inhabitants into zombies. They wander around, searching for living beings (survivors). When they find a poor soul, they attack and devour them. The victim is eaten alive amidst agonizing screams. Imagine how painful it must be to be eaten alive by a zombie, which is essentially a walking corpse.

However, the undead can also be permanently killed. To do this, you need to pierce their brain with a sharp object. It could be a knife. If you don’t have a knife, grab a hammer and smash their head. The undead are decomposing. Their bodies are falling apart as they traverse long distances in search of fresh flesh. Pieces of flesh hang from their arms, legs, and necks. Their faces are partially skeletal, covered with remnants of rotting flesh. It’s not the most pleasant sight.

If you have nothing important left to do in life, absolutely nothing, and you’re feeling utterly exhausted by all the bad news, there’s nothing better than sitting in your worn-out armchair, armed with a warm beer, some snacks, and binge-watching the series, now in its—unbelievably—ninth season, available on Netflix.

The series is based on a comic book. It’s therefore aimed at a teenage audience. Adults should watch it with a certain weight on their conscience. The plot is extremely limited: a group of survivors, who haven’t turned into zombies, struggles to find a safe place (though there’s no safe place in a world overrun by zombies, of course). Along their journey, they must face not only zombies but also human villains. That’s the plot, repeated ad nauseam. From there, a series of situations can be created. Be prepared: the villains are truly villainous. They’re downright evil. Sadistic, murderous, cruel, and heartless. They’re there to stir up trouble.

One of these villains—a certain Negan—captures the group of survivors led by former sheriff Rick Grimes. The unfortunate survivors are forced to kneel while Negan randomly kills two or three of them with a baseball bat wrapped in barbed wire.

While the series maintained some coherence up to the sixth season, the seventh and eighth seasons saw the writers making so many nonsensical decisions that it became a chore to follow the story. Out of ideas, they began wasting our time with uninteresting characters. They needed to stretch the episodes, and it became an exhausting exercise. Each season has 16 episodes, each averaging 48 minutes.

In the midst of a war against a cruel villain like Negan, a pacifist "sensei" appears, armed with a staff. The "sensei" refuses to kill the villains.

Imagine being a pacifist in the face of a Nazi concentration camp. Some places aren’t meant for pacifists. To destroy a Nazi extermination camp, you need weapons, combat strategy, and soldiers brave enough to kill every Nazi in their path.

So, this "sensei" has no place in the apocalyptic world of "The Walking Dead." It’s as implausible as the countless opportunities the hero Rick Grimes had over 32 episodes or 1,536 minutes to wipe out the villain Negan. But no. Up until the sixth season, the former sheriff wouldn’t think twice: if he had the chance, he’d eliminate the villain.

I don’t know if there was a change in writers. I don’t know if the writers were tired of writing the same story, but the fact is that the former sheriff turns into a fool.

The villain appears alone at the gates of the community where Rick Grimes lived. What would any zombie survivor do? They’d shoot the villain Negan without hesitation. But not the new Rick Grimes. No, he willingly submits. He becomes a victim of the villain’s atrocities.

The absurdities of the seventh and eighth seasons continue mercilessly. The series has a tracker character, somewhat Native American, who can move fluidly through the forest. His name is Daryl, and he’s always dirty, with his bangs strategically covering his eyes (could someone please cut his hair?). Despite his ability to find nearly invisible tracks in the forest, Daryl is often ambushed by villains in his natural habitat—the forest. It’s like sneaking up on a tiger and patting it on the back.

Generally, likable characters who attract the audience’s empathy are summarily eliminated from the series. Most of the dialogues are nonsensical. As my country friend says, "it’s just talk to put the cows to sleep."

Not to mention the thousands of wasted opportunities. The world as we knew it has ended. Perfect. Dogs, cats, and wild animals would dominate the territories. Imagine scavenger birds like vultures feasting on millions of walking, rotting corpses. Dogs appear briefly, and there are no more cats in the "Walking Dead" world. Perhaps the writers hate felines.

Netflix’s warning states that the series contains violent and "extremely violent" scenes. Perhaps that’s the secret to its nine seasons. There’s a therapeutic function in the successive deaths that occur throughout the episodes. The audience vicariously releases their destructive impulses. The undead are merely the id (unconscious, sometimes uncontrollable impulses), in Freudian terms.

The audience takes pleasure in seeing how the zombies are eliminated. It’s as if the overweight guy, sitting in his faded armchair, munching on greasy snacks, is himself driving a stake into the ugly zombie’s face. The villains, too, represent the id.

The survivors, on the other hand, are egos, lost in a vast forest of ids. According to Freud, the ego mediates between the unconscious and reality. It’s the ego that communicates with society. Sometimes the id surfaces, resulting in what’s called a "Freudian slip."

I won’t mention the names of the writers, actors, or directors. They should be ashamed to include this professional participation in their resumes. I would be too.


Meanwhile, the miniseries "The Queen’s Gambit" has attracted an audience of chess enthusiasts and others alike. In seven episodes, we follow the journey of a prodigious girl who rises from an orphanage to challenge the great chess masters.

The miniseries is based on a book published in 1983. A journalist from "The New York Times" liked the book so much that he decided to buy the rights for a film adaptation. However, the film was never made. Turned into a Netflix series, I almost didn’t watch it because of the title. "Gambit" reminds me of "cambito," which means skinny legs. In reality, the "Queen’s Gambit" is a chess move. I didn’t know that. I don’t have the patience to play chess, cards, or Monopoly.

The miniseries features actress Anya Taylor-Joy, with her unsettling eyes and enigmatic expression. Even those who don’t like chess will be drawn to the series, which tells a story that always works: a poor, abandoned person, humiliated by life, achieves success through their own merits. It’s a fable. But who doesn’t like fables?

The biggest problem with "The Queen’s Gambit" is its ideological bias. Americans seem unable to accept that Russia is no longer communist and remain bothered by this Eastern European giant. Here we go again, back in the Cold War, trying to prove that Americans are superior to Russians and will win every battle, even if it’s on a mediocre chessboard.

In the end, as Dostoevsky once said, "to stop reading books is to stop thinking."

  

      

   

   


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