terça-feira, 10 de novembro de 2020

Ciro Marcondes Filho (1948-2020)


Algumas pessoas na vida da gente são fundamentais. Têm efeito transformador. Podem mudar nosso percurso. Podem ser a diferença entre a realização de um trabalho medíocre ou de excelência. Ciro Marcondes Filho, que faleceu domingo passado, aos 72 anos, de câncer, era uma dessas pessoas.

Ciro foi meu professor, quando fazia mestrado na Universidade Metodista, entre 1982-1985. Ciro havia retornado recentemente da Alemanha, com o título de doutor na bagagem. Vivíamos ainda sob a Ditadura Militar, que estava em seus estertores. Em uma das aulas, lembro que mencionei a possibilidade de aproveitar o momento para iniciar a Revolução. 

A Revolução era o sonho mais acalentado pela nossa geração. Queríamos fazer igual a Fidel Castro, aos sandinistas. Sonhávamos em tomar as ruas, como os estudantes da Sorbonne haviam feito em 1968. Chê Guevara era a nossa referência de mártir a serviço dos desvalidos. 

A gente se vestia como se estivéssemos prontos para o grande chamado. Calçava coturno, usava calça jeans e sempre, em todas as ocasiões, me enfiava em um surrado casaco verde militar.

Com essa vestimenta, que me caracterizava como alguém de esquerda, como um combatente anônimo da Ditadura Militar, acompanhava as aulas de pós-graduação na Metodista. 

Naquela aula em questão, quando mencionei dar início à Revolução, Ciro me deu um banho de realidade. Faz 38 anos e lembro como se estivesse agora, com ele, na sala de aula. Ele me disse: "Danilo, não vai ter Revolução. Esquece. Isso não vai mais acontecer. Você está preso em 1968. Precisa sair daí".

Veio a defesa do mestrado, em 1985, e eu tive uma discussão maluca com José Marques de Mello, que fazia parte da banca. Tinha certeza que ele havia lido superficialmente minha tese, que fazia um estudo de comunidade em Piedade do Paraopeba/Palhano/Minas Gerais, com foco na chegada da televisão naquele vilarejo. 

Marques de Mello dizia que a dissertação era igual a "Paraíso via Embratel", de Luiz Augusto Milanesi. Na realidade, embora o foco fosse parecido, eu tinha feito um estudo comunitário, atuando como pesquisador participante, seguindo a lógica do livro de autoria de Carlos Rodrigues Brandão. Seguindo à risca Brandão, havia até reunido a comunidade, em um salão paroquial e levado uma pauta de reivindicações às autoridades locais. 

Para falar a verdade, Marques de Mello estava comigo atravessado na garganta, por causa de um episódio, envolvendo um professor, amigo dele, que sofrera uma decepção amorosa.

Águas passadas.

O fato é que a briga com um integrante da banca, que quase me fez ser reprovado (Mello me deu nota 7, mas fui salvo pelos outros dois professores que me agraciaram com 10, média final 9), me deixou com um gosto amargo da vida acadêmica. 

Fiquei três anos longe da universidade. Em 1988, estava na Escola de Comunicações de Artes da USP, sendo entrevistado pelo Ciro Marcondes Filho. As inscrições para o doutorado tinham sido abertas e eu desejava fazer um estudo sobre a imprensa sensacionalista, mas não queria seguir a abordagem semiótica, que, no meu entender, não dava conta do recado. Tinha de ser algo com base na psicanálise, no estudo da violência e da psiquê. Era exatamente esta a linha de pesquisa de Ciro na ocasião. 

Melhor ainda: Ciro e Marques de Mello eram rivais acadêmicos. Ciro defendia mergulhos profundos em teoria da comunicação, enquanto Marques de Mello queria um curso mais prático, tipo Senac. 

Quando Ciro me perguntou por que tinha demorado tanto tempo para fazer o doutorado, falei da briga com Marques de Mello e como aquilo havia me afetado emocionalmente. Lembro do sorriso dele, da empatia e pressenti que ele seria meu orientador no doutorado.

Foi o que fato ocorreu. Foram cinco anos (1988-1993) memoráveis. De muito estudo, de muita pesquisa e envolvimento com teóricos do quilate de Dieter Prokop, Alfred Lorenzer, Otto Fenichel e Freud, é claro, entre tantos outros. 

Sem falar das obras de Ciro, que eu devorava: "Televisão, a vida pelo vídeo", "Quem manipula quem", "O que todo cidadão precisa saber sobre ideologia", "A linguagem da sedução", "Imprensa e capitalismo", "O discurso sufocado", "O capital da notícia". 

Por volta do terceiro ano, em 1991, Ciro sugeriu que eu fosse para a Europa aproveitar a possibilidade de uma bolsa sanduíche. Ele entendia que essa experiência, em locais de pesquisa mais avançados, seria fundamental para a conclusão de meu trabalho. 

Escrevi uma carta para Dieter Prokop, mas ele recusou, porque eu precisaria ser fluente em alemão. Já o professor Michel Maffesoli, do Centro de Estudos sobre o Atual e o Cotidiano, da Universidade Sorbonne, me respondeu positivamente. Ele seria meu orientador na França.

Preparei toda a documentação necessária para o CNPq. Faltava apenas a assinatura do Ciro. Liguei para ele e anotei as indicações para chegar em sua casa (na época, não havia Waze).

Ele me disse: "Vai ser difícil você achar. Eu moro no fim do mundo".

Peguei a rodovia Raposo Tavares. Na altura do km 22,8, em Cotia, saí à direita, rodando pela avenida São Camilo, por um lugar chamado Granja Viana. 

Fiquei maravilhado com o que via. Era tão perto de São Paulo, mas, ao mesmo tempo, a falta de outros veículos, a densa vegetação, as casas baixas, a ausência total de prédios...Parecia que eu estava chegando em alguma cidadezinha do interior. 

Cheguei no condomínio Fazendinha e me perdi umas trinta vezes até conseguir chegar na rua Cambuquira, onde Ciro morava. Uma coincidência feliz, porque a nossa família passava as férias em Cambuquira (pacata cidade "das águas" de Minas Gerais). 

Ciro me recebeu em casa, acompanhado pela mulher e filha. Ele assinou toda a documentação e balançou a cabeça, tentando me preparar para o pior: "Eles (o CNPq, a Capes) não têm aprovado as bolsas dos meus orientandos". 

Quando voltei para casa, falei para a minha mulher: "No futuro, nós vamos morar na Granja Viana. É um lugar inacreditável. Parece uma cidade do interior. Super tranquilo. Um sonho".

Dias depois, no dia 13 de agosto daquele ano (1991), recebi a carta do CNPq me informando que havia ganho a bolsa sanduíche, com duração de um ano. Poderia pegar o avião e ir para a França.

Corri para a USP e mostrei a carta de aceitação para o Ciro. Ele comemorou como se ele tivesse sido premiado. Ficou imensamente feliz com a nossa conquista. 

O ano que passei na França foi decisivo para escrever a tese de doutorado. Tenho certeza que, se tivesse ficado no Brasil, não teria conseguido produzir um trabalho com o mesmo aparato epistemológico, obtido nos seminários da Sorbonne e na completa e invejável biblioteca de sociologia e comunicação do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica). 

Outra coincidência feliz: a biblioteca ficava a 30 passos do apartamento que eu havia alugado na rua Pouchet, no 17º "arrondissement", que é o nome francês para "bairro".

De volta ao Brasil, com a tese pronta, levei para o Ciro dar uma olhada. Ele me devolveu sem mexer em uma vírgula. Só me disse uma frase, na base da brincadeira: "Vamos pras cabeças".

Como forma de preparação para a defesa, Ciro promoveu um debate comigo, com alunos da pós-graduação e convidados, publicado, em seguida, pela revista "Atrator Estranho", que ele editava. 

Minha tese "Espreme que sai sangue - um estudo sobre a imprensa sensacionalista, tendo como objeto o jornal Notícias Populares" foi aprovada, em 1993. Um editor que estava publicando vários livros do Ciro me pediu a tese, mas houve mudança na linha editorial e ele não pôde editar meu livro, que acabou sendo publicado pela Summus, em 1995.

No ano seguinte, nossa família conseguiu comprar uma casa na Granja Viana, nas proximidades do condomínio Fazendinha. Realizei meu sonho. Infelizmente, apesar de estar muito próximo, nunca encontrei o Ciro no mercado, no posto de combustível, no restaurante ou em qualquer ponto da Granja.

Como jornalista, cheguei a entrevistá-lo algumas vezes. Em outros momentos, a gente se encontrava, em debates, na Eca. A última vez que nos vimos ele me perguntou se eu gostaria de voltar a trabalhar com "violência".

 A imagem que ficou dele é esta da foto, que ilustra a postagem. Bigode e cavanhaque grisalhos, óculos de aro fino, cabelo denso, expressão séria, profunda. Não cheguei a vê-lo sem barba. Acho que não o reconheceria.

Tentei escrever essa postagem ontem, mas não consegui. Quando morre um professor, que teve tanta ascendência sobre a gente, morremos também um pouco junto com ele. 

Queria voltar no tempo. Queria estar de novo naquele momento da entrevista, naquele segundo memorável, inesquecível, quando ele sorriu para mim e eu senti que as portas da USP tinham sido abertas para mim. 


 

  


                          

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