segunda-feira, 23 de novembro de 2020

As narrativas e suas armadilhas

 


A cobertura da morte de João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, assassinado por dois seguranças, em uma loja da rede Carrefour, no bairro Passo da Areia, em Porto Alegre, caiu na armadilha da “narrativa”.

Essa expressão é utilizada por articulistas de extrema-direita, como Rodrigo Constantino, e serve para insinuar, com evidente dose de exagero, que determinada notícia sofre de “desvio ideológico esquerdizante da mídia canalha”.

Até hoje, lendo jornais e vendo o noticiário das TVs, não tinha ideia da extensão da folha corrida de João Alberto, chamado intimamente de “Beto” nas manchetes, como se fosse amigo dos redatores. No Uol, um texto, que tentava (sem sucesso) trazer o perfil de João Alberto o chamava de “marido errático”. Sabe-se lá o que isso significa.

Só encontrei o que procurava no site bolsonarista “Terça Livre” https://tercalivre.com.br/entenda-o-caso-de-beto-e-sua-longa-lista-criminal/, em um texto escrito por um certo Brehnno Galgane, que se apresenta como “graduando em filosofia pela PUC-Rio, católico e cultivador de uma narrativa que tenha sentido segundo a forma humana”, traz uma relação considerável de crimes praticados por João Alberto. Escreve o católico Galgane:

“Em sua ficha criminal, encontram-se acusações como porte ilegal de arma de fogo, rapto consensual, entorpecente e posse, violação de domicílio, injúria qualificada, embriaguez, descumprimento de medida protetiva, ameaça (várias vezes), desobediência, lesão corporal (várias vezes), perturbação, foragido da justiça e ameaça de morte com agressão”.

Segundo o site “Terça Livre”, entre outros crimes, João Alberto espancava a ex-mulher. Ele tinha condenação pela Lei Maria da Penha. O pai dele, João Batista Rodrigues Freitas, também havia sido acusado de bater na ex-mulher de João Alberto e ainda a teria agredido verbalmente, chamando-a de “macaca”, o que é injúria racial.

Em resumo, se eu soubesse quem era João Alberto e o visse na rua, certamente, iria mudar de calçada. Não é saudável a gente cruzar com gente, que tenha esse “currículo” policial.

Essa informação do passado criminoso de João Alberto tem importância para o entendimento dos fatos. Não se trata de atribuir culpa à vítima. Isso não é correto. João Alberto está morto. Sua vida foi tirada. Por um princípio ético e civilizatório, não se “condena” a vítima. Mas como público tenho direito de ser bem informado. Não me sinto à vontade, sabendo que determinada informação foi oculta, para “favorecer a narrativa”.

O noticiário televisivo, principalmente da TV Globo, conduziu o fato por um viés racial. O ocorrido se deu na véspera do Dia Nacional da Consciência Negra. O bombardeio da divulgação de um vídeo da “morte de um homem negro por seguranças no Carrefour” desencadeou efeito cascata, com manifestações em várias cidades. Lojas do Carrefour foram depredadas. Várias unidades precisaram ser fechadas para evitar o pior.

Um twitteiro de direita pontificou: “Todos os dias um negro é morto pelo tráfico, porque vocês não sobem na favela e colocam fogo na casa dos traficantes?”.

O fato positivo é a visível mobilização de grupos negros e antirracistas, possivelmente, de esquerda. Eles estão “antenados”, em comunhão, com capacidade invejável de ir para a rua e iniciar os protestos. No sábado, 180 metros da avenida Paulista, em frente ao Masp, amanheceram pichados com a frase, importada de movimentos norte-americanos: “#Vidas pretas importam”. 

Esta mobilização é muito bem-vinda em País de racismo velado, como o Brasil. Não temos apartheid estatal, como havia na África do Sul e Estados Unidos, com negros proibidos de frequentar escolas, bares, lojas e transporte público ao lado de brancos. Nosso racismo é oculto, está no não dito, na frase suspensa, na sobrancelha erguida, no segurança que segue a mulher negra na loja, no policial que sempre tem o negro na figura do suspeito. 

O crime contra João Alberto não teve motivação racista, segundo disse a delegada do caso, Roberta Bertoldo. Ele não foi atacado por ser negro. Nenhuma rede de supermercados tem prática racista, impedindo negros de terem acesso às suas lojas, mesmo porque, além de inconstitucional, isso seria suicídio empresarial. Metade da população brasileira é parda ou negra. O próprio Carrefour tem em suas fileiras 50% de funcionários negros.

Então, caberia ao noticiário não embarcar na “narrativa”, transformando uma ocorrência policial em crime de racismo. Mas não foi isso que ocorreu. Várias lideranças negras foram ouvidas e todas batiam na mesma tecla: “Parem de matar os pretos”.

A morte de João Alberto é uma composição de erros. Como alguém com uma “capivara” como a dele, com envolvimento em pelo menos 25 ocorrências policiais, podia estar solto? Que Justiça é essa que permite que um indivíduo tão perigoso caminhe livremente pelas ruas e mercados? Em algum momento, ele vai criar algum problema, vai se meter em encrenca. É óbvio.

Então, a bobagem seguinte remete ao Carrefour. Essa rede francesa de venda de mercadorias, bem-sucedida, contrata uma empresa de segurança que se mostrou sem qualquer qualificação para a empreitada. Os seguranças Magno Braz Borges e Giovane Gaspar Silva agiram como o impulsivo Hulk. Deram socos. Pontapés. Esganaram e sufocaram até a morte João Alberto.

Não seria mais profissional chamar a polícia? Não. Os decididos e despreparados seguranças encheram João Alberto de porrada. Bateram nele seguidamente até matá-lo, diante da mulher dele, impotente, em choque, carregando as compras que havia feito minutos atrás. Provavelmente, essa empresa Vector, onde Magno e Giovane trabalhavam, foi contratada por oferecer serviços mais baratos que a concorrência. O barato, a nossa avó já avisava, sai caro.

Seria cansativo enumerar os casos envolvendo seguranças e clientes. Quase todo dia acontece, no Brasil, alguma ocorrência. Quem será que treina esse pessoal? Eles não fazem cursos de aperfeiçoamento? Não têm ideia de como lidar em uma situação que envolve um cliente agressivo? Quem fiscaliza esses caras? Quem os autoriza a trabalhar de segurança?

Um desastre colossal. Mortal.

A "cereja do bolo" do desastre brasileiro foi João Alberto ter agonizado, sem atendimento no chão do supermercado. O Samu, segundo informam as agências de notícias, demorou cerca de uma hora para aparecer. 

Erro em cima de erro. Até o fim da vida. 

Um exemplo antagônico foi seguido pela franquia de padarias Dona Deôla. Na quinta-feira, Dia da Consciência Negra, a advogada Lidiane Brandão Biezok, 45 anos, em trajes de veraneio, entrou na padaria Dona Deôla, que fica na Pompeia, e passou a agredir as atendentes. Atirou guardanapos usados. Xingou. Atacou fisicamente clientes. Cometeu ataques homofóbicos e de cunho racial. Provocou uma confusão daquelas.

A direção da padaria não chamou seus seguranças, para encherem a dona Lidiane de porrada. Nada disso. Ligaram para a Polícia Militar que prendeu a agressora e a levou para a delegacia mais próxima. Dona Lidiane também tinha uma “capivara” positiva, com passagens anteriores diante do “doutor delegado”.

Ela se desculpou publicamente. Em ligação para a TV Globo, disse ser doente mental, com surtos de bipolaridade.

De resto, os reacionários do “Manhattan Connection” estão de casa nova. Foram despejados da Globo News e vão para a TV Cultura. O golpista de primeira hora Felipe Neto fez um “mea culpa” sobre sua campanha pessoal contra o governo Dilma Roussef: “Eu tinha 25 anos e jovem faz bosta”. Ao que o ex-global José de Abreu replicou: “Com 25 anos, eu já tinha sido preso duas vezes pela Ditadura”.

Com isso, vamos levando. Sinto saudades de Tom Jobim: “Água brilhando, olha a pista chegando. E vamos nós. Pousar”.


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