quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Como o Var veio para atrapalhar o futebol
No dia 27 de junho de 1971, eu estava no Morumbi, assistindo à decisão do Campeonato Paulista, entre São Paulo e Palmeiras. O São Paulo precisava só do empate e abriu o placar no início da partida. Havia 100 mil pessoas no estádio. Naquela época, as torcidas rivais ficavam juntas. No segundo tempo, o atacante do Palmeiras Leivinha fez um gol espetacular de cabeça. A torcida comemorou e o árbitro Armando Marques anulou. Disse que o gol havia sido com a mão. Era estranho, porque para dar a cabeçada na bola, Leivinha jogou os braços para trás. Eu vi. Estava lá. Bem em frente. É claro que havia maracutaia. Para mim, torcedor de futebol, aquilo era uma vergonha. A anulação do gol legítimo, por um árbitro claramente mal-intencionado, me fez gostar menos de futebol. Gostaria de ter quebrado o sigilo bancário de Armando Marques para identificar quanto aquele gol anulado teria custado. O Palmeiras, de Ademir da Guia, Dudu, César Maluco, ficou abalado em campo e o São Paulo sagrou-se campeão paulista naquele ano. Se houvesse o Var (video assistant referee - árbitro assistente de vídeo), o gol seria validado e o Palmeiras provavelmente teria virado o jogo.
Em 1954, a final do Mundial, entre Alemanha Ocidental e Hungria foi disputada em Berna (Suíça). Os alemães venciam por 3 a 2 o então invencível time húngaro, invicto há 32 partidas. No fim do jogo, "no apagar das luzes", Puskás faz o gol do empate. Anulado. Diante de 60 mil torcedores, principalmente alemães, o juiz viu um impedimento inexistente e deu o título mundial aos alemães, premiando o futebol feio e retrancado. Se houvesse Var, a história seria outra.
Em 1962, o Brasil passou no sufoco pela Espanha no Mundial, disputado no Chile. Ganhou por 2 a 1, graças à arbitragem. Nilton Santos derrubou Collar dentro da área e andou uns dois passos para a frente, mostrando que a falta havia sido feita fora da área. Não tinha. Os espanhóis batem a falta e o pobre Puskás (naturalizado espanhol) faz gol de bicicleta. Um gol que levaria o prêmio Puskás de tão bonito que foi. O juiz Bustamante anulou. Hoje, Bustamante seria preso e condenado por corrupção passiva, ativa e absoluta. Naquela época, não havia Var. Se houvesse, o Brasil daria adeus ao bicampeonato mundial.
Em 1966, na final entre Inglaterra e Alemanha Ocidental, diante de 98 mil pessoas, em Wembley, as duas equipes terminam o tempo normal empatadas em 2 a 2. Vem a prorrogação e Hurst vira, acerta um chute forte, a bola se choca no travessão e bate na linha. O juiz suíço Dienst fica em dúvida. Consulta o bandeirinha russo Bakhramov, que dá o gol. A Inglaterra faria mais um na prorrogação e conquistaria o Mundial de 1966. Se houvesse Var, o gol inglês de Hurst teria sido anulado.
O futebol era assim. Cheio de injustiças, de juízes malandros, de cartolas corruptores, de debates sem fim. O futebol era polêmico. Discutia-se muito. Antes, durante e depois das partidas. As regras eram simples. A gente conhecia todas de cor, igual à tabuada. O juiz ladrão era parte indissociável do futebol. Antes de qualquer coisa, quando aquele cidadão de preto pisava no gramado, a gente se erguia na arquibancada e gritava: "Juiz ladrão!".
Os comentaristas reclamavam muito. Aquele gol que não foi gol, porque a bola não entrou; aquele impedimento que não aconteceu porque o zagueiro dava condição; o pênalti inexistente, que só o juiz viu...Tantos erros, tantas injustiças, tanto choro e rilhar de dentes à toa. Bastava o futebol imitar o tênis, imitar o vôlei. Incorporar à tecnologia ao esporte.
E no sétimo dia surgiu o Var. O juiz de vídeo. Além do árbitro, dos dois bandeirinhas, apareceram mais uma meia dúzia de sujeitos, que ficam olhando imagens de TV, tentando ver o que o juiz não viu. E eles veem...Minha nossa, como essa gente do Var trabalha. Acontece o gol. A torcida grita, comemora, mas o árbitro coloca a mão no ouvido. Para tudo. O gol foi impedido? Alguém resvalou a mão na bola? O árbitro corre em direção à lateral do campo. Olha a sua TV particular e volta para o campo, fazendo aquele sinal odioso, detestável, da televisãozinha imaginária. O gol foi anulado. A torcida rival comemora. O Var é um desmancha prazeres.
No melhor da partida, o Var interrompe os lances. São dois, três, até cinco minutos ou mais de paralisação. Quando o jogo recomeça, a gente nem sabe mais quanto estava, nem quem ia melhor no jogo. É um coitus interruputus. O Var deixou o futebol lento, sem graça, burocrático. Veio para fazer justiça, é verdade, mas acabou com a alegria, com a polêmica.
O pior são as novas regras, que a maior parte dos torcedores desconhece. De um dia para outro, aparece uma regra nova e nem sempre inteligente. Domingo passado, por exemplo. Palmeiras e Internacional empatam em 1 a 1. Aos 40 minutos do segundo tempo, William Bigode, do Palmeiras, disputa a bola com um defensor e o balão resvala em seu braço, O Verdão faz o segundo gol e vira o jogo. Virava o jogo...Entra o Var em cena e o gol é anulado. Tudo por causa da nova regra: se a bola bater no braço do atacante, mesmo que ele não tenha a intenção, mesmo que seu braço esteja grudado ao corpo, mesmo assim, vai ser falta. Caso a mesma bola bata no braço do zagueiro, não vai ser falta, se ele não estiver com os braços distantes do corpo. Ou seja, a nova regra ferra o atacante e tira da reta o rabo do defensor. É uma regra discricionária, a favor da defesa. Os times poderiam começar a escolher atacantes sem braços.
Para fechar essa página, é importante dizer que o Var conseguiu até o impossível. Fazer a gente sentir saudades do erro de arbitragem.
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