sexta-feira, 13 de setembro de 2019
Machado de Assis, esse chato
Em 1978, comecei a trabalhar em uma empresa jornalística, chamada Proal (Programação e Assessoria Empresarial). Fazíamos house organs, jornais de empresa. A Proal ficava em um sobrado na rua Chuí, travessa da rua do Paraíso, na Aclimação. Ao lado da minha mesa, dominada por uma robusta máquina de escrever Olivetti, sentava-se o então repórter em início de carreira André Singer.
André é filho do ilustre economista Paul Singer (1932-2018), nascido na Áustria e radicado no Brasil. Provavelmente por influência do pai, intelectual respeitado, André amava literatura e foi ele quem me emprestou um volumoso livro de Dostoievsky, intitulado Os Demônios.
A obra antecede a Revolução Russa de 1917. Na prática, revela um clima pré-revolução. Os jovens perdem a paciência com a gerontocracia, que afundava o país, e começam a questionar o sistema. Em uma das cenas capitais de Os Demônios, um velho discursa bobagens, escutado com atenção por outros velhos. Um rapaz, presente na reunião, levanta-se. Pega o velhote pelo nariz e o arrasta pelo salão. Vai de um lado para o outro, puxando o velhote pelo nariz, como se o ancião fosse um boi de carga. Uma espécie de premonição do que estava por vir - a queda dos czares, a vitória dos soviets e a implantação do comunismo. Amei Os Demônios. Até hoje, lembro do André, por causa desse livro.
André amava também Machado de Assis. Era Deus no céu e Machado na terra. Eu tinha feito uma faculdade de Letras e não tinha mais paciência em ouvir alguém falar de Machado de Assis. Desde o colégio, quando era obrigado a ler suas obras, estava saturado de Machado de Assis. Na faculdade, um grupo de alunas fez "o julgamento de Capitu". Tinha advogada de defesa. Tinha promotora acusando. A professora era a juíza. Tudo muito chato. Será que Capitu tinha traído Bentinho?
Além dos muros da faculdade, a escritora Lygia Fagundes Telles defendeu a tese de que Capitu tinha de fato traído Bentinho. Já alunos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco absolveram Capitu por "falta de provas". Dá um tempo, gente.
Uma manhã, mal-humorado, ao ouvir André Singer elogiar Machado de Assis, mais uma vez, não aguentei e falei que os livros dele eram chatos. Todos eles. Toda a fornada. Dom Casmurro, O Alienista, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Helena, A Mão e a Luva. Disse que, quando era estudante, abria Machado de Assis e bocejava. A prosa de Machado me dava sono. Era melhor que narcótico. Os personagens de Machado de Assis me faziam dormir. Eram livros catalépticos. Foi um choque de 2 mil volts. Acho que se André tivesse um volume de Memorial de Aires na mão, ele atiraria o volume na minha cabeça.
André sairia da Proal, tempos depois, e nunca mais voltamos a nos encontrar. Anos mais tarde, ele trabalharia na Folha como repórter e chegaria ao poder, a Brasília, ganhando os holofotes como porta-voz do recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Essa surpresa iconoclástica diante de alguém que não aprecia o texto de Machado de Assis me acompanharia o resto da vida. Perdi amigos, por causa de Machado. Criei desavenças sérias. Fui ameaçado e perseguido. No meu pesadelo recorrente, vejo uma multidão, ostentando livros de Machado de Assis, a me perseguir por ruas mal iluminadas e cobertas por névoa densa.
Talvez a minha bronca com Machado de Assis esteja na obrigatoriedade de lê-lo. Ninguém devia ser obrigado a nada. Na escola, desde criança, somos submetidos a Machado. Fazer resumo de suas obras. Interpretar seus textos. Em minhas lembranças, Capitu, Bentinho, Escobar, Helena, Brás Cubas, Simão Bacamarte são lentos, movimentam-se em câmara lenta. É aquela sensação sonâmbula que deve anteceder ao sono Rem.
Somente na Faculdade de Letras vim conhecer Rubem Fonseca. Foi um desbunde. Fiquei maravilhado com a prosa. Aquele conto Lúcia MacCartney era uma das obras mais modernas, que já havia lido. A linguagem corria solta, serpenteava. Cada parágrafo parecia algo inovador e surpreendente.
Para usar uma expressão comparativa favorita de Heningway, o meu "general" da Literatura Brasileira era Érico Veríssimo. Li toda a obra de Veríssimo, que minha tia guardava em uma estante de madeira, com frente envidraçada. O melhor Veríssimo é Incidente em Antares. Excepcional.
Outro "general" era Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas, Sagarana, são obras de impacto profundo. A hora e a vez de Augusto Matraga, um dos contos de Sagarana, é literatura fina, saborosa, para ser lida e relida.
Entre as autoras - Lygia Fagundes Telles e Carolina de Jesus - são as minhas preferidas. As Meninas, de Lygia, me trazem recordações vivas, a flor da pele.
Gostava de Fernando Sabino, mas ele se tornou antipático ao fazer um livro para uma ex-ministra odiosa da Economia. Nunca mais li Fernando Sabino, por causa do governo Collor. São esses ódios que duram até a eternidade.
Cristóvão Tezza e Caio Fernando Abreu são paixões, relativamente, recentes. O filho eterno, de Tezza, é aquele livro que eu gostaria de ter "fichado" na escola. Tanta coisa a dizer sobre ele. Morangos Mofados, de Caio Fernando Abreu, é delicado, penetrante, uma joia.
Vou desligar. A livraria me espera.
Beijos.
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