terça-feira, 27 de agosto de 2019

A soberania da destruição


Há cerca de uma semana, vivi uma situação aterradora. Eram 15h e o dia virou noite, resultado do acúmulo de nuvens escuras e da fumaça das queimadas, que vinham dos longínquos estados do Norte e Noroeste. Os dias seguintes foram atribulados. Descobriu-se que a Amazônia legal estava em chamas. 

Virou cabo de guerra entre apoiadores do presidente "de extrema direita" (como afirmam os jornais franceses) Jair Bolsonaro e seus opositores. Os bolsonaristas gritavam nas redes sociais que "na época do Lula" os incêndios eram muito maiores. E os opositores acusavam Bolsonaro de provocar o desastre ecológico de proporções continentais. 

Por que Bolsonaro seria culpado, tornando-se o Nero brasileiro? Ele demitiu um cientista do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), porque os dados de desmatamento eram desagradáveis. Cortou (ou "contingenciou", como ele gosta de dizer) verbas para manter a fiscalização ativa. Atacou o Ibama, os povos indígenas, os quilombolas. Cancelou uma reunião com ministro francês, para cortar cabelo.

A retórica bolsonarista é feroz, agressiva, rancorosa. Sua aversão ao Ibama vem desde a época em que foi multado, em janeiro de 2012, por pescar em área protegida. Três meses após sua posse, Bolsonaro exonerou o fiscal do cargo de chefia. Vingança?

A desgraça amazônica venceu fronteiras. O presidente francês, Emmanuel Macron, acusou Bolsonaro de mentir ao dizer que iria proteger a floresta e, na prática, colaborar com o desastre, por sua omissão em relação às queimadas. 

Bolsonaro não gostou e criou um entrevero diplomático com seu homólogo francês. Um imbecil bolsonarista fez um comentário jocoso na rede social sobre a mulher de Macron (que é mais velha que o presidente), comparando-a com a mulher de Bolsonaro, mais jovem e, supostamente, mais desejável. Bolsonaro divertiu-se e comentou: "Não humilha, cara, kkk". 

O exército de robôs bolsonaristas dizia que os incêndios eram esparsos. Era tudo exagero dos petistas, dos comunistas, do inimigo vermelho. O fogo não era tão grave assim. 

A Nasa (Administração Nacional e Espacial Norte-Americana) apareceu na história, publicando fotos do satélite Modis, que mostrava um cenário de horror, com as queimadas preponderando, junto às rodovias BR 163 e BR 230. As queimadas, segundo a agência espacial, eram as maiores registadas desde 2010.

Reportagem do Fantástico, aquele programa imorrível de domingo na TV Globo, foi até a Amazônia e relatou o que a gente já imaginava: grupos de criminosos tinha ateado fogo na floresta. A matéria mostrava caminhões carregados de madeira circulando, clandestinamente, à noite. A Amazônia, terra de ninguém, queimava. Era saqueada, destruída e não tinha uma única autoridade capaz de fazer valer a lei. Os bandidos construíam até pontes "piratas" para escoar o material roubado - a preciosa madeira arrancada da floresta.

Primeiro, a Alemanha, depois o G7, grupo dos países ricos, ofereceram ajuda, mas Bolsonaro disse que não aceitava o dinheiro. Só toparia receber a grana do G7, se "Macron pedisse desculpas". Sobre o dinheiro da Alemanha, Bolsonaro mandou os alemães usar o dinheiro para reflorestar o país deles.

O foco, neste momento que escrevo, mudou. O discurso bolsonarista insiste na tecla da "soberania". O Brasil é soberano. A Amazônia é nossa e vamos botar fogo nela, enquanto tiver árvore em pé. Ninguém tem nada a ver com isso. Os países ricos, os europeus, não têm que meter o nariz onde não deve. 

Quando era jovem, eu tinha um amigo hindu, que achava melhor o Brasil ceder o controle da Amazônia à Europa, porque só assim seria possível salvar a floresta. "Brasileiro não gosta de preservação", ele me dizia.

Ao longo da minha vida, passei poucas e boas, lutando pela preservação. Lembro da briga pela Casa Modernista, de Gregori Warchavchik, em 1982/84. Éramos meia dúzia de voluntaristas, protestando diante do imóvel, que fica na rua Santa Cruz, Vila Mariana. Uma construtora iria derrubar toda a área e construir torres de edifícios no local. Iniciamos o movimento, sofrendo ataques diários do jornalista José Paulo de Andrade, da Rádio Bandeirantes (até hoje, por sinal, ele é contra a preservação da casa). Nós nos reuníamos no salão paroquial da Igreja da Saúde. Juntamos forças. Chegaram mais integrantes. Começamos a fazer manifestações. A construtora entrou com processo contra mim. Fizemos reunião com o então prefeito Mario Covas que me avisou: "Se eu preservar a área, você não venha amanhã me pedir para manter o local. Não tenho dinheiro pra isso". Enfim, depois de muitas reuniões, idas e vindas, de bater em dezenas de portas de autoridades, conseguimos preservar a área, impedindo a construção de mais edifícios, como se São Paulo já não estivesse saturada de tanto prédio. Hoje, a Casa Modernista é um parque e pode ser visitado por quem estiver passeando pelo bairro. Caso raro. Quase inacreditável. 

Quando fui morar na Granja Viana, em busca de verde e tranquilidade, vi tanta árvore ser derrubada, ouvi tanto barulho de motosserra, que fiquei anestesiado. Entendi que o brasileiro é assim. Está pouco se lixando para a preservação. Ele quer construir. Matar o verde. Como o meu amigo hindu dizia, brasileiro, realmente, não gosta de natureza. 

Onde moro, vivi episódios estressantes, ligados à destruição. Lembro de um sujeito que invadiu um terreno e derrubou todas as árvores. Todas. Não deixou nenhuma em pé. Chamei a Polícia Ambiental. Veio uma viatura. Ficamos ali parados, diante dos dois policiais. O agente perguntou se eles tinham autorização para a derrubada das árvores. "Tenho", o construtor falou. Mostrou um documento que autorizava derrubar três árvores e não as quinze ou vinte que ele havia eliminado do terreno. "Quem cortou as outras árvores?", perguntou o policial. "Não sei", disse o construtor. "Só cortei as três que estavam permitidas". Os policiais devolveram a autorização e foram embora. Saí correndo atrás de um promotor do Meio Ambiente. Nenhuma providência foi tomada. Descobriu-se depois que o terreno em questão havia sido ocupado irregularmente, comprado com documento falso. Um pesadelo!

Então, é só uma questão de tempo. Todas as árvores da Amazônia serão derrubadas, queimadas, saqueadas. Essa é a nossa noção de soberania. Somos soberanos em destruir, queimar, transformar dias em noites.

Durante a construção do condomínio Alphaville da Granja Viana, as motosserras trabalharam dia e noite. A gente ouvia o ruído maldito do motor. É um ganido, um silvo arrepiante, afiado, mortal. Depois, vem o som do tombo, da árvore despencando e se despedaçando no chão. 

Nessa época, chegando do trabalho à noite, fui entrar em casa e um animal silvestre, um saruê, cruzou a frente do carro. Ele parecia cansado, andava muito devagar, trôpego. Freei. Ele ficou olhando para mim. Esse saruê era alguém sofrido, desalentado, que havia sido expulso de sua moradia e não tinha mais onde ir. Estava perdido e sem esperança. Assim como eu me sinto hoje, uma semana depois do dia ter se transformado em noite.         


        


   

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