segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019
Ainda bem que Roma não levou o Oscar de melhor filme
Sinto antipatia pelo filme Roma, escrito, dirigido e produzido pelo cineasta mexicano Alfonso Cuarón. Já sabia o que me aguardava, quando entrei na Netflix e comecei a assistir este drama sobre uma empregada doméstica de origem indígena, vivendo na casa de uma família de classe média alta, no bairro Colonia Roma, na cidade do México.
Durante longas duas horas e 15 minutos, acompanhamos a vida de muito trabalho e poucas alegrias da doméstica Cleo, que tem uma relação de irmã mais velha com os filhos de seus patrões. É ela quem cuida das crianças, que conta histórias na hora de dormir e que os acorda de manhã.
Na prática, Cleo é uma Escrava Isaura, que não ganha o suficiente para se manter (alugar um apartamento, comprar um carro, cursar a faculdade), assim como acontece com grande parte dos trabalhadores brasileiros, sejam eles empregados domésticos ou não.
O filme não permite ao público nenhum tipo de evasão. Tobey Maguire não entrará voando pelo janela, vestido de Homem Aranha, para salvar Cleo. Também Michael Fox e Christopher Lloyd não virão do futuro e não arrombarão a porta da casa, com seu DeLorean, para resgatá-la. Desde o início do filme, a gente pressente que o destino de Cleo será medíocre e inexorável.
Para deixar claro a que veio, o filme é em preto e branco. Remete, é claro, ao neorealismo italiano. Em 1948, Vittorio De Sica dirigiu o filme clássico dessa época - Ladrões de Bicicleta -, que era em preto e branco. Na época, o processo de colorização do celuloide ainda encarecia de maneira proibitiva as produções cinematográficas.
Ladrões de Bicicleta se passa no pós-guerra, em Roma, quando havia milhões de desempregados nas ruas. O protagonista consegue uma colocação de pregador de cartazes. Para manter o emprego, precisa de uma bicicleta. Ele penhora a roupa de cama da família. Arruma uma bicicleta e começa a trabalhar. O veículo é roubado. Ele e o filho iniciam um desesperado perambular pelas ruas da cidade, em busca da bicicleta roubada. O filme é emocionante. Impossível não se sentir tocado pela interpretação dos atores.
Vittorio De Sica contou certa vez que para filmar a cena final necessitava que o garoto Enzo Staiola chorasse. Sem chance. O menino não chorava. De Sica teve então uma sacada. Escondeu um pacote de cigarros no bolso do paletó do garoto e o acusou de estar fumando em segredo.
Enzo disse que os cigarros não eram dele, que não sabia como o pacote tinha ido parar em sua roupa e...começou a chorar. Sem perder tempo, De Sica ligou as câmeras, os holofotes e gravou a última sequência de Ladrões de Bicicleta. Filme memorável, inesquecível, mesmo sendo em preto e branco.
Hoje, Enzo iria processar De Sica por assédio moral.
Talvez a minha antipatia por Roma, de Alfonso Cuarón, seja por essa rastejante vontade de criar empatia pelo sofrimento dos menos favorecidos, dos miseráveis.
Acontece o mesmo com os filmes de Walter Salles. Refiro-me a Central do Brasil (1998) e Linha de Passe (2008). Linha de Passe, por exemplo, é um filme sobre fracassados. Ninguém ali vai ter sucesso, ninguém conseguirá realizar seus sonhos. A família de Linha de Passe terá 113 minutos para afundar lentamente seu barquinho, submergindo todos no naufrágio previsível.
É possível criar essa mesma empatia pelo destino dos despossuídos usando a evasão, que a gente tanto procura quando vai ao cinema. Woody Allen fez isso em Rosa Púrpura do Cairo.
A garçonete pobre, que sustenta o marido grosseiro e incompetente, durante a depressão de 1935, tem raros momentos de felicidade. Um deles é quando está no cinema, assistindo aos filmes B de Hollywood. Seu filme preferido é Rosa Púrpura do Cairo. Ela assiste ao filme tantas vezes, mas tantas vezes, que, em determinado momento, o personagem não aguenta mais, se volta para ela e começa a interagir com a garçonete pobre. Ela terá chance de entrar dentro do seu filme favorito e até se apaixonar pelo protagonista.
Apesar da minha torcida contra, Roma levou três Oscar: melhor direção, melhor fotografia e melhor filme estrangeiro. Com a estatueta na mão, Cuarón fez o que se esperava dele. Discursou em defesa das "70 milhões de empregadas domésticas sem direitos trabalhistas".
A cerimônia do Oscar é uma das muitas maneiras que Hollywood encontrou para divulgar e promover a venda de seus produtos. Cuarón é uma velho conhecido da casa, tendo sido contratado pela Warner algumas vezes, levando em 2013 o Oscar de melhor direção por Gravidade.
O premiado Roma, de Cuarón, não é um desses filmes que a gente gostaria de rever, de retornar a ele. Quanto terminam as intermináveis duas horas e 15 minutos de sua duração, a gente levanta as mãos aos céus em agradecimento. Terminou. Ainda bem. Dá alívio desligar a TV e a Netflix.
Outro filme que também se chama Roma foi feito por Federico Fellini, em 1972. Este Roma eu, certamente, teria muito prazer em rever. Faz muito tempo que assisti Roma de Fellini no falecido Cine Bijou, que ficava na Praça Roosevelt, centro de São Paulo. Devo ter assistido ao filme de Fellini em 1973, há inacreditáveis 46 anos. Só o vi uma única vez e saí da sala de exibição iluminado.
Quatro décadas e seis anos depois, lembro, perfeitamente, de várias cenas. O jovem caipira Fellini desembarcando em Roma na estação Termini. Um desfile muito louco de moda para padres, bispos e cardeais. Uma obra subterrânea (provavelmente, devia ser o metrô) encontra um tesouro arqueológico e os afrescos começam a se desfazer em contato com a modernidade. Hippies tomam banho nas fontes milenares romanas. Um congestionamento monstro em meio ao trânsito enlouquecido. A chuva de verão tombando sobre uma movimentada artéria da capital italiana. O bordel antigo com as prostitutas andando de um lado para o outro. A então esposa de Fellini aparece, chegando cansada do trabalho e tentando entrar em casa. O final antológico com as motocicletas - milhares delas - correndo livres e soltas pela Roma, cidade eterna. O filme é monumental, como Fellini o era.
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