O gostoso de ficar velho é ter direito às mordomias. Uma delas é poder estacionar o carro na vaga destinada aos idosos. O estacionamento está lotado. Os motoristas desesperados para encontrar uma vaga e aí você - idoso, pé na cova, vetusto, macróbio - encontra a vaga livre, onde se lê escrito no chão: Idoso. Em azul piscina. Com um longevo, meio tortinho, se amparando em uma bengala mambembe, desenhado ao lado da palavra mágica.
Você, matusalém da vida, vai lá e estaciona. Feliz da vida. É bom ser coroa e encontrar uma vaga no shopping lotado.
Em segundos, aparece, ao seu lado, um segurança de terno preto e gravata vermelha. O homem é careca e tem olhos de aço. Diz que você não pode estacionar ali. O velhote de cabelo branco e artrite nos ossos tira a carteira de identidade e mostra a data de nascimento. É um questão de orgulho: "Sou velho, sim senhor. A maldita vaga é minha. Foi conquistada em 66 anos de amor, ciúme e morte, como nas melhores óperas".
O segurança diz que vai chamar o Departamento de Trânsito e irá multá-lo. O motivo é simples. Não importa que você seja acabado, corroído e gasto. Não! Não interessa que você possa provar que é um tipo surrado e batido. O que o homem de terno preto e gravata vermelha exige é um cartão. A sua identidade não prova nada. O que lhe dá direito à vaga é um cartão, que precisa ser providenciado pela Secretaria Municipal de Transportes.
E lá vai você, sem vaga, sem cartão, arrastando a sua obsolescência planejada rumo à burocracia dos carimbos, dos selos e dos tabeliões sem alma. Um dia a vaga ainda será sua...
A vida é curiosa. Sempre acontece alguma coisa. Não tem um dia igual ao outro. A água que passa debaixo da ponte nunca é a mesma, como dizia Heráclito. É claro que você poderia passar sem essas obviedades, no entanto, como eu poderia transpor a história do cartão do idoso para o livro do Haruki Murakami, sem realizar esse sobrevoo?
Terminei de ler O elefante desaparece e cheguei à conclusão que nada acontece na vida. São vários contos e em nenhum deles morre alguém; Caim não mata Abel; um velho pescador não se ferra tentando pegar um peixe para acabar com a maré de azar de 84 dias; um escriturário infeliz, explorado pela família, não acorda de manhã e se vê transformado em barata. Nada! Os contos de O elefante desaparece parecem uma superfície de um lago sem borbulhas.
Imagine você, escritor, escrevendo uma série de contos, com vários personagens, várias histórias e nada acontece. Nada! E, por favor, ao invés de você me chamar de "spoiler", prefira o termo estraga prazeres. É menos anglicista e mais adequado a esse momento verde-amarelo que vivemos. "Anauê!"
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