segunda-feira, 1 de outubro de 2018

À beira do precipício


Quando era criança, passava os fins de semana com meus avós. Eles moravam em um prédio de 12 andares na rua Senador Feijó, centro velho de São Paulo. Meu avô era zelador. O prédio, ocupado por escritórios, fechava às 13h do sábado para só reabrir na segunda-feira cedo. 

Bisbilhoteiro, eu andava pelos corredores sombrios. Ouvia vozes. Saía correndo, com medo dos espíritos (pensando bem, o que um espírito estaria fazendo sábado à tarde em um prédio da rua Senador Feijó?) Era moleque, tinha medo do desconhecido. Meus avós acreditavam na existência das almas e, quase sempre, narravam alguma experiência além da vida, da qual tinham sido testemunhas.

Eu gostava de me arriscar. Uma tarde, decidi subir ao telhado. Havia uma escada de ferro que conduzia à caixa d'água naquilo que seria o 13º pavimento. A caixa d'água era gigantesca. Quem subia até lá podia caminhar sobre ela, andando na laje de cimento. Havia uma tampa, também de cimento, e se você conseguisse arrastá-la um pouco, fazendo um esforço sobre-humano, conseguia ouvir as bombas funcionando lá dentro e puxando a água, que vinha das profundezas da terra.

Além da superfície de cimento, que cobria a caixa d´água, podia ser visto um telhado, recurvado, com seis fileiras de telhas francesas. 

Naquela tarde, subi pela escada de ferro. Tentei ouvir o barulho da água entrando na caixa e fui em direção ao telhado. Trepei na cumeeira e observei as pessoas e os carros em miniatura, passando pela Senador Feijó. 

É claro que as telhas eram velhas, é claro que eu usava uma sandália, daquelas que as crianças usavam antigamente. O solado liso não freou e despenquei em alta velocidade, rumo ao precipício. 

Senti o corpo gelado, como se tivesse caído e morrido. Na realidade, morri um pouco naquele momento, de tanto medo de mergulhar no vazio. Pensava no sofrimento que causaria aos meus avós, meus pais, minha irmã, minha tia...As pessoas que eu mais amava na vida e que eram tudo para mim. 

No final das telhas, havia uma calha, reforçada, bem resistente, que amparou meus pés. Mesmo assim, senti a calha fraquejar, dar uns estalos. Eu não tinha onde me segurar. As telhas eram muito lisas e pareciam cobertas com um limo escorregadio. Precisava recuar... 

Lentamente, fui me mexendo para trás, só que, às vezes, voltava a escorregar e descer em velocidade em direção à calha. Tirei as sandálias e descalço consegui a firmeza que necessitava para sair do sufoco.

Contei essa história, porque estou me sentindo assim, hoje, a uma semana antes da eleição. Vivi 21 anos sob a Ditadura Militar e foi uma experiência dilacerante. Eles proibiam o acesso a livros, filmes e peças de teatro. Censuravam alguns jornais (a Folha, não). Impediam reuniões. Fechavam sindicatos. Andando pela rua, você era parado, revistado...Uma noite, o militar tirou todos os meus documentos e espalhou sobre o camburão, tentando achar sei lá o quê. A gente vivia debaixo de uma sombra escura, asfixiante. Era um País sem alegria, infeliz, temeroso. O País não andava. Entre 1982 e 1983, fiz uma pesquisa de campo no interior de Minas Gerais e dei de cara com o atraso, a miséria, a pobreza atroz. As crianças desmaiavam de fome na sala de aula. O transporte público era risível. Os muito doentes morriam, enquanto eram transportados para a capital Belo Horizonte. Faltava trabalho, faltavam escolas e oportunidades. O "milagre econômico" do regime militar era um conto de fadas. A miséria estava por todo canto.

Agora, justamente o candidato que apoia a volta a esse pesadelo político, econômico, social, cultural lidera as pesquisas. Seus correlegionários são agressivos, fazem uma campanha brutal, com componentes insuportáveis. Como a maré negra que se incorpora aos pássaros marinhos e crustáceos, sinto o mesmo acontecendo à minha volta. Leio os posts de antigos amigos, participo de conversas com conhecidos próximos e percebo neles um reacionarismo fétido. Como é possível ser contra o Bolsa Família, em um País com 13 milhões de miseráveis? Essa sujeira vai se alastrando, vai se incorporando aos nossos corpos, vai deixando tudo grudento, matando a vida. Me sinto novamente criança, à beira do vazio. Só que o meu desejo agora é sucumbir à queda. Não parece mais valer a pena. 

Sábado passado, as mulheres foram às ruas e marcaram território. Foram belas manifestações, pacíficas, emocionadas, valorizando o novo ideário feminista - contra o machismo, contra o racismo, contra a volta da Ditadura, a favor do aborto e dos LGBTs.

Quem analisa os índices de rejeição percebe que o candidato, que apoia a Ditadura Militar, tem pouca chance de sobreviver ao segundo turno. O problema é que o tecido que forma a sua candidatura vai continuar existindo e se propagando, em metástase, como um câncer. Contra essa gente não há quimioterapia política eficiente.

Então, para que serviu tudo aquilo que fizemos nos anos 1980? O que adiantou ter participado de tantas manifestações, pedindo a volta das Diretas, se eles continuam vivos, ervas daninhas contaminando nosso jardim? 

A democracia fez um bem danado para o País. Em 2012, quando fiz nova pesquisa de campo e retornei àquela comunidade mineira, parecia estar em outro lugar do mundo. Sobravam postos de trabalho, "aqui só não tem emprego quem não quer", me diziam os entrevistados. Os antigos sitiantes haviam prosperado. Havia transporte público decente, escolas e unidades médicas suficientes. Ninguém mais desmaiava de fome.

Só que a democracia não bateu fundo, não fez todo o dever de casa. Era preciso ter tosquiado o capital devidamente. Taxar os rentistas, taxar as grandes fortunas, obrigar esse negócio multimilionário, chamado igreja, a pagar impostos. 

E o banqueiro, com fortuna de 450 milhões de reais, querendo ser presidente? Os bancos demitem pessoal, obrigam o desgraçado que precisa entrar naquele antro a esperar horas e horas na fila, cobram juros escorchantes e nunca faturaram tanto na vida. Perto de casa tem uma agência da Caixa Econômica Federal com um funcionário para atender dezenas de miseráveis, em busca do troco do PIS. Fui perguntar o que estava havendo e aquela mocinha que fica na porta, tentando apagar o incêndio com colher de sobremesa, me disse que a agência tem dois funcionários. "Só que um está de férias."




          

       

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