terça-feira, 1 de maio de 2018

Coisas que odeio - som alto


Devia ter uns quatro anos. Estava na casa dos meus avós, que moravam no Centro velho de São Paulo. Meu avô era zelador de um prédio comercial e vivia no 12º andar, em um apartamento de três quartos, sala ampla, cozinha imensa. A construção era sólida, mas sem os requintes modernos. As janelas eram incapazes de vedar o som que vinha da rua. Se uma tampa de bueiro fosse deslocada e fizesse barulho cada vez que a roda de um carro passasse sobre ela, ouvia-se tudo perfeitamente lá no 12º andar, como se a janela estivesse no rés do chão.

Nessa mesma rua, quase em frente ao prédio em que meu avô era zelador, vivia o jornalista Assis Chateaubriand, fundador dos Diários Associados. Uma das mazelas de Chateaubriand era não conseguir conciliar o sono por causa de uma gafieira que havia na rua Quintino Bocaiúva. Senti na pele (ou nos ouvidos) o drama de Chateaubriand. 

Menino ainda me sentia impotente diante daquele barulho insuportável. Queria dormir, virava na cama, cobria a cabeça com o travesseiro e o barulho vinha em ondas, balançando os vidros das janelas, invadindo o espaço da nossa família. 

Naquela época não sabia, mas a vida inteira seria perturbado pelo som alto que vem do vizinho, do carro que passa na rua, do boteco, de algum lugar remoto...

Cheguei a conclusões preliminares: o som alto é agressivo, invade seu espaço como uma tropa de ocupação, o responsável pelo barulho sabe que está lhe perturbando e seu incômodo é a última preocupação dele. Esse tipo de arruaceiro é egoísta por excelência. A diversão dele prepondera sobre a sua paz. Ele não admite ser chamado a atenção e vê na sua atitude uma falta de "boas maneiras", como se o intruso fosse você, o reclamante. 

Perdi a conta das vezes em que estive em distritos policiais, por causa desses arruaceiros. Morei durante um tempo na casa da minha sogra, no bairro da Mooca, e na rua onde ela vivia, havia uma família desagregada - o pai tinha fugido com outra, a mãe dava suas escapadas noturnas e a casa dessa família ficava entregue aos filhos adolescentes e a um rapaz com seus 20 anos. Esse moço dava festas que duravam três dias. Som no último volume. Um inferno!

Uma noite, chamei a polícia. A atendente no 190 me disse que eu devia ficar na rua aguardando a chegada da viatura policial e que deveria acompanhar os agentes, quando eles fossem bater na casa barulhenta. Naquela época, os policiais militares não sabiam direito como se portar. Pouca gente se queixava de "perturbação da ordem pública", embora já tivesse início aquela fase do tum-tum-tum insuportável, que desaguaria nos bailes funk da periferia e adjacências. 

Para resumir a ópera, lá fomos todos nós para o Distrito Policial, conversar com o dr. delegado. O garoto arruaceiro me olhava indignado. Ele era incapaz de entender que eu e a minha família preferíamos dormir, ao invés de passar a madrugada acordados por causa da música que ele ouvia.

Quando me mudei para a Granja Viana achava que tinha encontrado um lugar bucólico e silencioso. Engano atroz. Uma noite acordei com a maluca da vizinha, cantando karaokê às três da madrugada. Havia sábados de muitas festas e som que estropiava as noites estreladas. Os fins de semana eram regalados a cheiro de carne queimada do churrasco e o tum-tum-tum característico que vinha de todas as latitudes e longitudes. 

Se você tenta se refugiar em um sítio, é muito pior, porque os arruaceiros acham que estão "no mato" e portanto podem estatelar o o som massacrando a ausência plena de razoabilidade. 

É estranho, mas por que cargas d'águas barulhentas o arruaceiro  faz questão de obrigá-lo a ouvir a música que você não quer ouvir? Ele não se contenta em ouvir, ele quer propagar o som, como se fosse o avatar de uma verdade universal. 

Chama-se a polícia. Acompanha-se os agentes. Produzem-se boletins de ocorrência. Arrumam-se testemunhas. O escrivão datilografa. Registra seu testemunho. Pede para você assinar. As ocorrências seguem por vias estreitas e mal faladas dos corredores judiciários. Você liga. A escrivã não se lembra do seu caso. Você insiste e percebe que a Justiça se arrasta sem pressa, sem ser justa. 

Pergunta que não quer calar: E se processássemos também as indústrias que fazem esses aparelhos de som de frequência, timbre e altura desumanos? 

A indústria do tabaco tem sido ré em processos pesados e vem desembolsando muita grana para compensar os danos provocados pelo cigarro. Em 2004, a toda poderosa Philip Morris perdeu um processo histórico no valor de um bilhão de dólares. O mesmo poderia acontecer com a Sony, que faz esses aparelhos de som que alcançam alturas desmesuradas e incompatíveis com a cordialidade possível. Quanto a Sony me deve em indenizações pelas minhas noites mal dormidas, por causa de seus equipamentos incivilizatórios?

Nos Estados Unidos, em alguns estados, se você for pilhado com o som alto, vai desembolsar no ato uma multa dolorida de mil dólares (R$ 3,5 mil). Em outros países, as pessoas "ruidosas" vão em cana mesmo. 

Certa vez, quando morava no interior da França, em Nancy, lembro de ter ido a uma festa de brasileiros em um pequeno apartamento. A gente comeu feijoada (porque brasileiro vivendo fora do Brasil sempre vai comer feijoada) e depois do almoço, depois das caipirinhas inevitáveis, o pessoal tirou os batuques pra fora e começou a produzir aquele som característico de treinamento de escola de samba. Falei para a minha mulher: "vamos sair daqui que o bicho vai pegar". Não demorou 15 minutos e baixou uma equipe da Swat local, levando toda a escola de samba improvisada para falar com o dr. delegado francês. 

O fato é que o mundo é barulhento. É ruidoso demais. O tempo todo. O silêncio hoje é um luxo, ao qual poucos têm acesso. Nos últimos anos, não me lembro de ter passado um único dia - vou insistir nesta informação - um único dia, sem ser obrigado, em algum momento da jornada, a escutar uma música que não gostaria de ouvir.

Enfim, entre Música ao Longe e O Resto é Silêncio - ambos de Érico Veríssimo - adivinhe qual eu prefiro?

Nota de rodapéO rapaz lá da Mooca mudou-se com a família, sem deixar rastros. E a gafieira da rua Quintino Bocaiúva pegou fogo e acabou-se em cinzas. Bem feito!        





    

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Humorista Leo Lins é censurado pela Justiça Federal

  Leonardo de Lima Borges Lins, o humorista condenado O início é óbvio: Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 5º, que trata...