Nunca dei sorte com vizinho. Era criança. Morava em um prédio na rua Senador Feijó, centro (muito) velho de São Paulo. A rua era ocupada apenas por prédios de escritórios. Só havia uma exceção. Na rua Quintino Bocaiúva, em um prédio de três andares, quase em ruínas, funcionava aos sábados uma gafieira. Começava às 20h e varava a madrugada. Era impossível dormir. O som chegava "alto e claro", como diria um PM.
Não estava só na minha agonia. O proprietário dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, morava ali perto e também não dormia. Na biografia, escrita por Fernando Moraes, está lá registrada a queixa.
Vizinho, em geral, é chato. O melhor vizinho do mundo é aquele que morreu há três anos e você nem desconfia. Por isso, a personagem do livro Água fresca para as flores, de Valérie Perrin, me deu uma inveja danada. A mulher mora em um cemitério.
Na Mooca, os vizinhos chatos reproduzem-se aos milhares. Tinha o rapaz que organizava festas de fim de semana. O evento começava na sexta-feira e terminava na segunda. Som em volume enlouquecedor. Tinha o buffet, cujo modelo de negócio, visava incomodar a vizinhança, com karaokê. Não faltava a moça que fazia ovos de Páscoa, com a janela aberta, para conversar com qualquer figura que estivesse passando na rua. "Olha que bonito que ficou..." Na casa ao lado, registrou-se uma briga familiar, que demorou uns dois meses para ser concluída. Toda noite, a família se reunia e discutia. Em altos brados. Como discutiam, meu deus. O problema era uma gravidez não desejada. Até eles decidirem ter o bebê, a gente ficou algumas madrugadas de olhos bem arregalados. Sem esquecer aquele pessoal que conversava embaixo da janela da gente, às 3h da madrugada, como se estivesse na praça de alimentação do shopping.
Na Vila Clementino, na época da minha adolescência, o meu vizinho chato chamava-se Hélio Coração. Ele comprava um carro usado e fazia o possível para transformar o veículo em um amontoado de ferro-velho. Ele martelava, martelava, martelava. Não era Thor, mas adorava um martelo. Depois de destruir o carro e torná-lo sucata, o bom e velho Hélio Coração atacava a casa. Começava uma reforma, sem data e ano para ser concluída. Antes, era preciso passar o aspirador de pó em toda a casa. De madrugada.
Em termos de vizinhos chatos, o pessoal da Granja Viana batia qualquer recorde. Como eles eram malas, cristo rei. Dois rapazes órfãos e maconheiros usavam a noite de sábado para criar uma filial do lolapalooza. A casa deles se metamorfoseava em boate. Cobravam ingressos. Queimavam fumo a dar com pau. A rua ficava lotada de carros. Era um Carnaval alucinado. Uma balbúrdia amaldiçoada. Na casa ao lado, a vizinha chata, que gostava de ostentar, chamava os amigos, ligava o som e era aquela zoada. Eu saía no quintal e via o pessoal, em uma espécie de puxadinho, todos suados, sem camisa, jogando bilhar. Sem outra opção, aumentei o muro em pelo menos mais três metros. Na casa em frente, outro vizinho chato ligava o som, todo domingo, religiosamente, por volta de 11h. Eram músicas tipo Antena 1. Ele almoçava fora - isto é, punha a mesa diante da casa. A gente saía na varanda e ficava vendo tudo que eles comiam. Era legal. Você acha que terminou? O que é isso... Um piauiense ocupou um terreno vazio (provavelmente, com a ajuda de alguém da prefeitura) e construiu piscina e edícula. Dava festas, que deixariam Neymar morrendo de inveja. O local era frequentado por moças de reputação ilibada. A polícia era chamada. Havia discussões acaloradas. Sucursal do inferno. Sem esquecer do maluquete que tocava bateria quatro casas abaixo. Sem esquecer das festas que aconteciam toda semana em alguma casa próxima ou distante (a gente, mesmo sem querer, participava).
No interior e na praia, não é diferente. Há sempre um funkeiro, um sertanejo, que o obriga a ouvir a música, que você não gostaria de ouvir. Esses equipamentos de som foram criados para invadir o seu espaço privativo. Você não tem mais direito de privacidade. A música indesejada vem até você e destrói sua capacidade cognitiva, seu raciocínio lógico, sua razão de existir. Pitágoras só fez o teorema de Pitágoras, porque não tinha um vizinho chato. Einstein, que dizia que os brasileiros eram macacos, só pensou a Teoria da Relatividade, porque não tinha um vizinho chato.
Não é só o refrigerante que deva se tratado como cigarro. O aparelho de som também causa problemas graves de saúde. Parece brincadeira, mas a IA acaba de me dizer que som alto causa doenças cardíacas, distúrbios psíquicos, insônia, labirintite e - acrescento eu - ódio. Se você estiver sem fazer nada - nada mesmo - faça o seguinte: acesse o senhor de todos os saberes, o Google, e pergunte para ele: "Briga por som alto causa morte?". Os resultados serão assustadores. "Briga por som alto acaba em morte", "Mulher é morta por vizinho, após reclamar de som alto", "Homem é morto após reclamar com casal por causa de som alto"...
Os telejornais, quase que diariamente, reportam festas funk, os pancadões, realizadas na rua. Em 2019, na favela de Paraisópolis, nove pessoas morreram depois de a polícia entrar no local, em busca de ladrões de motocicleta. Houve correria. Os participantes da festa entraram em pânico. Muitos acabaram pisoteados e mortos. Os 13 policiais ainda estão sendo julgados, mas o que chama também a atenção é que ninguém fala do organizador da festa funk, do pancadão. Quem é essa pessoa que organiza uma festa na rua, sem a menor condição de sgurança? Faz uma arruaça imensa, provoca mortes e nunca é citado, quem é ele? Ou eles? Será que o setor de inteligência da polícia não consegue descobrir quem são esses organizadores de pancadões?
As ruas são interditadas. As pessoas não conseguem se locomover. Há consumo de drogas lícitas e ilícitas pela garotada. A bagunça começa na sexta-feira e vai até a manhã de segunda. Estranho é que já existe lei. A multa prevista é de até 200 mil reais, com direito à apreensão do equipamento de som.
Bom mesmo é na Suíça. Para proteger a sanidade de seus habitantes, o governo suíço determinou restrições severas de redução de ruído. Aos domingos e feriados, não é permitido fazer barulho; de segunda a sábado, entre 22h e 6h, todo mundo tem de ficar bem quieto; alguns edifícios proíbem até os homens de urinar em pé (quer fazer xixi de madrugada? senta na privada). Também entram no rol de proibições noturnas: usar aspirador de pó, cortador de grama, secador de cabelo, bater a porta do carro, dar descarga. Na Suíça, Pitágoras teria condições de fazer o seu teorema em paz.
Aí você se muda para o interior. Compra um sítio, mais ou menos isolado. Fecha-se em seu escritório e...descobre que tem mais um vizinho chato. É um casal. Eles moram bem em cima da sua cabeça. Mais exatamente, no forro da casa. É um casal de cor esverdeada, que grita muito, se mexe sem parar, anda pra lá e pra cá, derruba coisas, corre e tudo isso para pôr um ovo. Será que a senhora, dona Maritaca, não consegue chocar esse maldito ovo, sem tanto rebuliço?
Durma-se com um barulho desse.
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