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Celebração no Recife (PE) em homenagem a Zumbi |
A Guerra de Palmares e a morte do líder negro Zumbi
pelo bandeirante paulista André Furtado de Mendonça, capitão e sargento-mor do mestre de campo Domingos Jorge Velho, tem causado uma cisão ideológica nesse pessoal
que se alfabetizou com a cartilha “Caminho Suave”.
Esses senhores, que usavam calças curtas e
anacrônicos suspensórios, nos anos 1960, aprenderam que os bandeirantes eram
heróis e que eles foram essenciais para ocupar o território e compor as
fronteiras do Brasil, como país que é hoje. Sem os bandeirantes paulistas, o
Brasil talvez fosse uma grande Guiana, sem desprezar em absoluto a Guiana (nem
a Guiana Francesa e nem o Suriname).
Recentemente, todo Dia da
Consciência Negra (20 de novembro), fala-se em Zumbi. Exalta-se o líder negro e
sua luta contra a escravidão. Já os bandeirantes são taxados de racistas,
criminosos, bárbaros assassinos de índios e negros. Um manifestante mais
exaltado fez uma “vaquinha”. Comprou pneus velhos, gasolina e ateou fogo em
Borba Gato, aquele monumento assustador de 13 metros de altura, tendo na “alma”
trilhos e pedras, e o corpo sujo pelo ar poluído do trânsito convulso da
avenida Santo Amaro, em São Paulo.
Zumbi foi realmente um herói? Era um idealista que
sonhava com um mundo de paz, igualdade e desenvolvimento?
O jornalista Leandro Narloch, especialista em
produzir livros que conspurcam heróis e mitos da esquerda, afirma que Zumbi era
um escravocrata. Ou seja, contraditoriamente, o líder de Palmares também tinha
escravos, igual aos fazendeiros portugueses. Para chegar a esta conclusão,
Narloch argumentou que Zumbi sequestrava negros em fazendas para escravizá-los e,
por ser de uma família originária de uma região da África, onde a escravidão
era recorrente, então Zumbi seria um escravocrata.
Esta versão ganhou o apoio inesperado do então
presidente da Fundação Palmares Sergio Camargo, durante o governo Jair
Bolsonaro (2018-2022). Camargo declarou, na época, que Zumbi era um filho da p... que tinha escravos. Camargo é preto.
O problema de Zumbi e Palmares é que são escassos os
registros sobre esse quilombo. O proprietário de terras Manuel de Inojosa
escreveu, em 1677, uma carta relatando sobre o cotidiano de Palmares. Ele
enviou um negro, como “espião” a Palmares, e ficou sabendo que haveria um
regime de poliandria, em que vários homens viviam ao redor de uma única mulher.
Tudo que se produzia ali era dividido e repartido entre todas as famílias. Uma sociedade pré-comunista.
O padre Antonio Melo teria socorrido um garotinho
negro órfão. Cuidado dele. Ensinado as primeiras letras (inclusive latim) e,
quando chegou à adolescência, esse garoto fugiu para se refugiar em Palmares.
Anos mais tarde, o padre se avistaria com o líder do quilombo, Zumbi,
reconhecendo-o como o garotinho órfão que tinha abrigado. Outros historiadores
afirmam que Zumbi nasceu em Palmares (talvez em 1655) e assumiu o comando do
quilombo, depois da morte de seu tio Ganga Zumba, morto por envenenamento.
O jornalista e historiador Décio Bergamaschi Freitas (1922-2004), militante comunista, pesquisou a história de Palmares. Exilado e cassado pela Ditadura Militar, Freitas foi a Portugal e consultou o Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo da Torre do Tombo, Biblioteca da Ajuda e Arquivo e Biblioteca Distrital de Évora. É dele a informação de que Zumbi teria sido criado pelo padre Antonio Melo.
(ver entrevista concedida por Décio Freitas à Folha Online: https://www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/zumbi_17.htm). Freitas é autor do livro "Palmares, a guerra dos escravos".
O quilombo de Palmares não possuía cartório, nem escrivães. Não tinha serviço postal, nem seus moradores enviavam cartas a amigos e familiares. Se havia algum texto escrito em Palmares, foi destruído com o fim do quilombo. Então, não se sabe se Zumbi tinha escravos. Bater o martelo e afirmar que ele era escravocrata é apenas chute, palpite, uma impropriedade intelectual. O autor não deve ser levado a sério, porque não se baseia em documentos históricos fidedignos.
O quilombo de Palmares existiu por décadas. Textos oficiais informam que os primeiros quilombos teriam surgido ainda em 1594. Menos de cem anos da chegada dos portugueses.
Durante o governo de Ganga Zumba (1630-1678), tinham havido expedições para atacar Palmares. A ação mais contundente aconteceu em 1678, comandada por Fernão Carrilho. Ganga Zumba e Carrilho fazem um acordo de paz, sacramentado pelo então governador de Pernambuco (1674-1678) Pedro de Almeida.
Ganga Zumba deixa Palmares, conforme o acordo, e segue para viver na região de Cucaú (onde hoje ainda existem usinas de açúcar). O sobrinho dele, Zumbi, não aceita sair de Palmares. Um emissário de Zumbi vai até Cucaú e mata Gaga Zumba por envenenamento. O fato de Ganga Zumba ter aceito sair de Palmares foi entendido pelo grupo liderado por Zumbi como traição.
Fernão Carrilho aproveita o acordo de paz para pedir uma série de benefícios à coroa portuguesa, inclusive dinheiro. Ele e muitos de seus comandados são atendidos e presenteados. Achava-se, então, que Palmares não mais existia.
Não era bem assim. Palmares continuava vivo e recebendo sempre novos moradores. Negros fugiam da vida insuportável e degradante nos engenhos e iam buscar asilo em Palmares.
O bibliotecário Ernesto Ennes, funcionário do Arquivo Histórico Colonial de Portugal, fez uma pesquisa reveladora e prestou um serviço elogiável àqueles que pretendem entender um pouco sobre Palmares. Em 1938, ele publicou "As guerras nos Palmares", pela Companhia Editora Nacional. Em 140 páginas, Ennes faz um breve resumo das campanhas, movidas pelos portugueses, contra Palmares. As demais 370 páginas são documentos da época, entre eles a carta de 15 de julho de 1694, escrita de próprio punho pelo bandeirante Domingos Jorge Velho, narrando a epopeia da luta contra Zumbi.
Jorge Velho sai de São Paulo com "mil homens de arcos, 200 de espingarda e 84 brancos". Ou seja, a maior parte do regimento era composto por indígenas. No percurso até Recife, "600 léguas" (o equivalente a 2.600 km) morreram 132 pessoas (63 de doenças) e 200 fugiram.
Antes de chegar a Palmares, o mestre de campo é obrigado a "retrogradar" (retroceder), por causa de uma ordem recebida do governador geral (1687-1688) Matias da Cunha.
Em 1688, Jorge Velho vai ao Rio Grande (atual estado do Piauí) e combate "um número quase infinito de tapuias bravos", "rebeldes comedores de carne humana". O inimigo seria "em número de 10 mil". Jorge Velho perde 43 homens e "60 a 70" ficam feridos. Liberta o capitão-mor Constantino de Oliveira, cercado pelos tapuias. O mestre de campo aprisiona 800 indígenas, "gentio de todo sexo e idade", que foram rapidamente "batizados".
Do Piauí, Jorge Velho segue com sua tropa para Palmares. Faz uma primeira investida, mas encontra resistência feroz. Os palmarinos estão bem armados. Defendem-se por trás de fortificação feita com paus espetados, buracos profundos, espinhos, guaritas. Em documento escrito pelo governador de Pernambuco (1693-1699) Caetano de Melo Castro ao Conselho Ultramarino, essas fortificações teriam sido obra de um imigrante mouro, que deixou a cerca "quase inexpugnável".
Os atacantes eram rechaçados com armas de fogo, pedras, água fervente e flechas. O mestre de campo não consegue penetrar no quilombo. Sem munição suficiente (pólvora), bate em retirada. Segue para o Riacho Paratagi (hoje, é um resort em Alagoas), onde aguarda reforços por longos e "enfadonhos 10 meses".
Depois de quase um ano à espera do reforço solicitado, finalmente, recebe armamento e segue novamente em direção a Palmares. Seu "terço" (pelotão) tem agora 600 indígenas e 45 brancos. O mestre de campo reclama que veio só "munição de guerra e nenhuma de boca" (não tinham vindo alimentos).
Para destruir Palmares, Jorge Velho faz trincheiras paralelas às trincheiras dos palmarinos. A "cerca", como eles chamam a fortificação, tem 5 km de extensão, ao redor da Serra da Barriga (atualmente, esse local fica no estado de Alagoas). Ao cercar Palmares, Jorge Velho impede uma possível fuga em massa.
Do dia 5 de fevereiro para o dia 6 de 1694, as tropas do bandeirante rompem as trincheiras e avançam sobre Palmares. Os sentinelas palmarinos são surpreendidos pelo ataque. Zumbi leva "duas pelouradas" (balas de pedra), mas consegue fugir. Os atacantes fazem 519 presos. Duzentas pessoas tentam escapar, mas caem em um precipício e morrem. "Outros tantos" são executados.
Em novembro do ano seguinte, o capitão e sargento-mor da tropa de Jorge Velho, André Furtado de Mendonça, recebe a informação de que moradores de Rio de São Francisco haviam aprisionado "um mulato" que saberia o paradeiro de Zumbi.
No dia 20 de novembro de 1695, Mendonça desloca-se até o local. Mantém o informante vivo, em troca dele conduzir a tropa até onde se encontrava Zumbi. Ele concorda e os leva até um "sumidouro", onde os fugitivos de Palmares se ocultavam.
Zumbi está acompanhado por apenas 20 homens. Todos são mortos. Zumbi é degolado e sua cabeça é levada por André Furtado de Mendonça até Recife, onde é colocada, a mando do governador Caetano de Melo de Castro, "em um pau, no lugar mais público desta praça, a satisfazer os ofendidos e justamente queixosos, e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam este (Zumbi) imortal; pelo que se entende que nesta empresa se acabou de todo com os Palmares".
A praça, no caso, é o Pátio do Carmo, em Recife. Hoje, no mesmo local, existe uma estátua, representando a cabeça do líder de Palmares, espetada por uma lança.
Na carta de 15 de julho de 1694, quando Palmares já havia sido derrotado, Domingos Jorge Velho lembra ao rei Pedro II, "o pacífico", que saiu de casa, deixando suas criações e familiares, para enfrentar "o gentio bravo e comedor de carne humana".
Eram 16 anos de muito trabalho e luta, que tinham sido relegados "para servir sua majestade na guerra, (...) em razão de sermos leais vassalos a não faltar ao serviço de nosso rei". O bandeirante reclama que "nenhum lucro me ficou dessa guerra".
Para chegar até o local do conflito, o regimento de Jorge Velho enfrentou a marcha "mais trabalhosa, faminta, sequiosa e desamparada, que até hoje houve no dito sertão, nem quiçá haverá, salvo se for pelos mesmos passos, e em semelhante tempo; na qual de fome, sede, e misérias morreram 132 pessoas".
Sobre a captura de indígenas, Jorge Velho tem uma concepção redentora. Personagem do século 17, o bandeirante acredita estar fazendo um trabalho de reintegração do indígena à sociedade portuguesa:
"Ao servimo-nos deles para as nossas lavouras; nenhuma injustiça lhes fazemos; pois tanto os sustentamos a eles e a seus filhos, como a nós e aos nossos: e isto bem longe de os cativar, antes se lhes faz irremunerável serviço em lhes ensinar a saber cultivar, plantar, colher e trabalhar para seu sustento, coisa que antes de os brancos lhes ensinarem, eles não sabiam fazer".
Para o bispo de Pernambuco dom frei Francisco de Lima, Domingos Jorge Velho era "um dos maiores selvagens com que tenho topado", "nem se diferencia do mais bárbaro tapuia". O bispo não se conformava que Jorge Velho se considerava cristão, sendo casado e tendo "sete índias concubinas". Jorge Velho, de acordo com o religioso, "andava metido pelos matos à caça de índios e índias, estas para o exercício das suas torpezas e aqueles para os granjeios dos seus interesses".
A maior parte das cartas escritas por Jorge Velho aos governantes, constantes no livro de Ernesto Ennes, visava o cumprimento das promessas anteriores à campanha militar. O bandeirante exigia o acerto dos acordos. Assim, o mestre de campo ganhou uma sesmaria (terra inculta concedida pelo governo português aos povoadores) e se transformou em fazendeiro, criador de gado. Também foram premiados integrantes do regimento. O sargento-mor André Furtado de Mendonça, o executor de Zumbi, ganhou uma ajuda de custo de 50 mil réis (equivalente a 1.500 reais).
Finalmente, vale a pergunta: por que Palmares precisou ser destruído? A resposta é simples. A princípio, Palmares tinha uma relação de simbiose com fazendeiros vizinhos. Trocavam produtos agrícolas, bens e faziam negócios.
Com o tempo, Palmares passou a receber um número grande de negros fugitivos. Muitos desses novos integrantes do quilombo passaram a assaltar e roubar os fazendeiros vizinhos. Casas eram saqueadas e moradores assassinados. "Levavam os escravos - a uns por vontade e a outros, por força; matavam feitores e muitos senhores e senhoras, executando todo gênero de hostilidade. Sempre cruelmente", escreve o mestre de campo.
Então, para os governadores de Pernambuco, que se sucediam no poder, Palmares era um estado à parte. Um território inimigo, que precisava ser aniquilado.
O cenário de Palmares é atual e lembra o Rio de Janeiro. Existe um morro, ocupado por pessoas que vivem à margem da sociedade. Eles têm seu próprio governo e para assegurar o domínio do território usam armas. Quem se atrever a subir o morro e afrontá-los vai levar bala. Hoje, não se chamam Zumbi. Têm outros nomes: Peixão, Varão, Abelha, Naval...
Passaram-se 329 anos, desde a morte de Zumbi; e 136 anos, desde a assinatura da Lei Áurea. O Brasil tem ainda 8 milhões de pessoas vivendo na miséria. São quatro por cento da população exatamente iguais aos negros que fugiam e buscavam refúgio em Palmares. Sem eira nem beira, para usar um termo português por excelência.
Os fazendeiros brasileiros (a elite) mantiveram a escravidão até o limite, até onde foi possível (pelo menos o Brasil se saiu melhor que a Mauritânia que aboliu a escravidão em 1981). Em represália à assinatura da Lei Áurea, a elite apoiou, um ano depois, em 1889, o golpe militar que pôs fim ao império.
Terminado o período escravista, a mesma elite buscou novas "máquinas braçais" no exterior, atraindo imigrantes, principalmente, italianos, espanhóis, alemães e japoneses. Nas fazendas, os imigrantes trabalhavam muito e ganhavam miseravelmente. A exploração do trabalhador mantinha-se intacta.
Mais ou menos parecido com o que ocorreu ao longo de todo o século 20 e início do 21, mesmo com o advento da industrialização nos anos 1960, chegando hoje à constatação de que o Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. Um por cento de seus habitantes detém 28 por cento da renda total. A desigualdade aumenta a pobreza, a fome e impede a mobilidade social.
O governo Lula tem mais dois anos pela frente. Apenas 730 dias. Está na hora de começar a tirar os coelhos da cartola.
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