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A privatização da rede elétrica deu errado |
Imagine você assistir uma peça de teatro, com os três primeiros atos iguais. Primeiro ato: choveu, o fornecimento de energia é interrompido. A concessionária não sabe quando vai normalizar o fornecimento. O cliente liga e a concessionária não responde, se esconde, se omite. Segundo ato: choveu, o fornecimento de energia é interrompido. A concessionária não sabe quando vai normalizar o fornecimento... Terceiro ato: choveu, o fornecimento de energia é interrompido. A concessionária...
Parece uma peça de Samuel Beckett. É a realidade em São Paulo. A concessionária responsável pelo fornecimento de energia - a italiana Enel - demitiu 8,4 mil funcionários, entre 2019 e 2023. Mesmo tendo lucro, mesmo ganhando novos clientes, a empresa optou pelas demissões.
Na sexta-feira, final de tarde, a mudança climática transforma o que seria uma chuva de primavera em minitufão com ventos de até 107 quilômetros por hora. Muros, avisos, árvores, postes não resistiram à tempestade e vieram abaixo. Conclusão: 2 milhões de clientes às escuras. Sete pessoas mortas.
Já aconteceu outras vezes e vai acontecer novamente. O que se esperava era que a concessionária tivesse equipes sobrando para dar conta da emergência. Não tem. Hoje, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, convocou empresas de energia de outros estados para socorrer São Paulo, porque o contingente da Enel foi reduzido e não dá conta da situação.
Por algum motivo desconhecido, ninguém toma qualquer medida prática. A concessionária, que ganhou a concessão para fazer determinado serviço, não o faz. Mas continua à frente do serviço. A empresa diz que o vento foi muito forte, que choveu muito... Ninguém toma a decisão que seria a mais correta: encerrar a privatização e retomar a estatização dos serviços. Essa medida mataria do coração os editorialistas do Estadão, mas afastaria os incompetentes, que não conseguem prever o óbvio: vivemos uma crise climática e as tempestades serão cada vez mais frequentes.
Por isso, minha cara Enel, vocês teriam de ter milhares de equipes de emergência a postos. Milhares de caminhões equipados. Milhares de eletricistas treinados à exaustão, para resolver em minutos o que a empresa tem precisado de dias para fazê-lo.
A cidade de São Paulo tem esse nome, por causa de um fariseu turco chamado Saulo. Ele era uma espécie de capitão do mato. Ao invés de negros escravizados foragidos, perseguia cristãos. Ele os prendia, acorrentava e os levava presos para serem torturados e mortos. Aos 28 anos, Saulo se identifica com a fé cristã. Muda de nome. Vira Paulo, o Apóstolo. Escreve 13 livros para o Novo Testamento. É preso pelos romanos e morto, em circunstâncias desconhecidas, depois de o imperador Nero acusá-lo de ter ateado fogo em Roma.
No dia 25 de janeiro de 1554, o padre jesuíta Manuel da Nóbrega sobe a serra e chega ao planalto. Decide iniciar ali uma povoação. Batiza o lugar de São Paulo, por causa do dia santo. A partir desse dia, a cidade tomaria um sem número de decisões errôneas.
As margens dos rios foram ocupadas por moradias. Quando chove, os rios sobem e inundam as casas. As autoridades, como Prestes Maia e Paulo Maluf, deram preferência ao transporte de veículos particulares, ao invés de investir em transporte de massa (metrô, trens interurbanos, linhas preferenciais de ônibus). Em São Paulo, sair do ponto A e chegar ao ponto B nem sempre dá certo. O trânsito é caótico. Quando os semáforos não funcionam (como aconteceu na sexta-feira à noite), a cidade praticamente para. Pode desmarcar o compromisso, pode esquecer a hora de voltar para casa. Não vai conseguir.
As construtoras fazem a festa na cidade. A cada dia, surge um novo prédio no horizonte. E a cada novo prédio a qualidade de vida no bairro "vai para a cucuia", como dizem os cariocas ao se lembrarem do cemitério da Cacuia, na Ilha do Governador. São centenas de novos moradores em uma rua onde viviam 50 pessoas. Assim, de agora em diante, serão centenas de novos carros trafegando pelas artérias. Além dos veículos, somam-se as obras infinitas de correção das linhas de abastecimento de água, gás e luz, porque as linhas antigas não darão conta das novas demandas.
Os prédios novos são geralmente feios, sem personalidade. Caixotes sem alma.
Quando chove, o sistema de captação de águas fluviais não funciona adequadamente. As inundações são frequentes e calamitosas.
A cidade se desenvolveu na forma de "mancha de óleo" se espalhando pela periferia. É comum o trabalhador perder quatro horas de seu tempo no transporte público. Ele mora na periferia e trabalha próximo ao centro.
Os parques são raros. A vegetação foi suprimida e trocada pelo asfalto, cimento e vidro. Por isso, faz muito calor em São Paulo. Cria-se o fenômeno da "ilha de calor". Quem está no centro da cidade vive com sete graus a mais de calor do que o morador em área rural.
As crianças não podem mais brincar na rua, porque as ruas de São Paulo são perigosas. Quem chega em casa precisa se certificar que não será atacado por criminosos, antes de abrir o portão.
Em busca de proteção, os moradores transformaram suas casas em bunkers, com muros altos, portões automáticos, concertina na muralha, grades. Onde antes havia um jardim, agora é uma garagem fechada, hermética.
Finalmente, as concessionárias de energia insistem em manter suas linhas aéreas. Além da poluição visual que significa aquele monte de fios em cima das cabeças das pessoas, basta chover, para cair um galho ou até mesmo a coitada da árvore inteira já desgalhada, para interromper o fornecimento de energia.
Em algum momento no início dos anos 1960, São Paulo tinha bairros planejados, com infraestrutura adequada. O transporte de massa era feito por bondes e ônibus, que tinham até horário de chegada e partida.
Veio a industrialização do ABC, as montadoras de automóveis, o crescimento desordenado, a chegada de milhares de migrantes, saídos da miséria de seus estados, em busca do sonho da vida melhor.
Paulo Bonfim, "o príncipe dos poetas", era um apaixonado pela cidade. Ele escreveu:
"Por epitáfio, escrevam apenas sobre meu silêncio, minha primeira e eterna confissão: Eu te amo São Paulo".