terça-feira, 17 de outubro de 2023

A árdua missão de uma mulher presidente no futebol

 

Leila Pereira conquistou 12 títulos para o Palmeiras

"NÃO É POSSÍVEL! Atitude de Leila causa fúria na torcida do Palmeiras. Já passou da hora dessa mulher sair do Verdão. Merecemos um presidente a altura para comandar nosso Clube!"

Esta é apenas uma postagem apanhada ao sabor do vento em uma rede social. A fúria de uma torcida organizada contra a presidente Leila Pereira parece ter dia e hora para ter começado. Surgiu quando a presidente decidiu deixar de dar dinheiro para esta organizada, que faz desfiles de Carnaval. Desde então, as publicações nas redes sociais foram subindo de tom até estas últimas que pedem a saída dela da Presidência. Assim mesmo, na base do golpismo, uma vez que o mandato da presidente Leila encerra-se no próximo ano, com direito à reeleição. "Saia agora! Estamos mandando!", eles dizem, com outras palavras.

A justificativa da presidente para deixar de subsidiar a organizada foi óbvia e traz uma informação que todo torcedor de futebol conhece: "As organizadas são o câncer do futebol". Teve promotor que prometeu acabar com as organizadas e fracassou. Outras ações semelhantes foram utilizadas (juizado do torcedor para punir os responsáveis por violência no campo e extracampo), além da rendição completa aos arruaceiros que é a decisão de fazer os grandes jogos, os clássicos, com apenas uma torcida do mandante.

Desde 2015, quando a Crefisa passou a patrocinar o Palmeiras, a presidente Leila Pereira (eleita em 2022) fez uma coleção invejável de títulos: Paulista de 2020, 2022 e 2023; Copa do Brasil de 2015 e 2020; Brasileiro de 2016, 2018 e 2022; Libertadores de 2020 e 2021; Recopa Sul-Americana de 2022 e Supercopa do Brasil de 2023. São 12 títulos. Todos importantes, significativos e históricos.

Mesmo assim causa estranhamento que a organizada, em questão, promova campanha para destituir a presidente. Não contentes em pedir diariamente a saída da presidente, grupos têm atacado as lojas da empresa patrocinadora, de forma criminosa e, até então, impunemente.

Em ângulo maior, a direita fez o mesmo ao tirar a presidente Dilma de seu cargo, por culpa de um artifício burocrático, que depois constatou-se não ter lesado o erário público. São golpistas. Tanto bolsonaristas e organizados têm o mesmo DNA.

Acostumado a frequentar campos de futebol desde a longínqua década de 1960, presenciei momentos de extrema violência. Certa vez, em um jogo contra o São Paulo, no velho Parque Antárctica, um torcedor acendeu um rojão e disparou o petardo em nossa direção. Na época, usava cabelo comprido e a bomba estourou a centímetros da minha cabeça. Tufos de cabelo saíam aos montes da minha mão, à medida que passava os dedos para entender o grau da desgraça.

Fora esse momento de enfrentamento, as situações mais surpreendentes partiram dessa organizada, que hoje perdeu o patrocínio e tenta destituir a presidente eleita. Uma vez, durante uma partida, um integrante desta organizada virou-se contra um rapaz que estava ao meu lado e lhe desferiu um murro potente no nariz, que começou a sangrar. Isso porque o rapaz xingou um jogador que o integrante da organizada devia apreciar sobremaneira. Houve outros momentos de muito pânico. Para não ser exaustivo, lembro de estar com meu filho na arquibancada, quando parte da torcida do Palmeiras começou a apupar os integrantes da organizada, sabe-se lá por qual motivo. Os torcedores organizados saíram como, provavelmente os hunos comandados por Átila sairiam em busca de seus inimigos. Eu e meu filho, que devia ter uns 10 anos, vimos aquela multidão enlouquecida vindo em nossa direção e nos abaixamos. Eles saltavam por cima de nós e iam até a torcida, também do Palmeiras, tirar satisfação. Momentos de pânico e desespero.

O Brasil tem mesmo esse problema. Não consegue resolver aquilo que mais incomoda. Vai varrendo para debaixo do tapete. São Paulo tem a sua Cracolândia, com tráfico de drogas a céu aberto. As motos fazem o que querem nas ruas, causando - todos os dias - acidentes graves que provocam congestionamentos quilométricos. O transporte público não funciona e, quando funciona, está sempre lotado e irrespirável. Os ônibus não chegam no horário. Os trens não chegam no horário. O metrô lança pneus lá do alto em cima da cabeça da gente que está passando aqui embaixo. As enchentes têm dia e hora para acontecer. E os desabamentos também, assim como a ocupação irregular das áreas urbanas. É uma bagunça. É nesse lugar que a gente vive e tenta sobreviver, um dia depois do outro.

domingo, 1 de outubro de 2023

Precisamos falar sobre o aborto

 

800 mil mulheres brasileiras praticam aborto a cada ano

.No final de seu mandato à frente do STF (Supremo Tribunal Federal), a ministra Rosa Weber votou a favor da descriminalização do aborto nas primeiras 12 semanas de gestação. O ministro que deveria votar em seguida - Luís Roberto Barroso - fez um pedido de destaque e com isso o julgamento foi suspenso.

A gestante que abortar hoje dentro dessa faixa limite (até 12 semanas de gestação) pega de um a quatro anos de cadeia. O crime é previsto nos artigos 124 e 126 do Código Penal. O artigo 124 diz que se a gestante causar o aborto, incorre em crime. E o artigo 126 refere-se a quem pratica o aborto na gestante.

O Código Penal brasileiro tem 83 anos. É um velho caduco. O Código ficou perdido no tempo. Existe um fato comprovado: 800 mil mulheres brasileiras abortam a cada ano. Desse total, 200 mil mulheres correm em busca do SUS, quando o aborto provocado em condições precárias e insalubres acaba colocando em risco a vida da mulher. Levantamento disponibilizado pela Câmara dos Deputados indica que o aborto está na lista dos maiores causadores de mortes maternas. É a quinta maior causa.

No mundo, o aborto é legalizado em 77 países. Na América Latina, Argentina, Uruguai, Guiana e Guiana Francesa permitem o aborto. No Chile e na Colômbia, abortar não é considerado crime. Em 23 de setembro último, a Suprema Corte do México descriminalizou o aborto. 

No Brasil, a discussão pautada pelo PSOL no STF, ao que parece, está paralisada. Deve mofar nas prateleiras do Supremo por um bom tempo até que um ministro consiga tirar o pó do processo e recolocá-lo em pauta.

Estranha essa aversão do brasileiro em resolver os problemas. Ele prefere deixar a aranha, o escorpião, a cobra cascavel embaixo do tapete. Escondidos. Estão lá. Dentro da casa dele. Ele sabe disso, mas faz de conta que não há aranha, nem escorpião, nem cobra cascavel dentro de casa. Continua assistindo as séries em streaming da Netflix que hoje devem superar as novelas, antigo interesse dos brasileiros diante da TV. 

O brasileiro age como se não houvesse o problema e o problema está bem diante do nariz dele. Uma em cada sete mulheres já fez aborto no Brasil. Geralmente, isso ocorre antes da mulher completar 19 anos.

Outro fator a ser considerado é que o aborto é legal para a mulher que tem dinheiro e ilegal para a mulher pobre. A mulher que tem dinheiro marca consulta em uma clínica, com médicos experientes e infraestrutura de hospital cinco estrelas. O aborto é feito. Ela não corre qualquer risco e vai para casa no mesmo dia, levando medicamentos que deve tomar nos dias seguintes para evitar intercorrências.

A mulher pobre não tem dinheiro para pagar clínica, nem médicos. Recorre a práticas medievais. Há relatos de talos de mamona enfiados na vagina para provocar contração uterina e a morte do feto. Esse aborto sem assistência, sem mediação de uma unidade de saúde, provoca a morte maternal. As mulheres pobres, que não querem ter filhos, ficam com vergonha de alertar os familiares. Depois de dias, com dores fortíssimas, passando mal, a mulher procura ajuda no posto de saúde e nem sempre dá tempo de salvá-la. Enquanto isso, a pauta dorme no STF.

Para se ter uma ideia de como essa discussão é antiga, em 1989, distantes 34 anos atrás, eu editava um caderno no falecido "Diário Popular" e publiquei uma reportagem sobre aborto. Conforme a repórter que produziu a matéria concluiu, na época, o aborto era legal para quem tinha dinheiro e ilegal para as mulheres pobres.

Grupos religiosos e conservadores, assim que a ministra Rosa Weber votou a favor da descriminalização do aborto, antes mesmo que a tinta da caneta dela no papel secasse, começaram a povoar as redes sociais, com mensagens sensacionalistas, tentando conquistar corações e mentes.

Um cidadão me enviou uma postagem que mostrava animais silvestres, proibidos de serem mortos. E questionava por que os humanos preferiam salvar animais silvestres e, em contrapartida, matar bebês? A arte era ilustrada com setas verdes sobre onças, cobras e outros bichos, dizendo que esses eram protegidos pela lei; enquanto que as criancinhas (e a seta assinalava um X vermelho sobre a foto de um bebê) podiam ser mortas a qualquer momento.

Essa manipulação asquerosa da opinião pública busca atrair pessoas ainda sem opinião formada sobre o tema. De fato, como é possível que os seres humanos preservem  animais silvestres e matem bebês? Não faz sentido.

Na prática, a gente sabe que onças, cobras, jacarés, passarinhos, cutias, entre tantos animais da fauna brasileira, continuam sendo exterminados diariamente. Queima-se a floresta. Queima-se implacavelmente. A destruição ambiental no Brasil não tem limites e as leis são pouco eficazes na sua proteção. Como seres sem cérebro e omissos, enchemos nossas barrigas de cerveja e petiscos, de camiseta e bermuda, com parte da bunda aparecendo na hora de se levantar da poltrona para pegar mais cerveja na geladeira, enquanto o noticiário informa, em linguagem sígnica, que  "Brasil destrói 128 campos de futebol de floresta por hora". Glub-glub-glub. E toma cerveja... Por isso, essa imagem da onça, da cobra, do jacaré protegidos é uma bobagem. Uma estupidez produzida por uma mente infantil. 

Já o aborto clandestino continuará produzindo vítimas. Mulheres pobres, principalmente, vão morrer, em razão de abortos perpetrados por curiosos inexperientes, em condições vis. E a gente continua fingindo que nada há embaixo do tapete. 

      



     

    


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