domingo, 17 de setembro de 2023

Telejornal brasileiro tem vocação de carpideira midiática

 


Nas praias de Portugal, a gente recebe aulas de moral e cívica. Não são aquelas aulas que tínhamos antigamente, ministradas por um professor de terno e gravata pretos, saído dos confins da ditadura. A aula de moral e cívica é lecionada por aquela moça que tira a parte de cima do biquíni e faz topless na areia, sem ser incomodada, sem que moleques lhe façam mira com areia molhada. Outros professores são aquelas pessoas, ao redor, que observam o rapaz deixar o celular e a carteira com documentos sobre a camisa, enquanto entra no mar para se refrescar do calor. Na volta, o celular e os documentos estarão no mesmo lugar. Intocáveis. No fim da tarde, os frequentadores da praia nos passam outra lição de moral e cívica: nem um único objeto estranho é largado na areia. Eles vão embora e não se veem copos, garrafas, restos de comida, embalagens, bitucas. Nada. A praia está limpa, como se uma equipe de limpeza tivesse passado por lá e trabalhado criteriosamente.

De volta ao Labirinto do Fauno, made in brazil, o céu é azul. Os termômetros ficam na casa dos 30 graus. É um clima quente, convidativo, típico de país tropical. A natureza é exuberante. Está tudo certo ao redor, mas nada funciona como deveria. 

O telejornal matutino brasileiro se parece com aquelas carpideiras, do passado, que ganhavam a vida chorando defuntos estranhos. O telejornal chora e faz chorar. A mulher precisa ser operada, mas a operação de emergência foi cancelada. A mãe teria que pegar o remédio da criança doente, só que o posto de saúde não tem o medicamento. Ladrões roubaram os fios e, por isso, os trens e o metrô ficaram paralisados, suspendendo a vida de milhares de trabalhadores. O jovem casal está passeando na rua, voltando da escola, quando surge um criminoso de motocicleta e rouba os pertences de ambos. Antes de ir embora, dá um tiro certeiro na cabeça do rapaz, matando-o instantaneamente. O carro não para no bloqueio policial e o agente desfere um tiro de fuzil que vai matar a criança, sentada na cadeirinha do banco de trás. 

São Paulo é um caso particular de cidade disfuncional. Nada parece dar certo. O telejornal, apresentado por um quarentão de óculos e terno sóbrio, chora e faz chorar. Repórteres aparecem na tela para confirmar que nada está nos conformes. Eles relatam histórias tristes: carros que vivem parados em congestionamentos crônicos; metrô, trens e ônibus que vão oferecer uma surpresa ao passageiro e ela será sempre desagradável. A equipe do telejornal está agora em um hospital público municipal. O repórter ouve a senhora que rodou 34 quilômetros de uma ponta a outra da cidade em busca de atendimento. São queixas múltiplas, diversas: de omissão, de descaso, de falência estrutural. A gente sabe qual será o resumo: o atendimento que a cidade oferece a seus munícipes é lastimável, precário, acintoso. O telejornal continua seu choro diário: agora, são os furtos de celular. Ao que tudo indica, para ser morador de São Paulo o principal requisito é ter o celular roubado. A cena mostra um esmolambado se esgueirando na rua até se aproximar de um carro, "estacionado" no congestionamento. Ele explode o vidro, usando o cotovelo, embrulhado em um casaco, pega o celular do motorista e sai em disparada. 

A cereja do bolo é a Cracolândia. A Cracolândia lembra aqueles filmes de mortos-vivos. Os tipos se arrastam nas ruas, carregando restos de roupa, pedaços de cobertores, zanzando a deus dará em busca da droga. São milhares de dependentes. Homens e mulheres com aparência de quem está no limite de suas forças. Em agonia. No extertor. Por onde passam, deixam um rastro de destruição. É lixo que não acaba mais. O poder público, que talvez devesse mudar de nome em São Paulo e ser chamado de "falta de poder público", manda a Guarda Metropolitana empurrar os mortos-vivos para lá e para cá. Os lixeiros recolhem a sujeira e lavam as ruas. Naquele dia mesmo à tarde, vai estar tudo sujo e emporcalhado novamente. A polícia, em seu trabalho de enxugar gelo, prende um traficante, recolhe x pacotes de crack, de maconha, de ecstasy, de sabe-se lá o que mais. Mas a droga continua chegando na Cracolândia. Um ex-prefeito tinha dado hora e dia para pôr fim à Cracolândia. Foi o mesmo que, quando eleito governador, prometeu tornar o rio Pinheiros tão limpo que a gente poderia até nadar em suas águas translúcidas. A Cracolândia continua no lugar de sempre e o Pinheiros, um rio de imundície fedorenta. 

É duro você viver toda a sua vida em meio a tanta desordem, desorganização, sujeira, vendo sua cidade ser vandalizada pela contínua e destruidora especulação imobiliária, que promove a gentrificação urbana, mexendo no Plano Diretor da cidade, como se fosse a casa da mãe Joana. Aumenta o tamanho do prédio. Destrói a vila. Enfia prédio de 40, 50, 100 andares naquela rua de 10 metros de largura até atolar o rabo da pobre Piratininga. 

Amanhã, pontualmente, pode ligar a TV. O apresentador de terno sóbrio e óculos, que impõem respeitabilidade, vai fazer o de sempre: chorar e fazer chorar, como a carpideira midiática da era da inteligência artificial.  

        

   

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