Em 1963, quando a estátua de Borba Gato, em Santo Amaro, foi inaugurada, eu tinha 10 anos. Havia ganhado um bicicleta Caloi alviverde e fui conhecer o monumento em um dia de semana. Morava na Vila Clementino e o passeio até a estátua era uma aventura e tanto (ao todo, 20 quilômetros ida e volta). Meu companheiro de viagem foi meu amigo e vizinho, Sérgio Masirone, que tinha uma bicicleta vermelha, também aro 26, da marca Göreck. O trânsito na avenida Santo Amaro já era um pesadelo naquela época: muitos carros, caminhões e milhares de ônibus. O tráfego pesado passava a centímetros de nossas pernas. Mesmo assim, com muita valentia e obstinação, conseguimos chegar no monumento. Era um bandeirante gigante. Um negócio enorme. Vimos aquilo e voltamos para casa. Quando cheguei, minha mãe achava que eu tinha morrido, porque eram quase oito horas da noite e a formatura da minha irmã, que se formava no secretariado, estava em andamento, em um teatro chique e badalado, longe dali. Tinha me esquecido completamente da festa. Não apanhei. O alívio da minha mãe de me ver vivo foi maior que o desejo de me dar umas pauladas nas costelas.
Então, tenho uma relação de conquista com a estátua. A minha bicicleta era nova, verde e branca e eu a estreei em grande estilo. Enfrentei o trânsito, as buzinadas, a violência dos motoristas e cheguei lá. Aos 10 anos, fiz a minha primeira e grande viagem. Depois, muitas outras se seguiriam, mas aquela foi especial.
Então, aparece um idiota junto com outros idiotas e decidem destruir o monumento. Um deles, capturado, disse que queria abrir debate. É estranho esse argumento. O problema de mobilidade em São Paulo é aflitivo: ônibus chegam com atraso e lotados; o metrô quebra diariamente; os trens da CPTM volta e meia viram manchete negativa dos telejornais matutinos. Assim, para abrir o debate sobre a mobilidade em São Paulo, eu e um grupelho de bem-intencionados vamos atear fogo na Câmara Municipal e na Assembleia Legislativa. Faz sentido esse tipo de raciocínio? No meu entendimento é apenas violência.
Você não gosta do Borba Gato? Acha a estátua feia? Acredita que os bandeirantes eram um bando de assassinos sanguinários, que matavam e escravizavam índios e negros quando não tinham o que fazer? Uma sugestão: ao invés de juntar 500 reais em uma "vaquinha" e incendiar a estátua com pneus velhos, inicie um debate na cidade. Proponha um plebiscito. Sugira que, ao lado da estátua, tenha um memorial que fale sobre a violência dos bandeirantes. Reúna obras que mostrem este outro lado das bandeiras. Divulgue autores. Leve o debate à Câmara Municipal, aos cursos de história, aos centros acadêmicos, à mídia.
A violência é detestável. Não dá para engolir. Com dor no coração, nós vimos recentemente os militantes do Isis (Exército Islâmico) destruir o templo de Baal-Shamin, construído dois anos antes de Cristo; a grande colunata de Apameia; o templo de Baalshamin, que tinha 1.900 anos de história; o mosteiro de Mar Elian (de 1.500 anos). Vimos os militantes do Isis enforcar e pendurar o corpo do arqueólogo Khaled al-Asaad, em 2015, porque ele era um pesquisador, fazendo o seu trabalho. Ao todo, 13 sítios arqueológicos foram destruídos, por existirem antes do nascimento de Maomé. No entender dos fanáticos religiosos terroristas, o que havia antes de Maomé não poderia continuar existindo. Tinha de ser explodido. Virar poeira.
Os terríveis campos de extermínio nazistas deveriam continuar em pé? Hoje, turistas passeiam por Auschwitz-Birkenau, Treblinka, Sachsenhausen. Durante a 2ª Guerra, milhares de pessoas foram sacrificadas nesses campos. Esses campos odiosos precisam ser mesmo preservados?
Se tudo que envolveu escravidão e opressão tiver de ser destruído, vamos começar pelas pirâmides egípcias. Como o trabalho de erguer e levar as pedras para o alto do monumento era feito por escravos, o certo seria passar um trator, dinamitar Quéops, Quéfren e Miquerinos. Explodir a esfinge, aquele belo leão com cabeça de faraó. Onde já se viu manter esses monumentos feitos por escravos? Demolição neles!
Sem falar nas pirâmides incas e astecas da América espanhola (foto). Segundo pesquisadores, eram feitos sacrifícios nessas construções. Cabeças rolavam escadaria abaixo. Crianças, adultos, inimigos eram sacrificados em cerimônias religiosas, realizadas nessas construções.
A Acrópole de Atenas e o Coliseu foram construídos com mão de obra escrava. Assim, sempre seguindo o mesmo raciocínio, teriam de ser removidos da história.
De acordo com a lógica de destruir o estátuas, monumentos, ruínas milenares, a história atual ficaria melhor, mais palatável, sem a triste lembrança do passado. É um raciocínio infantil, de criança que tem medo do escuro. Papai vai acender o abajurzinho e afastar o bicho-papão. A verdade é que o nazismo existiu. Campos de concentração foram erguidos. Judeus, comunistas, homossexuais, ciganos, opositores políticos eram para lá enviados e iriam morrer de fome, de exaustão, de doenças diversas ou seriam executados em câmaras da morte. Foi um trabalho burocrático, executado por criminosos de guerra. Ninguém tem o direito de esquecer o que aconteceu em Auschwitz e outros campos de extermínio. Por esse motivo, esses locais nefastos vão existir até a eternidade. Para o mundo inteiro lembrar que homens capazes de escapar da atmosfera terrestre e visitar mundos distantes também são capazes de gerenciar o mal. A presença física desses campos é histórica. Tem de ser preservada.
No caso da estátua paulistana, não faltou o ângulo ideológico. Proteger a estátua do bandeirante seria uma posição "de direita". Botar fogo no Borba Gato seria "de esquerda". Em que momento esse pessoal de esquerda ficou ao lado do vandalismo? Da violência? Da destruição do patrimônio? Eu achava que esses atributos eram da direita, que torturava e matava opositores, entrava em teatros e batia em atores, explodia bombas em eventos do 1º de maio, como no Riocentro.
Não sou parente de bandeirante. Meus avós saíram da Itália e chegaram aqui no final do século 19 e início do século 20. Vieram trabalhar em fazendas e na indústria gráfica paulistana. Ou seja, não sou "paulista quatrocentão", como se dizia antigamente, para caracterizar aquelas famílias descendentes dos barões do café escravagistas. Mesmo assim, como pesquisador participante, fiz dois estudos de comunidades (Brumadinho - Piedade do Paraopeba (MG), e Bofete - SP). Ambos, foram erguidos por bandeiras. É inegável o trabalho dos bandeirantes como desbravadores. O tamanho do Brasil seria o mesmo sem essas expedições militares e de ocupação do território? Evidentemente que não.
Os críticos dizem que as bandeiras eram impiedosas, escravizavam índios e negros; exterminavam populações indígenas. Vamos entender a história. Vamos ler mais. Buscar autores, levantar provas, ouvir novos depoimentos. Mas queimar estátua não é o melhor caminho. É apenas um ato de violência extrema e idiota.
Finalmente, vandalismo é crime (dano ao patrimônio público), previsto no artigo 163 do Código Penal – “Destruir, inutilizar ou deteriorar coisa alheia”. Rende até seis meses de cadeia. Gostaria de ver, sinceramente, esses vândalos "puxando cana", como se diz no boteco aqui da esquina.
Aquela estátua feia e colossal do Borba Gato, idealizada por Júlio Guerra, que a ergueu com pedras, argamassa e gesso, construindo um gigante de 13 metros de altura, é um pedaço do meu passado. Olho para ela com carinho, quero que ela continue onde está, restaurada e limpa.
O problema é que na cidade, onde nasci e vivi a maior parte da minha vida, a lei do vândalo é a única respeitada. Eles têm direito de pichar a minha parede com riscos que não dizem nada a ninguém. Reduzem a pó o valor imobiliário de prédios e residências, pichando-os dia e noite, incansavelmente. Lembro da promessa de um prefeito, recém-eleito que prometeu acabar com esse tipo de vândalo. Chegou até a prender uma meia dúzia, mas pulou fora do cargo. Foi ser governador. O salário devia pagar melhor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário