terça-feira, 11 de agosto de 2020

Cromossomos e identidade de gênero

 


Em maio deste ano, o deputado federal Filipe Barros (PSL-PR) produziu um projeto de lei que determina que a característica cromossômica define o gênero do indivíduo. Dois meses depois, em julho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) reproduziu uma entrevista do então candidato Enéas Carneiro que, ao ser questionado sobre o homossexualismo, mencionou a característica cromossômica como determinante. Se a pessoa tem cromossomos Xx, é mulher. Se tem cromossomos Xy, é homem. Enéas falava ainda em perpetuação da espécie e do "não lugar" do homossexual nesse enquadramento. No mundo de Enéas, só homens e mulheres heterossexuais tinham lugar, obedecendo à ordem cósmica dos cromossomos Xy e Xx. 

Ícone folclórico da extrema-direita raivosa, Enéas - eterno candidato perdedor à Presidência da República, deputado federal recordista de votos, falecido em 2007 - recebeu 13 anos depois de sua morte uma homenagem do deputado que o superou em número de votos. 

Eduardo Bolsonaro, "o filho 03" do presidente Jair Bolsonaro, eleito com 1 milhão e 800 mil votos (300 mil a mais que Enéas), escreveu saudosista: "Que falta faz um Enéas".

Eduardo Bolsonaro não se conformava com um comercial do Dia dos Pais, que tinha Thammy, o filho transexual de Gretchen, como símbolo de pai presente. A publicidade era da empresa de cosméticos Natura. 

Eduardo Bolsonaro batia na tecla dos cromossomos para dizer que Thammy, por mais que deixasse crescer a barba, tirasse os seios cirurgicamente, mesmo que implantasse um pênis e casasse com uma mulher, jamais seria um homem de fato, porque seus cromossomos são Xx. Ou seja, biologicamente, para ele, Thammy é "mulher".

O deputado paranaense Filipe Barros e o deputado federal mais votado por São Paulo se recusam a reconhecer a questão do gênero. Eles misturam gênero com sexo biológico. 

A pobre Judith Butler, que investiu muito de seu tempo acadêmico para explicar que sexo biológico e gênero não são casados, foi atacada ao desembarcar em São Paulo, para uma conferência em novembro de 2017. Xingada de "pedófila", sabe-se lá por que (que eu saiba Butler nunca usou batina), viu 320 mil pessoas assinarem um manifesto pedindo que sua conferência fosse cancelada. 

Tudo porque Butler afirma em suas obras que não se pode confundir sexo biológico com gênero. Eles não se casam. Há mesmo um divórcio pré-matrimonial entre eles. 

Para entender os twitters de Eduardo Bolsonaro, o saudosismo do pensamento rudimentar de um Enéas e mesmo o mais recente absurdo de um deputado criar um projeto de lei cromossômico, é preciso compreender que o Brasil é um país atrasado. Um fim de mundo intelectual. Um lugar sem Prêmios Nobel, com verbas para educação cortadas a todo momento e que teve um ministro do governo Bolsonaro que cometia erros brutais de concordância, crase, ortografia, hifenização e até mesmo troca de palavras.

A questão do sexo biológico e do gênero é tão óbvia, que me sinto até constrangido em ter de abordar o tema. Nasce um indivíduo com os cromossomos Xy. É um menino. Vai ser registrado como tal. Os pais vão comprar roupas masculinas, presenteá-lo com brinquedos masculinos e o pai levá-lo a atividades masculinas (jogo de futebol).

Em dado momento, esse suposto menino vai rejeitar as roupas e as práticas masculinas. Passará a usar roupas femininas e se portar como uma mulher. 

O mesmo fenômeno ocorre com aquele indivíduo que tem cromossomos Xx. É mulher. Vai usar roupas femininas, brincar com bonecas e participará de atividades com a mãe (fazer as unhas no cabeleireiro). No decorrer de seu desenvolvimento, essa suposta menina passará a usar roupas masculinas e se portar como homem.

Como isso é possível se esses dois indivíduos têm os cromossomos que biologicamente indicam que um deles seria homem e o outro mulher? Como podem adquirir práticas antípodas?

Ocorre que o sexo biológico não está relacionado com a identidade de gênero. O fato de alguém ter um pênis não significa que essa mesma pessoa se reconhecerá em roupas e práticas masculinas. Quando se olha no espelho, não vê homem, mas uma mulher. Idem para a situação inversa.

Por que isso ocorre? Ainda não se sabe. O que já foi provado é que não é um comportamento doentio, que necessite ser "curado", como asseveram certos pastores evangélicos. 

Em 1905, Freud, em seu famoso "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", já tirava de sobre as costas dos homossexuais o peso de comportamento doentio, desviante, que merecesse punição e repúdio social. Para Freud, o homossexual era apenas alguém que tinha como objeto de desejo o mesmo sexo. Freud ia além e dizia que as pessoas trazem uma predisposição bissexual, em razão de, na infância, terem descoberto suas pulsões, manipulando o próprio sexo.

É interessante quando ouço a menção ao que seja "natural". "Não é normal ser travesti", dizem, "isso foge à Natureza". "Não é normal ser homossexual, porque se toda a humanidade tivesse relações com o mesmo sexo, a espécie seria extinta."

Um amigo dileto, quando comentava sobre o que é "natural" ou não, brincava, dizendo que nunca tinha visto um tubarão usar óculos, nem passarinho cantar ópera. Esse amigo referia-se à natureza própria do ser humano, que difere da natureza dos outros animais. O homo sapiens cria seu próprio ambiente, inventa um mundo artificial, povoado de computadores, automóveis, ares-condicionados, armas, munições e milhões de utensílios.

A sexualidade - nesse mundo criado pelo homo sapiens - vai além da fronteira biológica cromossômica. Homens se relacionam com outros homens, mulheres com outras mulheres. Homens viram mulheres. E mulheres viram homens. Homens se relacionam com mulheres e com homens. Mulheres fazem sexo com homens e também com mulheres. O sexo não tem mais relação com a perpetuação da espécie, mas é pleno de novos caminhos a serem percorridos.  

Em 1999, dei a minha modesta contribuição para a terminologia da sexualidade ao lançar o livro Nicola - um romance transgênero. Na virada do século, o termo transgênero ainda não havia chegado por aqui. Causava estranhamento. As pessoas perguntavam: "O que é isso mesmo?". Foi editado pelo selo GLS da Editora Summus e causava pânico em livreiros. Lembro de uma conversa que tive com um proprietário de uma livraria em um movimentado aeroporto brasileiro e o sujeito disse que nunca teria livro semelhante em suas prateleiras.

Basta dar uma olhada em murais, estátuas e relatos da antiguidade para entender que já naquela época os cromossomos Xx e Xy eram enganadores.

Agora, querer explicar tudo isso para quem tem saudades de um Enéas é o fim da picada. 

E, para encerrar o papo, a Natura, feliz da vida, comemora a subida de 10 pontos em suas ações na Bolsa. Vitória de Thammy, o "pai presente".

(A ilustração desta postagem foi tirada do artigo "Identidade de gênero: a pluralidade que é construída no singular!", de Leonardo Ponte). 

Tem um manual interessante e muito didático a esse respeito, intitulado "Orientações sobre identidade de gênero - conceitos e temas", de autoria de Jaqueline Gomes de Jesus. E, é claro, textos de Judith Butler sobre o tema, como o fundamental "Problemas de gênero".

Chromosomes and gender identity

In May of this year, federal deputy Filipe Barros (PSL-PR) drafted a bill stating that chromosomal characteristics define an individual's gender. Two months later, in July, federal deputy Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) shared an interview with the late presidential candidate Enéas Carneiro, who, when questioned about homosexuality, mentioned chromosomal characteristics as determinative. If a person has XX chromosomes, they are a woman. If they have XY chromosomes, they are a man. Enéas also spoke about the perpetuation of the species and the "non-place" of homosexuals within this framework. In Enéas's world, only heterosexual men and women had a place, adhering to the cosmic order of XY and XX chromosomes.

A folkloric icon of the far-right, Enéas—a perennial losing candidate for the Brazilian presidency, a federal deputy with a record number of votes, who passed away in 2007—received a tribute 13 years after his death from the deputy who surpassed him in votes. Eduardo Bolsonaro, "the third son" of President Jair Bolsonaro, elected with 1.8 million votes (300,000 more than Enéas), nostalgically wrote: "How we miss an Enéas."

Eduardo Bolsonaro was not pleased with a Father's Day commercial featuring Thammy, the transgender son of Gretchen, as a symbol of a present father. The advertisement was for the cosmetics company Natura. Eduardo Bolsonaro hammered on the chromosomal argument to claim that Thammy, no matter how much he grew a beard, surgically removed his breasts, or even implanted a penis and married a woman, would never truly be a man because his chromosomes are XX. In other words, biologically, for him, Thammy is a "woman."

The Paraná deputy Filipe Barros and the most voted federal deputy from São Paulo refuse to acknowledge the issue of gender. They conflate gender with biological sex. The poor Judith Butler, who invested much of her academic career explaining that biological sex and gender are not the same, was attacked upon arriving in São Paulo for a conference in November 2017. Called a "pedophile" for reasons unknown (as far as I know, Butler never wore a priest's robe), she saw 320,000 people sign a petition demanding her conference be canceled.

All because Butler asserts in her work that biological sex and gender should not be confused. They are not married. There is even a pre-matrimonial divorce between them. To understand Eduardo Bolsonaro's tweets, the nostalgia for the rudimentary thinking of an Enéas, and even the recent absurdity of a deputy creating a chromosomal bill, one must understand that Brazil is a backward country. An intellectual backwater. A place without Nobel Prizes, with education budgets constantly cut, and which had a minister in the Bolsonaro government who made glaring errors in grammar, spelling, hyphenation, and even word substitution.

The issue of biological sex and gender is so obvious that I feel embarrassed even having to address it. An individual is born with XY chromosomes. It's a boy. He will be registered as such. The parents will buy him male clothes, give him male toys, and the father will take him to male activities (like soccer games). At some point, this supposed boy will reject male clothes and practices. He will start wearing female clothes and behaving like a woman.

The same phenomenon occurs with an individual who has XX chromosomes. It's a girl. She will wear female clothes, play with dolls, and participate in activities with her mother (like getting her nails done at the salon). As she develops, this supposed girl will start wearing male clothes and behaving like a man.

How is this possible if these two individuals have chromosomes that biologically indicate one would be a man and the other a woman? How can they adopt opposite practices? It turns out that biological sex is not related to gender identity. The fact that someone has a penis does not mean that person will identify with male clothes and practices. When they look in the mirror, they don't see a man, but a woman. The same goes for the opposite situation.

Why does this happen? It's still unknown. What has been proven is that it is not a pathological behavior that needs to be "cured," as certain evangelical pastors assert. In 1905, Freud, in his famous "Three Essays on the Theory of Sexuality," already lifted from the shoulders of homosexuals the burden of pathological, deviant behavior deserving of punishment and social repudiation. For Freud, a homosexual was simply someone whose object of desire was the same sex. Freud went further, saying that people have a bisexual predisposition because, in childhood, they discover their drives by manipulating their own sex.

It's interesting when I hear mentions of what is "natural." "It's not normal to be a transvestite," they say, "it goes against Nature." "It's not normal to be homosexual because if all humanity had relations with the same sex, the species would go extinct." A dear friend, when commenting on what is "natural" or not, joked that he had never seen a shark wear glasses or a bird sing opera. This friend was referring to the unique nature of humans, which differs from that of other animals. Homo sapiens create their own environment, inventing an artificial world filled with computers, cars, air conditioners, weapons, ammunition, and millions of utensils.

Sexuality—in this world created by Homo sapiens—goes beyond the chromosomal biological boundary. Men have relationships with other men, women with other women. Men become women. And women become men. Men have relationships with women and with men. Women have sex with men and also with women. Sex no longer has a relationship with the perpetuation of the species but is full of new paths to be explored.

In 1999, I made my modest contribution to the terminology of sexuality by publishing the book Nicola - A Transgender Novel. At the turn of the century, the term transgender had not yet arrived here. It caused confusion. People asked, "What is that?" It was published by the GLS imprint of Summus Editora and caused panic among booksellers. I remember a conversation with the owner of a bookstore in a busy Brazilian airport, and the man said he would never have such a book on his shelves.

Just take a look at murals, statues, and ancient accounts to understand that even back then, XX and XY chromosomes were misleading. Now, trying to explain all this to someone who misses an Enéas is the last straw.

And to wrap things up, Natura, happy as can be, celebrates a 10-point rise in its stock. A victory for Thammy, the "present father."

(The illustration for this post was taken from the article "Gender Identity: The Plurality Built in the Singular!" by Leonardo Ponte.) There's an interesting and very didactic manual on this subject, titled Guidelines on Gender Identity - Concepts and Themes, by Jaqueline Gomes de Jesus. And, of course, Judith Butler's texts on the subject, such as the fundamental Gender Trouble.

                        

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Humorista Leo Lins é censurado pela Justiça Federal

  Leonardo de Lima Borges Lins, o humorista condenado O início é óbvio: Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 5º, que trata...