sábado, 4 de abril de 2020

Série sobre Freud mistura desinformação com oportunismo


Pobre Sigmund Freud (1856-1939)! Se você cair na bobagem de assistir à série sobre ele, em cartaz na Netflix, produzida por três moleques (Marvin Kren, Benjamin Hessler e Stefan Brunner) vai achar que o criador da psicanálise era um drogado, pilantra, que transava com suas pacientes, e trabalhava meio período ajudando a polícia capturar serial-killers.

É inacreditável que as Freud Foundations, tanto as sediadas na Áustria como nos EUA, permitissem que essa série sensacionalista e oportunista passasse batida. Por muito menos, nos anos 1980, a Fundação Kurt Weill proibiu a exibição de uma peça encenada pelo grupo brasileiro Ornitorrinco, em Nova York. Os absurdos da montagem tupiniquim eram tantos e tão grotescos que a Fundação Weill perdeu a paciência com Cacá Rosset e companhia.

A série Freud é tão mal-intencionada que mistura acontecimentos reais com roteiro de sujas intenções. Freud, vivido por Georg Friedrich, que fisicamente é a cara de Freud quando moço (as semelhanças se encerram aí), está iniciando a carreira em 1886, na Viena, sob o domínio do Império Austro-Húngaro. Ele mora em um apartamento mal-assombrado, erguido sobre as cinzas do Teatro Ring, que pegou fogo em 1881 e deixou 384 mortos. 

É verdade. Freud morou mesmo nesse local, logo depois de se formar e fazer um estágio na França, onde descobriu uma nova forma de tratar os doentes mentais com o médico Jean-Martin Charcot (1825-1893). Charcot hipnotizava seus pacientes, para fazer aflorar traumas que poderiam ter levado o doente a enlouquecer. Só que o inquilino Freud nunca se queixou de fenômenos extrassensoriais como pianos que tocam sozinhos ou gritos apavorantes de almas penadas. 

O Freud da série não paga aluguel. Foge do senhorio. É um caloteiro, que usa cocaína no ritmo do drogadito da Cracolândia e que passa as noites em botecos, com o amigo, médico e escritor Arthur Schnitzler (1862-1931). 

Schnitzler e Freud, na realidade, nunca foram amigos de copo, nem dividiram mesas de boteco. Em uma de suas correspondências, datada de 1922, Freud confessava que havia resistido ser apresentado ao escritor, porque sentia que Schnitzler seria "seu duplo". Ou seja, ambos (Freud e Schnitzler) investigavam o abismo do inconsciente. Schnitzler em suas obras (De olhos bem fechados, virou até filme sob a batuta de Stanley Kubrick) e Freud deixando seus pacientes à vontade no divã e ouvindo seus sonhos e desejos mais profundos.

Em uma dessas noitadas malucas, drogado e bêbado, Freud conhece a médium Fleur Salomé. Aí surge outra imbricação picareta. Na vida de Freud, tinha mesmo uma Salomé. Ela se chamava Lou Andreas-Salomé (1861-1937). Mulher atraente, admirava Freud e era autora e psicanalista. Nenhuma das vários biografias de Freud (Ernest Jones e Peter Gay, só para citar dois biógrafos acima de qualquer suspeita) observa qualquer intimidade entre Freud e Andreas-Salomé. Os dois trocavam cartas. Eram afetuosos, mas nada de ir para cama.

Na série, Salomé (interpretada por Ella Rumpf) é uma médium, que vive com a família de nobres húngaros, os Szápary. Os Szápary existiram de fato, mas a série mostra a matriarca da família com discutíveis superpoderes. É só ela encostar a mão no sujeito, para dominá-lo. Imediatamente, o coitado entra em um estado hipnótico capaz de fazer qualquer estupidez. Inclusive, saltar do andar mais alto do prédio.

Freud e Salomé consomem cocaína. Transam adoidado, mesmo Salomé sendo paciente de Freud e estar sob seus cuidados médicos. Onde fica a ética de médico-paciente? Afundou-se no esgoto de ideias dos criadores dessa produção meia boca.

Surge em cena o mentor de Freud, o médico Josef Breuer que também começou a investigar as profundezas do inconsciente, mas pisou no freio, diante do desafio que a repressão sexual representava na época. Freud foi além e criou a psicanálise, desvinculando-se, mais tarde, de Breuer. Na produção, um Breuer idoso e sábio mostra-se preocupado com um Freud inseguro, desacreditado, viciado em drogas, humilhado pelos colegas da clínica psiquiátrica de Theodor Meynert. No início de sua carreira médica, Freud fez mesmo um estágio - não remunerado - na clínica de Meynert, apresentado pelos roteiristas como um vilão presunçoso e arrogante.

A série tem muito sangue. Rituais sanguinolentos incompreensíveis. Uma mistura doidivanas de psicanálise, com mediunidade, feitiçaria, rituais de matança e sabe-se lá mais que outra barbaridade. 

Se alguém quiser conhecer a importância de Freud, suas descobertas fundamentais (Complexo de Édipo, interpretação dos sonhos, divisão do inconsciente, atos falhos como forma de manifestação do reprimido, entre tantas outras), por favor, não assista esta série. 

Em relação à cocaína, não embarque no sensacionalismo. No final do século 19, novas drogas para atenuar a dor estavam sendo pesquisadas. Uma delas era a cocaína. Freud chegou a usar a droga experimentalmente. Numa carta endereçada àquela que seria sua futura esposa, a jovem Martha, afirmou que a droga a estimularia favoravelmente. O mais importante biógrafo de Freud - Ernest Jones - relatou este e outros episódios, em que mostrava o criador da psicanálise como um pesquisador sério, em busca de aliviar o sofrimento. Muito longe do psicodélico amalucado da série.

Freud é talvez um dos últimos expoentes do iluminismo. Coube a Copérnico e Galileu mostrarem que a Terra era apenas um pequeno planeta de um sistema solar, orbitando em torno do Sol. A Terra deixava de ser plana e centro do universo, para ser rebaixada a planetinha sem qualquer importância sideral. Veio Charles Darwin e jogou mais água na fervura religiosa. Os homo sapiens eram singulares primos dos macacos, com os quais dividiam 99 por cento de DNA. Freud surgiu em cena no crepúsculo do século 19 para dizer que os humanos tinham um inconsciente sobre o qual não tinham qualquer domínio. Pedra de cal no homem todo poderoso, suposto "filho de Deus".

Freud escreveu livros fundamentais: A interpretação dos sonhos, Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, O caso Schereber, O ego e o id, O mal-estar na civilização, só para citar alguns. Em Três ensaios...muita bobagem que ainda é falada sobre sexo - principalmente sobre homossexualismo - desceria pelo ralo se a pessoa tivesse lido essa obra, lançada em 1905. 
  
Quer aproveitar melhor a quarentena? Por que não descobrir o universo freudiano? A maior parte (talvez a totalidade) de suas obras está disponível, gratuitamente, on line. Deixe um pouco a Netflix e besteiras como essa série Freud de lado e mergulhe fundo no divã de Freud. Vai ser uma experiência reveladora. 









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