domingo, 29 de março de 2020

A solidão criativa

Eleven AM, Edward Hopper, 1926

Edward Hopper (1882-1967) retratou a solidão na América. Como poucos. Seus quadros mostram pessoas isoladas em quartos, varandas, lanchonetes. As telas têm cores fortes. As pessoas retratadas parecem olhar para o espaço vazio. Seus quadros sugerem uma solidão dolorida, insuportável. 

Gregório Gruber (1951- ) faz o mesmo com São Paulo. Suas telas reivindicam uma São Paulo vazia, destituída de gente e movimento. Uma cidade quase romântica, com ruas molhadas de garoa, luzes pouco agressivas. Bem diferente da São Paulo real, suja esburacada, repleta de sem-tetos, usuários de drogas e milhões de pessoas circulando sem parar, dia e noite.


Gregório Gruber, óleo sobre tela 600x407

Esses dois artistas plásticos têm a solidão como tema. Algo que a maioria das pessoas parece ver como ameaça latente. Em meio à quarentena que as autoridades sanitárias nos impuseram, por causa do coronavírus, as redes sociais (sempre as redes sociais!) indicam mal-estar na solidão. 

Os vídeos e mensagens que se recebe nos grupos (familiares e profissionais) mostram gente desesperada. Eles xingam. Falam palavrões. Alguns gritam. Exibem situações constrangedoras. O nível dessas publicações é grotesco. Muitos sugerem que o relacionamento com a mulher chegou ao limite. Um deles mostra uma mulher amarrada, enquanto o marido se diverte jogando games.

Grande parte apela aos palavrões, algo que parece ter se matizado não só entre aqueles de baixa instrução como entre os diplomados. Fala-se muito palavrão no Brasil. Virou norma linguística. Usar o palavrão é uma forma agressiva de se manifestar. Agride-se o ouvinte.

É um momento difícil esse que estamos vivendo. Faltam lideranças políticas. Jornalistas são ameaçados. Postagens contra as instituições (câmaras alta e baixa, assembleias) tornam-se rotineiras. O tratamento é de choque: "canalhas", são assim chamados os ministros do STF e políticos em geral. Todos eles. Nem Noé e suas filhas escapam.

O presidente age como um doido varrido, mandando as pessoas saírem do isolamento, enquanto as autoridades do resto do mundo insistem para se manter a quarentena, como única forma viável de evitar a contaminação e, consequentemente, supurar as nossas frágeis e maltratadas estruturas de saúde pública. 

Assim, precisamos ficar em casa. Recolhidos dentro de nós mesmos. Para não enlouquecer - porque ninguém parece estar preparado para viver consigo mesmo - vamos buscar abrigo na TV, em videogames, nas rádios, nos computadores, na música. As séries e filmes da Netflix (TV por streaming, novidade recente) transformam-se em boias salva-vidas.

Alguns raros recorrem aos livros. Sobre essa possibilidade, Laura Bacellar, que comanda o blog Escreva seu livro, produziu um texto sugestivo (https://www.escrevaseulivro.com.br/escritores-brasileiros-desconhecidos/), saindo em defesa do autor desconhecido. Quem é o autor desconhecido? É aquele coitado que, depois de passar por tantas decepções, conseguiu um dia ter seu livro finalmente publicado. Ela pede para os leitores deixarem os clássicos de lado - pelo menos por um tempo - e se arriscarem pela trilha dos autores desconhecidos. 

Veja o que Laura Bacellar diz: "Escolha um/a escritor/a pelo assunto da obra, pela capa, pelo som do sobrenome e embarque numa aventura de exploração. Deixe para lá esse esnobismo chato de só mencionar autores de sucesso e pontue suas conversas com  desconhecidos peculiares, esquisitos, diferentes".

O movimento em defesa do escritor brasileiro desconhecido tem pouca chance de dar certo. Os leitores estão se liquefazendo nas mídias digitais. Nenhum texto com mais de 120 toques deverá sobreviver no futuro. Quem costuma escrever no Facebook, se ultrapassa o limite de meia dúzia de linhas, ganha o carimbo de "textão". Algo a ser evitado. Perigo imediato à vista. 

Assim, em meio à quarentena, sem as 4.215 páginas do clássico de Marcel Proust; sem as milhares de páginas não lidas dos autores brasileiros desconhecidos, alguns encontram conforto na cozinha. Fazem doces e salgados. Relembram as receitas da vovó, engordando seus parceiros como porcos para o abate.

Ernest Hemingway (1899-1961) disse, certa vez, que "escrever bem é levar uma vida solitária; um escritor realiza sua obra na solidão". Como muitos não são escritores (essa espécie a caminho da extinção), resta saber como conviver com a solidão. 

Protagonistas célebres de obras religiosas encontraram seu destino na solidão. Os católicos acreditam que Jesus se afastou dos homens e das cidades e se enveredou pelo deserto. Na solidão, ele foi tentado pelo diabo, ficou 40 dias e quarenta noites sem comer, nem beber, para, enfim, entender qual era sua missão na terra e iniciar sua pregação. 

Para as religiões orientais, a solidão não é inimiga, mas parceira para a redescoberta espiritual. Ao meditar solitariamente, dizem os budistas, você encontra a paz e a serenidade que a agitação e a balbúrdia da cidade destroem.

Religiões à parte, essa solidão que nos foi imposta por um vírus devastador poderia ser bem aproveitada. Temos muito tempo pela frente e nenhum compromisso lá fora. Nas casas onde haja excesso de crianças e parentes, amontoados às vezes em único cômodo, a solidão talvez seja até o paraíso a ser alcançado. 

Em outra realidade, o Brasil tem 30 milhões de habitantes, vivendo solitariamente. Deve ser difícil para esse pessoal conviver com a própria solidão, sem poder ir à padaria, passear com o cachorro, visitar um museu ou uma livraria. Para os que gostam de ler, o computador é parceiro e, por exemplo, abre caminho para as 4.215 páginas de Em busca do tempo perdidodisponíveis gratuitamente em PDF, se algum solitário ousar se aventurar 

Pessoalmente, estou me dando bem com a quarentena. Tenho cozinhado bastante (atividade que me dá um prazer imenso). Tenho escrito (nada muito sério, prometo, só para passar o tempo). Vejo filmes e séries interessantes. Estou finalizando O legado de Humboldt, de Saul Bellow. Estou em paz comigo mesmo e com a chuva que agora bate inclemente sobre as telhas, espalhando um som agradável naquele martelar característico. A chuva satura o ar de umidade e cheiro de terra molhada. Ideal para a gente tirar uma soneca, que é o que eu vou fazer agora.

Fique em paz. Aproveite a solidão.    




      

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