quinta-feira, 24 de outubro de 2019
O que La Bombonera tem a ver com a "América Latrina"
A expressão "América Latrina", salvo engano, foi cunhada ou popularizada pelo jornalista Franz Paul Heilborn, mais conhecido como Paulo Francis. O termo remete à cloaca do mundo. Sugere países endividados, pobres, corruptos, dominados por uma elite soberba e mesquinha.
"América Latrina" vai além. Indica países de insuperável baixo-estima, dominados culturalmente. Nada de criativo parece sair dali. O Iphone nunca poderia ter sido inventado nesses países de língua espanhola e portuguesa. Não há um Vale do Silício inteligente. Desde que o Prêmio Nobel foi criado em 1901, 15 latino-americanos conquistaram a láurea. Seis deles, em Literatura. Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha dominam a premiação.
Nesse submundo de países, submetidos à miséria por elites gananciosas e governantes corruptos, uma luz reverberava na escuridão. Era o futebol. Ao vencer três Copas do Mundo em 1958, 1962 e 1970, o Brasil virou o "país do futebol". Havia miseráveis. Os muito pobres. Mas pelo menos o mundo se rendia ao Brasil, diante de Pelé, Garrincha, Rivellino, Gerson, Jairzinho e outros craques. Era a nossa "volta por cima".
A saúde não funcionava. O tranporte era uma droga. A educação não ensinava. Sem moradia, milhões viviam como ratos em edificações insalubres. Matava-se adoidado. Ninguém tinha segurança. Mas, pelo menos, a gente era bom em futebol.
O brasileiro não conseguia criar um Iphone. Só que a criatividade, com que ele manejava a bola dos gramados do mundo, era invejada e aplaudida por todos. Até pelos derrotados. Em 1958, depois de vencer a Suécia, em sua casa, por incríveis 5 a 2, com direito a gol de chapéu de Pelé, a Seleção deu a volta olímpica, sendo festejada de pé por suecos encantados com o brilho e a sabedoria estrelar do "escrete de ouro".
Veio o título de 1994, sem graça, com predomínio do medo e da retranca. Veio o pentacampeonato, graças à genialidade dos três "Rs", Ronaldo Fenômeno, Rivaldo e Ronaldinho. E aí o mundo acabou para a gente em 2014. Uma frase virou fantasmagórica. Dizia: "Gol da Alemanha". Sete vezes repetida."Gol da Alemanha". Um pesadelo, uma humilhação mundial. Deixamos de ser o "país do futebol" e nos transformamos em saco de pancada. "Gol da Alemanha".
A performance nos gramados escondeu o lado sujo do futebol brasileiro. Gangues de criminosos criaram torcidas organizadas e passaram a espancar torcedores de times adversários. Houve emboscadas e assassinatos. Times tradicionais passaram a dever impostos, não pagar fornecedores e mergulharam no caminho da semifalência. Pobre, Portuguesa de Desportos...
O pior estava lá em cima. No âmbito da cartolagem. Teve ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol preso e condenado por corrupção. Não aqui no Brasil. José Maria Marin, filhote dileto da Ditadura Militar, foi limpar chão de cadeia nos Estados Unidos. No Brasil, a gente costumava acalentar os corruptos. Eles faziam parte do tecido social. Eram como o pó sobre os móveis. Apesar da Lava Jato, muitos analistas duvidam que a cartolagem corrupta possa ser enjaulada.
A nossa rendição aconteceu, em São Paulo, quando a Polícia Militar obrigou que os enfrentamentos ocorram com torcida única. Corintianos e palmeirenses, por absoluta falta de cidadania, estão proibidos de assistir a jogos de futebol lado a lado. Se deixarmos que eles fiquem juntos, vão se matar. Por isso, quando os dois times se enfrentam, só pode ter a participação de uma única torcida. Isso vale para outros times e outras torcidas. É a submissão total. Estamos de joelhos diante dos violentos. Eles nos venceram.
O futebol ganhou novas, belas e modernas arenas. O torcedor deixou de ser tão maltratado. No passado, lembro de banheiros entupidos, quebrados, com fezes espalhadas pelo chão, paredes e até no teto. O chão imundo, inundado de urina. As filas para comprar ingresso, com gente se socando. Esse cenário de horror parece ter ficado para trás.
Ainda há muito para ser feito na "América Latrina". A seminfinal entre Boca Junior e River Plate, felizmente, desta vez, não teve ocorrência policial, com ônibus que transportava jogadores, sendo emboscado pelos bandidos rivais. O jogo da semifinal, disputado nesta terça-feira, 22 de outubro, no estádio La Bombonera, foi vencido pelo Boca por 1 a 0, placar insuficiente para avançar na competição. Foi um jogo feio, amarrado, sem lances de brilhantismo. No placar agregado, juntando as duas partidas da semifinal, o River venceu por 2 a 1, e vai à final contra o Flamengo.
Por um mecanismo que desconheço seu funcionamento, comentaristas analisaram a participação da torcida do Boca não poupando adjetivos. "Maravilhosa". "Sensacional". "Emocionante". "Incrível". "Contagiante". Para um marciano, o que se viu ali foi um festival de má educação. O campo foi alvo de papel picado, transformando-se em uma gigantesca lata de lixo. O jogo deveria começar às 21h30. Só que não. Demorou 15 minutos para uns pobres coitados, armados de sopradores, conseguissem empurrar aquela papelada para fora das quatro linhas. Mesmo assim, o gramado não ficou inteiramente limpo. A bola branca se confundia com os milhares de papéis brancos, esvoaçando sobre as quatro linhas. O público não sabia direito o que era bola e o que era papel.
Desculpe, essa manifestação da torcida não é "maravilhosa", não é "sensacional", nem "emocionante". Chama-se atraso de vida. Chama-se de volta ao passado. Ninguém pode gostar daquela sujeira de papel, que atrapalha o jogo e confunde o telespectador. Por que a Conmebol não proíbe? Por que não interdita para sempre esse estádio velho e alquebrado do Boca Juniors? É um lugar sujo, mal-cheiroso, cheio de falhas estruturais, com cimento se desfazendo.
Quando eu jogava bola no campo de várzea do Rubens Salles, tinha mais espaço para bater o escanteio do que esse lugar estreito e superado, chamado La Bombonera. O jogador recua dois passos, toma distância e leva um tapa na orelha, antes de bater o escanteio. Dizem que em espanhol "bombonera" significa caixa de bombom. Só se for chocolate embolorado.
Até quando a "América Latrina" vai ser assim? Esse lugar meio selvagem, pouco inteligente, subdesenvolvido. Será tão difícil assim chegarmos no limite mínimo da civilidade e nos transformarmos em América dos latinos, com muito orgulho, sim senhor?
E ontem, quarta-feira, 23 de outubro, assisti ao Flamengo, destruindo o futebol superado de Renato Gaúcho e companhia gremista. "A maior derrota do Grêmio na história da Libertadores". Cinco a zero que poderiam ser multiplicados por dois. O time do Flamengo, dirigido por um técnico português, redescobria o futebol espetáculo. Não tinha papel picado no gramado. Parecia o Brasil de Telê Santana, de 1982, antes do desastre do Sarriá. Mas esse é um assunto para uma outra postagem.
Um abraço.
terça-feira, 22 de outubro de 2019
Não se chora sobre óleo derramado
É louvável o esforço dos nordestinos em limpar suas praias. É lamentável o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reclamar que o Green Peace não está limpando as praias. Ministro, é sua obrigação cuidar do meio ambiente brasileiro. É para isso que o senhor está no cargo. Arregace as mangas e vá trabalhar.
Essa omissão, essa lerdeza do governo federal em se assenhorar do problema parece inerente à atual administração. É um governo lento, sonolento, que parece só acordar quando se faz presente nas redes sociais.
É louvável o esforço dos nordestinos em limpar suas praias, só que não vai adiantar. O desastre ambiental de gigantescas proporções vai afetar a vida marinha e a beleza das praias nordestinas por décadas. Daqui a dez, vinte anos, o turista que visitar uma dessas praias, atingidas pelo óleo, ainda vai sair com a sola do pé suja de piche. São pequenas manchas redondas, meio pretas, meio amareladas. Você demora para limpar. Passa sabão, passa detergente, esfrega, esfrega e a sujeira resiste.
O desespero que se via no rosto da garota sueca ambientalista, de 16 anos, Greta Thunberg na ONU (Organização das Nações Unidas) resume o problema: a falta de responsabilidade e omissão dos governos em encontrar alternativas energéticas serão fatais.
Os humanos ainda usam combustível fóssil. Eles sabem que a queima de petróleo afeta o meio ambiente. Provoca aumento da temperatura global e causa desastre climáticos. Não é conversa mole. Milhares de cientistas provaram que o aumento das temperaturas é real e terá consequências assustadoras. Mesmo assim os humanos continuam usando combustível fóssil. Não é só falta de inteligência, é algo mais profundo e danoso. É a pulsão mórbida de destruição, de que fala Freud.
O Brasil poderia ser um país melhor. Sem carros sujos, sem tanta queimada, sem tanta falta de respeito ambiental. O brasileiro está pouco se lixando que a Amazônia queime. O brasileiro é pobre. É miserável. São 104 milhões que vivem com 413 reais mensais. Esse pessoal está preocupado em comer. Se alguém pagar 50 reais para incendiar a floresta, ele vai pôr fogo no mundo, se preciso for.
Não adianta chorar sobre óleo derramado. Vamos continuar sofrendo com desastres ambientais por dezenas de anos. Essas tragédias irão se repetir. O enredo será sempre igual.
Acompanhe:
- Um navio cargueiro naufraga (ou uma plataforma de retirada de petróleo afunda) e derrama óleo no mar;
- O óleo se espalha e atinge as praias, provocando pânico em pescadores, hoteleiros, ambientalistas e moradores. Eles acionam a mídia;
- Os repórteres desembarcam nos locais atingidos. Farão matérias mostrando animais marinhos mortos; vão entravistar locais para saber de que forma suas vidas serão afetadas; vão tentar conversar com o responsável que irá emitir uma "nota de esclarecimento" ou às vezes nem isso; vão atrás de porta-vozes do governo;
- O governo (federal, estadual, municipal) vai fazer de conta que está ajudando, mas sem muito esforço. A classe política só se esforça mesmo quando precisa preservar suas patentes e privilégios.
O Brasil poderia ser um país melhor, mais limpo, menos tóxico. Só que não. Metade de seus habitantes é miserável. Penso na nossa querida deputada Joice Hasselmann, que ganhou os holofotes da mídia por estar se digladiando nas redes sociais com os filhos do presidente (01, 02 e 03), o que será que ela está fazendo nesse momento para reduzir a desigualdade social no Brasil?
É importante insistir: são 104 milhões de pessoas vivendo com 413 reais por mês. Ontem, no programa Roda Viva, Joice batia os cílios postiços cintilantes, exibia o decote generoso, mas não parecia se preocupar com a desgraça maior brasileira, que é a disparidade de rendimentos.
A mídia também dá pouca atenção para o problema. A gente olha os jornais e os temas em foco parecem tirar nossa atenção para o dano maior, a nossa maior ferida. Fala-se na crise do PSL. Na música, há um conflito entre funkeiros, que eu nunca ouvi falar. Os dados da economia são sorrateiros: dólar acima de 4 reais, cai a arrecadação.
E aí você pega o carro, circula pela cidade e a miséria fica estampada em cada esquina, em cada olhar, na desgraça urbana que são as favelas, feridas de tijolos avermelhados na carne das metrópoles brasileiras.
A gente continua como se nada estivesse acontecendo. Lê o "jornal" virtual e fica sabendo que Wanessa brigou com a mulher de Luciano. E, na periferia, a fábrica não escurece mais o dia, como dizia a música. As fábricas estão fechando. A indústria reduziu a rotação, num movimento de devagar, quase parando.
A gente vai para a praia e sai com os pés sujos de óleo, como se fosse algo inevitável, como se não houvesse solução para as desgraças ambientais. "Bom, não depende da gente. Isso é o governo que vai resolver", você diria. Depende, sim. Só que a gente está muito preocupado com as redes sociais para ir à luta.
Hoje, em Nova York, a gigante Esso (Exxon, para os americanos) está sentada no banco dos réus, acusada de ocultar dados, para seus acionistas, sobre as consequências das mudanças climáticas, em decorrência da queima de óleo combustível de origem fóssil. É um começo.
Aqui no Brasil, ficamos à espera da próxima desgraça. E ela virá, esteja certo disso.
quarta-feira, 16 de outubro de 2019
O Facebook me faz uma pessoa pior
O Facebook me transforma. Acordo bem disposto, feliz da vida, o sol brilha, os pássaros cantam e aí abro o Facebook. Como na novela de Robert Louis Stevenson, Dr. Jeckyll vai se transformar em Mr. Hyde. A boa disposição vai embora. Minhas mãos começam a se encurvar. As unhas se transformam em garras. Nascem pelos em abundância no meu rosto e no corpo. Nas costas, se eleva uma corcunda. Começo a babar. Virei um monstro.
A postagem mostra um grupo de pessoas, todas suadas, debaixo de sol forte no que parece ser uma casa de periferia. Eles vestem bermudas, camisetas e chinelos. O suor brilha e escorre pelas barrigas. Nem leio o tópico. Já vou sentenciando: "Bando de gordo!". Assim, sem mais nem menos. Sem ser politicamente correto: "Bando de gordo!".
A "linha do tempo", como se chama aquela prática de ir descendo pelas postagens, mostra uma velhinha. Alguém deu um presente para ela. Algo do tipo. Penso na hora: "Velhota antipática". E o pior é que ela parece mesmo antipática. Não é a Dona Benta que vai fazer bolinho coberto com açúcar e canela para a gente. Tem jeito daquela velhinha que, quando aparece o filho pra visitar, ela vai logo dizendo: "Escovou os dentes? Põe uma blusa que está fazendo frio. Essa camisa não combina com você".
Aí vem o pessoal da política. Deus do céu, esses caras são incansáveis. Tem a turma do Bolsonaro que ainda está querendo prender o Lula. Gente, o Lula está preso. Helôôô! O PT perdeu a eleição e vocês ganharam. Comecem a trabalhar. Tirem as pessoas da miséria. Metade do Brasil ganha menos de 500 reais por mês. Não quero mais saber de palanque. Quero que vocês façam qualquer coisa que mude essa desgraceira que o País está mergulhado. As indústrias quebrando. O setor de serviços afundado na crise. Sem dinheiro para educação, sem verba para pesquisa, corte nisso, corte naquilo. E os Alfa continuam comendo lagosta e camarão, andando de carro oficial, com direito a sirene para fugir do trânsito. Os 90 por cento restantes pertencem à casta Épsilon. São os desgraçados de que fala Huxley. Você acha que Huxley exagerava? Se esqueceu que ele previu o nascimento do bebê de proveta em 1931, 47 anos antes do fato real? Exagerava nada, menino.
E tem o pessoal do outro lado, que é contra o Bolsonaro e seus asseclas... É todo dia postando uma bobagem que a Damares falou. O que vocês querem dessa coitada que vê Jesus em goiabeira? Ela vai falar bobagem mesmo. E o ministro da Educação, nota zero em Sociologia, que comete um erro de português por minuto. É o maior índice de erros de português da história, desde Cabral. Tem a história do Queiroz. Onde está o Queiroz? "Vai perguntar para a sua mãe", respondeu o presidente, educadamente. Todo dia alguém pergunta onde está o Queiroz. A Veja já esclareceu: "O Queiroz mora no Morumbi e se trata no Einstein". Só precisa alguém levar a reportagem até a Polícia Federal. O Queiroz tem de explicar direitinho essa história da "rachadinha", que envolve o Flávio "01". Sem falar do Moro, o Batman, que a Vaza Jato transformou em Coringa.
E aquele pessoal que quer causar inveja? Outro dia uma amiga postou: "Estou aqui na Padaria Bella Paulista. Uma delícia!". O monstro que habita em mim, quando entro no Facebook, escreveu, de forma ríspida e malcriada: "Estive aí no domingo. Eles me serviram um croissant, cortado ao meio. Frio e molenga. Na França, o chef da Bella Paulista seria decapitado, por causa desse crime contra o croissant".
Os algoritmos do Facebook, por algum defeito genético, têm certeza que sou um frequentador assíduo de hípicas e que não posso passar um dia sem montar em um cavalinho. Gente, tenho medo de cavalo. Nunca andei a cavalo na vida. Nem sei como se sobe naquilo, que eles chamam de sela. Mesmo assim, todos os dias, não falha um singular dia, o Facebook me manda imagens e vídeos de cavalos. São cavalos felizes, que saltam e pulam e se alimentam regularmente.
Um amigo, que nunca assistiu a uma luta de MMA, nem nunca irá assistir, recebe também diariamente notícias sobre lutadores de MMA. Há algo de podre no reino dos algoritmos, diria Shakespeare, se, quando vivia, houvesse redes sociais.
E as pessoas felizes? Elas estão sempre sorrindo, contentes. O meu monstro olha para elas e grita: "Está rindo do que, babaca? Vai andar de metrô e de trem da CPTM do Doria pra ver o que é bom pra tosse".
Sem falar dos cachorrinhos, dos gatinhos, dos peixinhos, todos eles engraçados, meigos, despertando meu monstro que geme entredentes: "Vou mandar vocês pra China". Esse país asiático, como se sabe, volta e meia, promove festivais de consumo de carne de gato e cachorro.
Então, quando saio da rede social, apago o Facebook, começo a sentir uma metamorfose humanitária. Os pelos que cresceram em profusão desaparecem. As garras viram unhas normais. A corcunda de Quasimodo fica reduzida ao bico de papagaio normal que tenho nas costas. A baba seca. Saio na rua e sorrio para as crianças. Levo meu cachorro passear. Se me pedem informação, trato com carinho e atenção. Aproveito o sol, a chuva, a garoa, o vento. Aceno para os vizinhos. No armazém, brinco com as atendentes.
Então, ao retornar para casa, ao abrir novamente o Facebook, nada poderá evitar o ressurgimento do monstro.
Por falar nisso, por que você não desliga essa m...e vai ler um livro, filhote de Netflix.
quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Como o Var veio para atrapalhar o futebol
No dia 27 de junho de 1971, eu estava no Morumbi, assistindo à decisão do Campeonato Paulista, entre São Paulo e Palmeiras. O São Paulo precisava só do empate e abriu o placar no início da partida. Havia 100 mil pessoas no estádio. Naquela época, as torcidas rivais ficavam juntas. No segundo tempo, o atacante do Palmeiras Leivinha fez um gol espetacular de cabeça. A torcida comemorou e o árbitro Armando Marques anulou. Disse que o gol havia sido com a mão. Era estranho, porque para dar a cabeçada na bola, Leivinha jogou os braços para trás. Eu vi. Estava lá. Bem em frente. É claro que havia maracutaia. Para mim, torcedor de futebol, aquilo era uma vergonha. A anulação do gol legítimo, por um árbitro claramente mal-intencionado, me fez gostar menos de futebol. Gostaria de ter quebrado o sigilo bancário de Armando Marques para identificar quanto aquele gol anulado teria custado. O Palmeiras, de Ademir da Guia, Dudu, César Maluco, ficou abalado em campo e o São Paulo sagrou-se campeão paulista naquele ano. Se houvesse o Var (video assistant referee - árbitro assistente de vídeo), o gol seria validado e o Palmeiras provavelmente teria virado o jogo.
Em 1954, a final do Mundial, entre Alemanha Ocidental e Hungria foi disputada em Berna (Suíça). Os alemães venciam por 3 a 2 o então invencível time húngaro, invicto há 32 partidas. No fim do jogo, "no apagar das luzes", Puskás faz o gol do empate. Anulado. Diante de 60 mil torcedores, principalmente alemães, o juiz viu um impedimento inexistente e deu o título mundial aos alemães, premiando o futebol feio e retrancado. Se houvesse Var, a história seria outra.
Em 1962, o Brasil passou no sufoco pela Espanha no Mundial, disputado no Chile. Ganhou por 2 a 1, graças à arbitragem. Nilton Santos derrubou Collar dentro da área e andou uns dois passos para a frente, mostrando que a falta havia sido feita fora da área. Não tinha. Os espanhóis batem a falta e o pobre Puskás (naturalizado espanhol) faz gol de bicicleta. Um gol que levaria o prêmio Puskás de tão bonito que foi. O juiz Bustamante anulou. Hoje, Bustamante seria preso e condenado por corrupção passiva, ativa e absoluta. Naquela época, não havia Var. Se houvesse, o Brasil daria adeus ao bicampeonato mundial.
Em 1966, na final entre Inglaterra e Alemanha Ocidental, diante de 98 mil pessoas, em Wembley, as duas equipes terminam o tempo normal empatadas em 2 a 2. Vem a prorrogação e Hurst vira, acerta um chute forte, a bola se choca no travessão e bate na linha. O juiz suíço Dienst fica em dúvida. Consulta o bandeirinha russo Bakhramov, que dá o gol. A Inglaterra faria mais um na prorrogação e conquistaria o Mundial de 1966. Se houvesse Var, o gol inglês de Hurst teria sido anulado.
O futebol era assim. Cheio de injustiças, de juízes malandros, de cartolas corruptores, de debates sem fim. O futebol era polêmico. Discutia-se muito. Antes, durante e depois das partidas. As regras eram simples. A gente conhecia todas de cor, igual à tabuada. O juiz ladrão era parte indissociável do futebol. Antes de qualquer coisa, quando aquele cidadão de preto pisava no gramado, a gente se erguia na arquibancada e gritava: "Juiz ladrão!".
Os comentaristas reclamavam muito. Aquele gol que não foi gol, porque a bola não entrou; aquele impedimento que não aconteceu porque o zagueiro dava condição; o pênalti inexistente, que só o juiz viu...Tantos erros, tantas injustiças, tanto choro e rilhar de dentes à toa. Bastava o futebol imitar o tênis, imitar o vôlei. Incorporar à tecnologia ao esporte.
E no sétimo dia surgiu o Var. O juiz de vídeo. Além do árbitro, dos dois bandeirinhas, apareceram mais uma meia dúzia de sujeitos, que ficam olhando imagens de TV, tentando ver o que o juiz não viu. E eles veem...Minha nossa, como essa gente do Var trabalha. Acontece o gol. A torcida grita, comemora, mas o árbitro coloca a mão no ouvido. Para tudo. O gol foi impedido? Alguém resvalou a mão na bola? O árbitro corre em direção à lateral do campo. Olha a sua TV particular e volta para o campo, fazendo aquele sinal odioso, detestável, da televisãozinha imaginária. O gol foi anulado. A torcida rival comemora. O Var é um desmancha prazeres.
No melhor da partida, o Var interrompe os lances. São dois, três, até cinco minutos ou mais de paralisação. Quando o jogo recomeça, a gente nem sabe mais quanto estava, nem quem ia melhor no jogo. É um coitus interruputus. O Var deixou o futebol lento, sem graça, burocrático. Veio para fazer justiça, é verdade, mas acabou com a alegria, com a polêmica.
O pior são as novas regras, que a maior parte dos torcedores desconhece. De um dia para outro, aparece uma regra nova e nem sempre inteligente. Domingo passado, por exemplo. Palmeiras e Internacional empatam em 1 a 1. Aos 40 minutos do segundo tempo, William Bigode, do Palmeiras, disputa a bola com um defensor e o balão resvala em seu braço, O Verdão faz o segundo gol e vira o jogo. Virava o jogo...Entra o Var em cena e o gol é anulado. Tudo por causa da nova regra: se a bola bater no braço do atacante, mesmo que ele não tenha a intenção, mesmo que seu braço esteja grudado ao corpo, mesmo assim, vai ser falta. Caso a mesma bola bata no braço do zagueiro, não vai ser falta, se ele não estiver com os braços distantes do corpo. Ou seja, a nova regra ferra o atacante e tira da reta o rabo do defensor. É uma regra discricionária, a favor da defesa. Os times poderiam começar a escolher atacantes sem braços.
Para fechar essa página, é importante dizer que o Var conseguiu até o impossível. Fazer a gente sentir saudades do erro de arbitragem.
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