terça-feira, 4 de novembro de 2025

Violência no Brasil e lentidão governamental

 


É um desafio: criminosos ocuparam as favelas do Rio de Janeiro e criaram um país à parte. Não é mais o Brasil. É um país dominado por bandidos que cobram taxas para fornecimento de gás, água, combustível, internet e outros serviços. A população que mora nessas favelas é refém do crime e apoia qualquer ação que aniquile fisicamente seus opressores, mostram pesquisas recentes.

Estive a trabalho na Favela do Jacarezinho. Para chegar ao local do evento, que cobriria, não pude chamar um uber ou táxi qualquer. Era preciso encontrar um motorista de aplicativo da própria favela, senão não conseguiria entrar. Subi no carro, dirigido por uma moça. Ela conduziu até um dos pontos da entrada da favela, onde havia uma carcaça carbonizada de carro. Atrás dessa barricada improvisada, havia dois homens armados de fuzis. A motorista do aplicativo fez um sinal específico e os "guardas" arrastaram a carcaça e pudemos passar. Felizmente, não precisei mostrar passaporte, embora estivesse ingressando em "outro país", com outros "governantes" e "leis" ultrajantes.

Se há um "país" à parte, dentro do Brasil, não estava na hora de haver uma ação governamental, que envolvesse federação, estado, município para reocupar esse enclave criminoso, libertar os reféns e reinstaurar a ordem? Por que se demora tanto para criar um plano simples de reocupação do espaço ocupado? Todas as favelas cariocas têm entradas pontuais e muitas têm saídas na mata, por onde os bandidos procurados costumam fugir. É tão difícil assim imaginar um plano que possa bloquear os acessos e sufocar a criminalidade? Não algo momentâneo, com prazo curto de duração, mas permanente, incansável e edificante.

Além dessa ação de resposta ao crime, os governos deveriam investir maciçamente na eliminação da favela, substituindo-a por moradias decentes, com ruas planejadas, áreas verdes, infraestrutura completa, pondo um ponto final na degradação e na miséria urbana desses territórios. Gasta-se tanto no Brasil com o que não interessa, por que não "queimar" dinheiro no bom sentido numa operação plástica urbana de resultados palpáveis? 

Nos últimos dias, cansei de ouvir especialistas, dizendo que operações policiais nos morros cariocas não levam a nada, porque os verdadeiros criminosos não estão nos morros, mas na Faria Lima. Pode até ser verdade que as lideranças do crime não precisem necessariamente morar na favela. Operações recentes de inteligência demonstraram como o crime organizado tem utilizado fundos de investimento da Faria Lima para lavar dinheiro. Ocorre que existe um fato concreto: as favelas cariocas foram ocupadas pela criminalidade e seus moradores continuam sendo reféns dos bandidos. Além de acertar o crime organizado no "bolso", revelando as operações de lavagem de dinheiro (combustíveis, fundos de investimento), é urgente também reocupar o território ocupado e libertar as pessoas. 

É inadmissível alguém ser condenado à morte por trafegar pela avenida Brasil e ser levado pelo aplicativo a uma entrada de favela, onde um "guarda" - desse "país inimigo" dentro do Brasil - não vai hesitar em erguer o fuzil e disparar contra uma família, um casal, um viajante. Quanto tempo mais o Brasil vai conviver com esse "país" à parte, espécie de câncer em suas entranhas?            

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Jardim de Napoli

 

O verde e branco palmeirense sempre predominou na decoração

Meu avô era zelador de um prédio que ficava na rua Senador Feijó, a dois passos da lendária praça da Sé, marco zero de São Paulo, de onde se marcam todas as distâncias. Nos anos 60, a gente podia sair à noite, dar uma volta pelo centro paulistano, sem voltar pra casa com história de violência para contar. Era assim: saíamos meu pai, minha mãe, minha irmã, minha tia e eu no sábado à noite (às vezes, muito raramente, o avô e a avó acompanhavam - morávamos todos juntos em um apartamento imenso). O prédio era comercial e estava completamente vazio àquele horário. Descíamos pelo elevador, que não era automático. Era necessário guiar o maquinário, mexendo na alavanca e freando quando chegava no andar desejado. Eu tinha aprendido com um ascensorista a mexer naquele comando desafiante e conseguia parar direitinho, sem deixar degrau. A porta do prédio tinha uns três metros de altura e era de ferro. Para abri-la, além de vários movimentos certeiros com a chave, era necessário ter força bruta para conseguir movê-la. Lá fora, o ar era habitualmente gelado e volta e meia caía uma garoa. Saíamos da rua Senador Feijó, entrávamos à esquerda na rua Cristóvão Colombo, cruzávamos a Riachuelo e descíamos pelo viaduto Brigadeiro Luís Antônio. Como a rua Cristóvão Colombo devia ter apenas uns 50 metros, alguém da família lembrava que dar o nome do grande navegador genovês para uma rua minúscula como aquela era um desaforo. Em cima do viaduto, olhávamos lá para baixo, onde havia uma rua pouco movimentada. Meu pai alertava: "Eles vão construir uma avenida que vai se chamar 23 de Maio, para ligar o centro ao aeroporto de Congonhas". 

Quando terminava o viaduto Brigadeiro Luís Antônio, bem à direita a gente via a rua Asdrúbal do Nascimento, que me enchia de apreensão, porque lá era a sede do Juizado de Menores (pré-Febem, muito pré-Fundação Casa). "Se você continuar sendo malcriado, vai parar ali", me ameaçavam. Virávamos à direita na rua Maria Paula e prosseguíamos por uns 200 metros até um sobrado, pintado de verde. Na porta do número 194, a gente lia: "Jardim de Napoli". Ao lado, havia um edifício sombrio, marrom escuro. Tinha a placa "Federação Espírita do Estado de São Paulo". Minha mãe me dizia: "Nesse lugar, os espíritos descem e conversam com as pessoas", o que me dava uma medo desgraçado.

A primeira vez que entrei na cantina Jardim de Napoli foi também a primeira vez que entrei em um restaurante, tipicamente italiano. As toalhas eram quadriculadas nas cores verde e branco. Havia garrafas de vinho chianti, envoltas por uma armação de palha, penduradas sobre nossas cabeças. De vez em quando, um garçom pegava uma delas e levava para uma mesa. O cheiro da comida era devastador. Dava vontade de chorar. Na época, o famoso polpetone ainda não tinha sido inventado. Na entrada, junto da caixa registradora, ficava um rapaz de uns vinte e poucos anos. Meu pai ia até ele e o cumprimentava. Ele parecia genuinamente feliz de ver a gente. "É o Toninho Buonerba", meu pai dizia, "é filho do senhor Francesco". Aparecia um garçom calvo, atencioso, que se chamava "seu Mário". Ele conhecia meu pai e os dois trocavam palavras em italiano. O Jardim de Napoli, então, era um salão, com algumas mesas, quase sempre ocupadas por famílias e casais de gente modesta, como nós. 

Antes do prato principal, comíamos o que eles chamavam de "antipasti". Era um festival de sabores, envolvendo berinjelas e cogumelos em conserva, azeitonas frescas, envoltas em muito azeite. Pegávamos o pão italiano, cortado em fatias, e devorávamos o tal do "antipasti". Em seguida, chegavam as pizzas: de mozarela, de aliche, calabresa, portuguesa. De sobremesa, era a vez dos cannolis de chocolate e creme. Minha mãe comia sempre pastiera di grano, uma torta de ricota com grãos de trigo.

Encerrado o jantar, fazíamos o caminho de volta, sem qualquer ocorrência. Ninguém vinha falar com a gente, pedir dinheiro, tentar roubar o celular, mesmo porque faltavam uns quarenta anos para inventarem o celular. Estávamos satisfeitos, felizes da vida com aquele jantar delicioso. E era gostoso andar à noite por São Paulo, com a família reunida.

Depois de adulto, voltei a frequentar o Jardim de Napoli. Com a deterioração da zona central, o restaurante tinha feito as malas e se mudado para a rua Martinico Prado, 463. Certa noite, eu, a esposa e a nossa filha, com uns três anos de idade, fomos lá para jantar. Na entrada, repeti o gesto do meu pai e dei um abraço apertado em Toninho Buonerba. Cumprimentei também efusivamente os garçons, que nos conheciam. Olhando com atenção ao redor, reparei que o público havia mudado. Era um pessoal mais endinheirado, que minha mãe chamava de "gente com o nariz em pé". Era época de festas juninas e nossa filha estava vestida a caráter, de caipirinha, com um vestido floral verde e branco, que combinava com as toalhas, cabelo com trancinhas, linda, uma graça. Nossa filha era a menina mais comportada do planeta Terra. Falava sem cometer erros de português e nunca tinha nos deixado embaraçados em público. Nessa noite, no entanto, a menina estava com o diabo no corpo. Ela chorava, gritava, abria um berreiro, enfiava a mão no copo cheio de refrigerante, atirava os talheres no chão. E a gente morrendo de vergonha, diante dos olhares dos ricos.

Voltamos, é claro, várias vezes ao Jardim de Napoli e a qualidade da comida nunca se perdeu. Era impressionante: a mesma berinjela que eu comia na infância tinha o mesmo sabor, décadas depois. A pizza igualmente sempre com a mesma textura e sabor. E havia uma novidade no cardápio: a partir dos anos 70, Toninho Buonerba tinha inventado o polpetone, um bolo de carne, recheado de mozarela e envolto em molho de tomates. O prato tornou o Jardim de Napoli conhecido nos meios gastronômicos e fez a clientela crescer cada vez mais. Com o tempo, se a gente chegasse depois das 19 horas, em um sábado à noite, era obrigado a suportar longa fila de espera.

Toninho Buonerba morreu em 2018 e deixou um grande legado para a culinária de origem italiana em São Paulo. Deixei de frequentar o Jardim de Napoli, quando mudei para a Granja Viana, no final dos anos 90. Ficou muito longe, fora de mão. 

Alguns restaurantes têm essa particularidade: parece que fazem parte da nossa família. Era bom entrar no Jardim de Napoli e encontrar sempre os mesmos garçons e o Toninho Buonerba, no mesmo lugar, ali na entrada, na recepção. Bons restaurantes trazem boas lembranças, não só gastronômicas, mas de afeto, de fazer a gente se sentir bem-vindo. Por isso, o Jardim de Napoli terá sempre um lugar garantido nas minhas melhores e mais prazerosas lembranças. Pena que saiu da rua Maria Paula, pena que a gente não possa mais caminhar à noite por São Paulo, saindo da rua Senador Feijó e caminhando a pé até a Maria Paula. Perdemos o direito e ir e vir e não sabemos se um dia iremos recuperá-lo.   
        

segunda-feira, 15 de setembro de 2025

"La vita in diretta" é um "Aqui agora" italiano

 

108, via Spartaco, Roma: prédio é refém da "senhora dos pombos"

Telejornais policialescos são deliciosos. A gente assiste com um sorriso nos lábios, dando graças a deus por aquela desgraça não ter acontecido com a gente. Há também aqueles que gostam de ver para se colocar na pele dos vilões, dos transgressores. É ser bandido de forma vicária. Ou justiceiro, a salvo, na sala de casa. "Se fosse eu, também tinha metido uma 'azeitona' naquele vagabundo".

Na Itália, transmitido diariamente pela Rai (Radio Audizioni Italiane) - a TV e a Rádio públicos - chama atenção o programa "La vita in diretta". Apresentado por um barbudo, cara de malvado, chamado Alberto Matano, o telejornal traz uma enxurrada de crimes que não acabam mais. É a mãe que matou e cortou em pedaços o filho violento ("ucciso e fatto in pezzi"), ajudada - veja você - pela nora. É a esposa napolitana que deu 50 facadas no marido. Sem esquecer do senegalês que é suspeito de ter matado uma senhora de 78 anos, com 29 facadas na garagem da casa onde ela vivia. O senegalês quase que tem nome de brasileiro: Louis DaSilva e - se descobriu posteriormente - era amante da nora da executada. Tem a garota de 22 anos que matou o filho recém-nascido e o enterrou. Não falta o suicida de 70 anos que saltou do balcão do prédio onde vivia e caiu em cima da vizinha de 83 anos, que andava pela rua. O suicida matou a vizinha e ficou vivo para contar a história. 

Durante semanas, "La vita in diretta" colocou uma lente de aumento sobre o endereço 108 da via Spartaco, em Roma. É um prédio simpático, com varandas amplas, em um quarteirão residencial. Ocorre que uma das moradores é ativista de proteção às aves. Todos os dias, ela dá comida - muita comida - para os pombos. As aves aglomeram-se em volta da janela onde ela vive e se multiplicam, com a comida farta e a ausência de predadores naturais. O resultado, como é fácil de se prever, provoca uma dor de cabeça danada nos vizinhos. Os pombos não ficam apenas diante da casa da ativista. Eles se espalham pelas outras janelas, pelas ruas, pelos outros prédios. É cocô por tudo quanto é lado. Tem cocô de pombo no asfalto, em cima dos carros, nas calçadas e - principalmente - nas belas varandas romanas. Se você morasse lá e quisesse tomar um aperitivo em uma romântica tarde de primavera, seria bombardeado de maneira implacável pela merda. Mesmo no verão, as janelas precisam ficar fechadas, porque o cheiro do cocô é insuportável. A história foi até reproduzida pelo jornal inglês "The Guardian", para quem "os pombos do inferno", lembravam uma cena hitchcockiana. O cineasta Alfred Hitchcock, no filme "Os pássaros", conta uma história de terror em que os pássaros (todos eles) começam a atacar os humanos. Sem mais nem menos, assim por pura maldade ou - talvez - desejo de vingança. "La vita in diretta" tanto fez que até o prefeito de Roma entrou na jogada e mandou a "senhora dos pombos" parar de alimentar os bichos. Segundo repetia o apresentador Alberto Matano, era "todo um quarteirão refém da senhora dos pombos".

E a ESPN conseguiu matar o seu melhor programa de esportes da TV. Chamava-se "Futebol 360" e era transmitido diariamente a partir das 9h, apresentado pelo jornalista Abel Neto, que foi demitido pela emissora.

Abel Neto, filho do craque e ponta esquerda santista Abel, é um excepcional apresentador. Tem tarimba, jogo de cintura, é experiente. Ele conduzia o "Futebol 360" de maneira leve e rigorosamente informativa, apoiado por comentaristas sérios e equilibrados como Eugênio Leal, Breiller Pires, Celso Unzelte. Era um programa sem gritaria, sem palhaçada, do tipo "Jogo aberto" e "Os donos da bola".

 "Futebol 360" não era dedicado ao Flamengo, como costuma ser o "Redação sportv". Os "gênios" da ESPN mudaram a grade, demitiram o apresentador competente e colocaram no lugar um pessoalzinho engraçado e moderninho no melhor estilo Leifert de ver futebol.   

  

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Um ressentido escreve sobre os ressentidos

 


São 220 páginas de puro ressentimento. O livro O pobre de direita - a vingança dos bastardos, de Jessé Souza, editado pela Civilização Brasileira, traz na capa um homem sentado em um galho de árvore, usando um serrote para cortar o mesmo galho. Ele está sentado no sentido contrário ao tronco. Ou seja, o galho vai ser serrado, quebrar e o infeliz vai despencar junto. Essa é a metáfora que simboliza o pobre de direita: o cara que usa hospitais públicos, escolas públicas, pega remédio grátis na farmácia e - inexplicavelmente - é também alguém que é a favor da redução do estado, do corte dos projetos assistenciais, que é contra o bolsa família, que é cristão de bíblia encadernada em zíper e mesmo assim apoia o Estado de Israel e se enrola na bandeira israelense para participar de passeata bolsonarista na Paulista (não foram os judeus que "mataram" Jesus?).

Jessé Souza é negro e nordestino. Talvez, por isso, ressentido. Assim como quis comprovar o cineasta Kleber Mendonça no filme "Bacurau", Jessé acredita que o pessoal do Sul e Sudeste são os "inimigos" do estado democrático e dos governos de esquerda. Essa gente que Jessé chama de "branquinhos histéricos" teria levado à eleição de Bolsonaro, por se acharem "europeus" e não se sentirem parte do Brasil.  

Na crítica intitulada O pobre de direita e a miséria da sociologia, o ativista da organização comunista Arma de Crítica Renato Nucci Júnior e o professor do Instituto Federal de São Paulo Leonardo Sacramento dizem que se Jessé levasse essa tese a uma banca de mestrado, levemente rigorosa, seria reprovado: "O argumento central de Jessé está pautado no ressentimento do branco sulista e no moralismo do negro periférico evangélico, desvinculando os seus votos da questão econômica. O PT, portanto, representaria o negro e o pobre, enquanto o branco sulista ressentido se identificaria com Bolsonaro". Nucci e Sacramento lembram, no entanto, que o Nordeste sempre votou, da redemocratização a 2002, no PSDB. "Há claramente um erro ao não se confrontar com um dado básico. O que teria acontecido com o Nordeste? Eis o que Jessé ignora".

Jessé estima que a classe média e a elite brasileira representam 20 por cento da população. "Ou seja, elas não decidem as eleições majoritárias." Não são esses os números do IBGE. Segundo o Censo 2022, as classes A, B e C já representam 50,1 por cento da população economicamente ativa. Cinquenta por cento mais um tem sim voto decisório. 

O pobre de direita é também uma longa e exaustiva peroração de ataques furibundos a Raízes do Brasil, de Aurélio Buarque de Holanda. Jessé entende que Buarque de Holanda (primo de segundo grau do Chico) simboliza o elitismo acadêmico paulista que se opunha a Getúlio Vargas. Para Jessé, Vargas foi o presidente que resgatou a importância da cultura negra na formação brasileira. 

"A revolução cultural varguista implica reconhecimento da cultura negra como um pilar cultural fundamental". Já São Paulo "passa a ser percebido, para todos os efeitos, como o lugar do encontro entre americanos e europeus, campeões da 'civilização', em contraposição ao resto do país (...) Estava criado o racismo cordial brasileiro".

São Paulo e sua elite acadêmica tinham mesmo de se opor a Getúlio Vargas. Ele havia dado um golpe em 1930 e tomado o poder à força. Foi para redemocratizar o País que os paulistas declararam guerra a Vargas, em 1932, com a Revolução Constitucionalista. Vargas baixaria o Estado Novo, em 1937, com a dissolução do Congresso e só deixaria o poder em 1945, quando havia 600 presos políticos no Brasil, entre eles, Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighela, Agildo Barata, Gregório Bezerra, entre outros. Os escritores Graciliano Ramos e Monteiro Lobato também foram "hóspedes" das celas do Estado Novo. Em nenhum momento, Jessé cita a ditadura Vargas. O fato de celebrar a cultura negra seria uma espécie de vacina que livraria Vargas de todos os seus desmandos? 

Pior: Jessé coloca no mesmo prato Vargas, Jango, Lula e Dilma, "líderes populares de nossa história que tentaram usar o orçamento público em benefício da maioria da população". Jango, Lula e Dilma foram democraticamente eleitos. Vargas só retornaria ao poder em 1951, "nos braços do povo", com a popularidade alcançada pela sua Consolidação das Leis do Trabalho, de 1943. De 1930 a 1945, é bom destacar, o Brasil vivia uma ditadura. A Ditadura Vargas.

Jessé cria um "racismo racial de fundo", que seria "contra os mestiços e negros do Norte". O autor menciona também o "preconceito regional", "principalmente no Estado de São Paulo, onde ele assume a sua forma mais bem elaborada e eficaz". E elabora o seguinte questionamento: "O que está em jogo no ódio real aos nordestinos, que não seja mera inveja do lugar que possui, indiscutivelmente, as praias mais bonitas deste país?". E afirma que "crime passa a ser tudo aquilo que o preto faz: sua religião, sua música, seu lazer e suas manifestações culturais". No entender do autor, "o racismo 'racial' continua sendo, agora por meio de suas máscaras 'culturais', o fundamento do cimento social brasileiro".

Jean-François Braunstein, em A religião woke, afirma que "é preciso encontrar racismo em todo o lado, precisamente porque não temos um racismo comprovado". Braunstein cita o professor canadense de política Eric Kaufmann que, a propósito dos Estados Unidos, ponderou que "nunca se falou tanto de racismo desde que o país se tornou indiferente às raças, com um presidente negro, um ministro de Defesa negro e um secretário de Segurança latino".

Ao falar de "racismo sistêmico", Braunstein menciona a militante racial Barbara Applebaum, para quem "todos os brancos são racistas ou cúmplices do fato de se beneficiarem de privilégios que não podem voluntariamente renunciar". O autor de A religião woke avalia que "temos dificuldade em compreender que estes militantes raciais finjam não perceber que a própria fórmula 'todos os brancos são racistas ou cúmplices' é um racismo consumado, sobretudo se a completarmos com a afirmação que ninguém negro é racista. Com este 'racialismo', estamos lidando com um racismo invertido, mas que ainda assim é racismo".

Jessé entrevista algumas pessoas, mas sem a preocupação de identificá-las. Por exemplo: "Marcelo - Marcelo é gaúcho e morador de Porto Alegre. Marcelo é branco, forte e musculoso, alto e com rosto de traços finos". Mateus - Matheus é advogado e tem trinta anos". Como jornalista essa forma de identificar o personagem me causa estranhamento. Quando era repórter, costumava anotar o nome completo, a profissão e até a idade da pessoa. Fica uma sensação de informação mal dada: "Ederson - Ederson é negro, carioca e mora em São Paulo". Não encontrei de forma detalhada e explícita quantas pessoas foram entrevistadas. Não há um balanço final. Parece que os entrevistados foram escolhidos a dedo para comprovar a tese do "racismo racial de fundo" do autor.

No Brasil, há pessoas racistas. Existem paulistas e sulistas que não gostam de nordestinos por preconceito. Mas são exceções. São Paulo sempre recebeu todos de braços abertos. Hoje, São Paulo é o estado que tem a maior população de nordestinos fora do Nordeste. Quando Jessé afirma que, no fundo, o preconceito contra nordestinos advém da inveja, por causa das praias, é de uma infelicidade autoral clamorosa. O preconceito contra o nordestino deve-se a evidências notórias: são pessoas pobres, com nível educacional baixo, que têm somente a força do trabalho para ofertar. Assim como eram os avós dos descendentes de italianos, alemães, japoneses, que chegaram a São Paulo entre o final do século 19 e o início do século 20. 

Quem lê o livro O pobre de direita - a vingança dos bastardos tentando entender por que o bolsonarismo surgiu e criou raízes, e por que houve esse período tão turbulento e nocivo para a sociedade brasileira, fica sem respostas. Por causa de seu ressentimento em relação a São Paulo e estados do Sul, Jessé cria um esqueleto teórico, com base na suposição de um "racismo racial", que não oferece explicações. 

Bolsonaro foi eleito, porque o seu principal adversário (Lula) estava na cadeia, preso por uma acusação de corrupção que nunca foi comprovada. Nem o então juiz Sergio Moro, nem o promotor Deltan Dallagnol tinham provas efetivas de que o dinheiro da Petrobras teria sido utilizado na reforma do sítio em Atibaia e no tríplex do Guarujá. Como a Vaza Jato viria comprovar, posteriormente, Moro e Dallagnol conjuravam para conseguir a condenação. Como prêmio pela condenação, por ter tirado Lula da disputa eleitoral, Moro foi escolhido por Bolsonaro para assumir o Ministério da Justiça.

Nucci Júnior e Sacramento escrevem que o conceito pobre de direita é imprestável para explicar a realidade. "No fundo, expressa uma condenação moral: a culpa pela pobreza e miséria das massas não seria do capitalismo, mas do próprio pobre de direita, principal responsável pela sua miséria".

O Brasil tem pressa. Precisa acabar com as desigualdades salariais. Tem de estabelecer níveis de rendimento semelhantes aos dos países nórdicos. É inconcebível um país com tantos miseráveis como o Brasil ter funcionários públicos com rendimentos estratosféricos, como apontou Bruno Carazza, em seu livro O país dos privilégios

O Brasil tem pressa, em suas prioridades: eliminar as desigualdades, transformar a educação em pública, acabando com as fábricas particulares de diplomas; combater a violência com mais vigor e menos titubeio. Preservar a natureza. Salvar as mulheres dos companheiros e ex-companheiros. Diferente do livro de poemas Temos muito tempo e tão pouco a fazer, nós temos tanta coisa para fazer e tão pouco tempo. E conforme a frase atribuída ao imperador Marco Aurélio: "o que fizermos agora ecoará pela eternidade".     

  





   






 
 





segunda-feira, 11 de agosto de 2025

Novo livro de Vladimir Safatle mantém proposta revolucionária

 


“Enquanto houver sofrimento, haverá política revolucionária possível”, afirma Vladimir Safatle, em seu livro recém-lançado pela editora Planeta, A esquerda que não teme dizer seu nome.

Em suas 111 páginas, Safatle tece críticas ao “socialismo real, vencedor”, põe em dúvida os números de vítimas do comunismo, prioriza a defesa de vida de “entidades não humanas” (natureza), desmitifica o que chama de “limitação antropológica da política” (uma política de esquerda não pode funcionar, porque o ser humano é naturalmente egoísta) e tenta explicar “o que aconteceu conosco”, referindo-se à atual militância esquerdista.

Afinal, o comunismo fez quantas vítimas: 60, 65, 93, 110, 148 milhões de pessoas? Segundo o autor, essa “leviandade no uso dos números” indica que “precisão não é o forte nessa discussão”. Por que, ele questiona, “não lembramos também de todas as vítimas do colonialismo, do imperialismo, das guerras expansionistas, da miséria e fome operária, das ditaduras, da repressão policial”.

Em defesa das “entidades não humanas”, Safatle chama atenção para a Constituição do Equador que garante “a existência da Natureza, sua preservação e a regeneração de seus ciclos vitais”. Ele assegura que esta é uma forma de dar também uma categoria de sujeito para entidades não humanas. E isso precisa ser feito com rapidez, porque vivemos em um mundo “que desmorona muito rápido”.

O autor sugere que “a soberania popular” possa ser “a força deliberativa de um estado de emergência” que impediria medidas tomadas contra os interesses da preservação da natureza. Por exemplo, quando se fala em prospecção de petróleo na foz do Amazonas, essa “soberania popular” passaria por cima de qualquer decisão governamental e impediria a extração do óleo naquela região.

Safatle lembra que, em 2017, o governo de Michel Temer fez uma reforma trabalhista que derrubou direitos consolidados. Pós-Temer, grávidas podiam ser obrigadas a trabalhar em locais insalubres, as jornadas de trabalho de 12 horas por dia, com demissão, descanso e férias radicalmente flexibilizadas. Na ação trabalhista, se o trabalhador fosse derrotado teria de arcar com as despesas do processo. Assim que a reforma foi aprovada o que se viu nas ruas?

“Nenhuma manifestação de rua. Famílias todas de olho no final do BBB”, recorda o autor, questionando:

“O que aconteceu conosco?”

Em seguida veio a eleição de Bolsonaro. Era o candidato não apenas das famílias de deputados de cinco gerações, mas também “de gente periférica, negra e evangélica”.

“Votavam na direita”, observa Safatle, “por se sentirem traídos, por não se verem mais como objetos reais das preocupações reais das práticas no poder”.

O autor refere-se aos empreendedores isolados, a uberização do trabalhador. Gente que não pode mais contar com instituições e redes de solidariedade para defesa coletiva, como sindicatos e associações.

Eles são “vendedores de si mesmos”. “Nada têm – nem garantias trabalhistas, nem meios de produção, nem tempos e estão sempre endividados”.

O todo poderoso “mercado” é uma “instância antipolítica, anti-igualitária e organizada a partir da lógica de concentração e do monopólio”.

“O capitalismo nunca foi concorrencial, sempre foi monopolista”.

Cita o bilionário Warren Buffet, que afirmou:

“É verdade. Existe uma guerra de classes, mas é a minha classe que está fazendo a guerra e ganhando”.

“O capitalismo”, escreve Safatle, “é um sistema de guerra permanente, que usa a violência como regime normal de funcionamento”.

O autor critica o apoio da esquerda às lutas identitárias (movimentos feministas, negros, LGBT), afirmando que “a esquerda se serviu dessas lutas para esconder de si mesma sua impotência”.

E dispara contra o antigo regime comunista: “O socialismo real conheceu a violência estatal, a brutalidade social, o autoritarismo, os privilégios da burocracia, entre tantas degradações”.

Safatle vê com bons olhos “a legalidade da violação política”. Cita como exemplos pacifistas, ecologistas, ativistas (que ateiam fogo em estátuas de bandeirantes), piqueteiros, cidadãos que protegem imigrantes sem papéis e militantes do MST que invadem fazendas improdutivas.

Sobre desigualdade salarial, Safatle chama atenção para o fato de que nos países nórdicos (Islândia, Noruega, Suécia e Dinamarca) a diferença entre o menor salário e o maior não ultrapassa a proporção de um para quatro. “No Brasil, o salário numa empresa a diferença pode ser até 120 vezes entre o maior e o mais baixo”.

Ao se perguntar “o que é ser de esquerda hoje?”, ele responde: “É defender a igualdade radical e a soberania popular”.

O que é essa soberania popular, como ela se organizaria, como efetivá-la? Safatle diz que “não há nada neste livro sobre organização política”, mas caberá à esquerda acelerar o desabamento do mundo em outra direção.

“Revoluções são sempre improváveis, fruto de uma série contingente de acontecimentos. O que devemos fazer é não recusar esses processos inesperados que têm a força de romper o tempo. Não recusar já é muita coisa”.

 “As long as there is suffering, there will be possible revolutionary politics", says Vladimir Safatle in his newly released book by Editora Planeta, The Left That Is Not Afraid to Speak Its Name.

In its 111 pages, Safatle criticizes ‘real, victorious socialism,’ questions the numbers of communism’s victims, prioritizes the defense of life for ‘non-human entities’ (nature), demystifies what he calls the ‘anthropological limitation of politics’ (the idea that leftist politics cannot work because humans are naturally selfish), and attempts to explain ‘what happened to us,’ referring to today’s leftist activism.

After all, how many victims did communism claim: 60, 65, 93, 110, or 148 million? According to the author, this ‘frivolity in using numbers’ indicates that ‘precision is not the strong point in this discussion.’ Why, he asks, ‘don’t we also remember all the victims of colonialism, imperialism, expansionist wars, worker poverty and hunger, dictatorships, and police repression?’

In defense of ‘non-human entities,’ Safatle highlights Ecuador’s Constitution, which guarantees ‘the existence of Nature, its preservation, and the regeneration of its vital cycles.’ He argues that this is a way to grant subjectivity to non-human entities—and that it must be done quickly because we live in a world ‘that is collapsing very fast.’

The author suggests that ‘popular sovereignty’ could act as ‘the deliberative force of a state of emergency,’ preventing measures against nature’s preservation. For example, regarding oil drilling at the mouth of the Amazon, this ‘popular sovereignty’ would override any government decision and block extraction in the region.

Safatle recalls that in 2017, Michel Temer’s government passed a labor reform that dismantled long-standing rights. Post-Temer, pregnant women could be forced to work in hazardous conditions, workdays extended to 12 hours, and dismissals, rest periods, and vacations became drastically flexible. In labor lawsuits, if the worker lost, they would have to pay legal fees. And what happened in the streets after the reform passed?

‘No street protests. Families glued to the finale of Big Brother Brasil,’ the author notes, asking:

‘What happened to us?’

Then came Bolsonaro’s election. He was the candidate not only of families with five generations of congressmen but also of ‘peripheral, Black, and evangelical people.’

‘They voted for the right,’ observes Safatle, ‘because they felt betrayed, no longer seeing themselves as the real objects of the ruling power’s concerns.’

The author refers to isolated entrepreneurs, the ‘Uberization’ of workers—people who can no longer rely on institutions or solidarity networks for collective defense, like unions and associations.

They are ‘sellers of themselves.’ ‘They have nothing—no labor rights, no means of production, no time, and are always in debt.’

The all-powerful ‘market’ is an ‘anti-political, anti-egalitarian entity, organized under the logic of concentration and monopoly.’

‘Capitalism was never competitive; it was always monopolistic.’

He quotes billionaire Warren Buffett, who once said:

‘There’s class warfare, all right, but it’s my class, the rich class, that’s making war, and we’re winning.’

‘Capitalism,’ writes Safatle, ‘is a system of permanent war, using violence as its normal mode of operation.’

The author criticizes the left’s support for identity struggles (feminist, Black, LGBT movements), arguing that ‘the left used these struggles to hide its own impotence from itself.’

And he takes aim at the old communist regime: ‘Real socialism knew state violence, social brutality, authoritarianism, bureaucratic privileges, and so many other degradations.’

Safatle looks favorably upon ‘the legality of political violation.’ He cites pacifists, ecologists, activists (who burn statues of bandeirantes), picketers, citizens protecting undocumented immigrants, and MST militants invading unproductive farms as examples.

On wage inequality, Safatle points out that in Nordic countries (Iceland, Norway, Sweden, Denmark), the gap between the lowest and highest salaries does not exceed a 1:4 ratio. ‘In Brazil, the difference within a company can be up to 120 times.’

When asking, ‘What does it mean to be left-wing today?’, he answers: ‘It means defending radical equality and popular sovereignty.’

What is this popular sovereignty, how would it organize itself, how could it be implemented? Safatle admits that ‘there is nothing in this book about political organization,’ but it will be up to the left to steer the world’s collapse in another direction.

‘Revolutions are always improbable, the result of a contingent series of events. What we must do is not reject these unexpected processes that have the power to break time. Not rejecting them is already a lot.’

segunda-feira, 7 de julho de 2025

Meu primo russo

 


Nunca soube o nome do meu primo Russo. Sei que ele morava no Bom Retiro e trabalhava no centro de São Paulo. Todos os meus parentes o chamavam de Russo, porque ele era ruivo. Não um ruivo opaco. O cabelo era vermelho mesmo, em chamas.

Russo era um primo que chamava a minha avó de "tia". Eu devia ter uns dez anos e achava estranho a minha avó ser tia de alguém. O Russo gostava de beber. Era o alcoólatra da família. Ficava uns meses sem aparecer e quando aparecia era um deus nos acuda. 

Tinha as roupas sujas e amarrotadas. O cabelo grudento. Sua transpiração era puro alambique. A barba um amontoado de fios sem direção. 

Então, tinha início o processo de recuperação do Russo. Minha tia o levava ao banheiro e o obrigava a entrar no chuveiro. Meu avô era chamado às pressas e arrumava uma muda de roupa: meias, calças, cueca, camisa e até um paletó. Alguém pegava os sapatos dele e levava para engraxar, com Nugget. Depois do banho, minha tia fazia a barba dele. Pegava a lavanda Atkinsons e dava umas borrifadas gerais no Russo. 

De banho tomado, barba feita, cabelo penteado para trás, roupa limpa e todo cheiroso, Russo chegava na cozinha e era celebrado por todos. Era um novo Russo que aparecia. 

Ele se sentava à mesa e minha avó montava um prato tridimensional para ele, com spaghetti, porpetas, frango e polenta. Só que, antes da primeira garfada, o Russo começava a tremer. Eu achava que ele estava com frio e dizia: "Vó, o Russo tomou banho gelado, por isso está tremendo". Não era frio. O Russo precisava tomar alguma coisa mais forte, algo com teor alcoólico próximo dos 40%. Meu avô enchia um copo de vinho chianti Ruffino e entregava nas mãos trêmulas do Russo que virava de uma vez o conteúdo. Não sobrava nem uma gota como testemunha.

Às vezes, no final da tarde, o Russo me acompanhava na padaria Santa Tereza, para comprar uma bengala de pão. No caminho, a gente parava no vendedor ambulante de doces e ele me oferecia com generosidade: "Escolhe o que você quiser", ele dizia, como se a gente estivesse no Fasano. Eu escolhia sempre o mesmo: Diamante Negro. 

O Russo ia embora e demorava meses para aparecer. Quando aparecia, era novamente o deus nos acuda, do banho, da barba, das roupas, da lavanda Atkinsons. Até que um dia veio a notícia: o Russo tinha morrido. Ele havia sido preso. Ficara uns dias apanhando dos policiais e morreu, deitado na cama de algum parente, enquanto dormia.

Muitas décadas depois, é a minha vez de enfrentar a síndrome do Russo. É o meu cachorro que costuma desaparecer de vez em quando. Não sei se ele vai em algum boteco de cachorro encher a cara; não sei se é a polícia dos cachorros que pega no pé dele; o fato é que ele costuma voltar pra casa quase sempre faltando um pedaço. É o focinho perfurado, o couro do peito aberto, patas machucadas, orelhas feridas.

Aí, a gente dá um banho nele para tirar o barro, a sujeira e limpar as feridas com sabão preto daquele que mata até pensamento ruim. Terminado o banho, vem a fase seguinte que é costurar o couro, colocar bálsamo nos cortes, ministrar remédios (vários) e botar perfume nele. Não, a colônia Atkinsons.

O infeliz fica deitado, recuperando as energias. Ao invés do vinho chianti Ruffino, ele toma água filtrada, come ração do primeiro time e um bandejão igual àquele que matava a fome do Russo. 

Amanhã, ele vai estar novamente em pé e a gente sabe que fugirá outra vez. Não adianta pôr cerca elétrica, arame farpado, trincheira, mina subterrânea, ele vai dar um jeito de passar por cima  (ou por baixo) dos obstáculos e irá novamente para a farra. 

O miserável incorporou a alma do meu primo Russo. Não há o que fazer. É esperar com os medicamentos prontos, a agulha de costurar cachorro e a colônia Atkinsons, por que não. 

Por falar na Atkinsons, tenho certeza que a lavanda adocicada vai fazê-lo lembrar da vida passada.

      


domingo, 8 de junho de 2025

Humorista Leo Lins é censurado pela Justiça Federal

 

Leonardo de Lima Borges Lins, o humorista condenado

O início é óbvio: Constituição da República Federativa do Brasil, artigo 5º, que trata dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. O parágrafo nove diz o seguinte:

“É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”.

Se a expressão de atividade artística é livre de censura ou de licença, como pode um humorista sofrer condenação, por estar fazendo o seu ofício?

Aconteceu com Leo Lins. Em 2022, ele fez um show chamado “Perturbador”. O vídeo da apresentação foi parar na rede social (YouTube – 3 milhões de visualizações) e o Ministério Público Federal não gostou do que viu. Por isso, abriu um processo contra o humorista.

Três anos depois, no dia 3 de junho da semana passada, a juíza federal substituta Barbara de Lima Iseppi condenou o humorista a oito anos e três meses de prisão, mais pagamento de indenização de 303 mil reais.

A medida foi aplaudida por muita gente: intelectuais, jornalistas, gente com eira e gente sem beira e, inclusive, humoristas, como Pedro Cardoso, que fazia o personagem “Agostinho”, no programa “A grande família”, exibida pela TV Globo.

Em um longo texto na rede social Instagram, Pedro Cardoso associou o stand-up (comediante que fica em pé diante do público) ao fascismo e chamou a apresentação de Leo Lins como “discurso de ódio”.

Os jornais foram contra a condenação. Em editorial, intitulado “Quando piada dá cadeia, salve-se quem puder”, o vetusto Estadão escreveu o seguinte:

Punir piadas é sinal de fraqueza institucional, e não de justiça. O humor é parte da liberdade que protege o que nos incomoda, e uma sociedade plural não sobrevive à criminalização do riso”. O editorial prossegue:

“Mais do que um veredicto equivocado, é a expressão mais grotesca de uma tendência crescente: a criminalização do discurso incômodo sob o pretexto de proteger os vulneráveis. A toga virou armadura ideológica, e o Código Penal, instrumento de censura”.

O Globo escreveu: “São piadas – não crimes”.

Em sua sentença, com pelo menos dois erros graves de citação (a juíza menciona a lei 7.719, que cria uma categoria funcional do Tribunal Superior Eleitoral; ao invés da lei 7.716 que trata de racismo), a juíza confirma que o humorista é um personagem:

“Não obstante, ainda que se trate de uma personagem e não da pessoa de LEONARDO, é certo não se excluir o crime (...) o fato de se tratar de humor não configura um passe-livre para o cometimento de crimes, assim como o fato de se tratar de uma apresentação artística”.

E sentencia o réu:

“Somadas ambas as penas nos termos do artigo 69 do Código Penal, fica o réu condenado à pena definitiva de 08 (oito) anos, 03 (três) meses e 09 (nove) dias de reclusão, além de 39 (trinta e nove) dias- multa (...) A pena deverá ser cumprida inicialmente no regime fechado”.

Punir os humoristas não é novidade. O bobo da corte Triboulet (1479-1536) foi condenado à morte pelo rei Francisco I (há versões que dizem que essa condenação partiu do rei Luis XII). Durante uma apresentação, o bobo da corte Triboulet passou a mão na bunda do rei. Sua majestade não gostou e mandou matar o bobo. Triboulet se desculpou: “Me enganei, senhor. Achei que fosse a bunda da sua esposa, a rainha”.

Mais indignado ainda, o rei confirmou a condenação à morte e deu ao bobo da corte uma única regalia: ele poderia escolher a forma de sua execução. Triboulet propôs ao rei: “Então, escolho morrer de velhice”. O rei achou graça, perdoou e o exilou.

Aos 42 anos, o humorista Leo Lins não é engraçado. Suas piadas são apelativas, rasteiras e de péssimo gosto. Eu jamais sairia de casa para assistir a uma apresentação dele. Também não vou perder meu tempo assistindo aos vídeos dele nas redes antissociais.

Como lembrou a juíza, em sua sentença, o humorista faz piadas, dirigidas às minorias: negros, obesos, idosos, pessoas com HIV, indígenas, homossexuais, judeus, nordestinos, evangélicos e deficientes físicos.

As piadas de Lins são preconceituosas? E daí? A liberdade de expressão não existe para proteger discursos populares ou elegantes que não precisam de proteção, mas sim aquilo que desagrada, desafia convenções, irrita e até fere sensibilidades”, discorre o Estadão, em seu editorial.

A Justiça brasileira está correndo um sério risco: o de se transformar em órgão censor. Durante a Ditadura Militar, a censura era usada para calar dissidentes e opositores ao regime.

Na década de 1990, promotores do Ministério Público de São Paulo consideravam o jornal Notícias Populares impróprio para ser oferecido nas bancas. O NP, como era chamado, tinha manchetes sensacionalistas e publicava fotos de cadáveres na primeira página. Para os promotores, o jornal só poderia ser oferecido aos leitores se viesse embrulhado em um saco plástico, o que inviabilizaria a publicação, porque o NP vivia basicamente de venda em banca e precisava chamar a atenção de seus leitores.   

Em maio passado, a desembargadora Íris Helena Medeiros Nogueira condenou o jornal Zero Hora e a jornalista Rosane de Oliveira a pagarem uma indenização de 600 mil reais, por danos morais. O crime da jornalista: ela informou aos leitores do jornal que a desembargadora havia recebido, em determinado mês, a quantia de 662 mil reais. A notícia era verdadeira e os dados constavam no Portal da Transparência.

Em outro caso, em que a Justiça estava sendo usada para calar, o jornalista e escritor João Paulo Cuenca foi alvo de 140 processos, movidos por pastores da Igreja Universal, nos mais diversos e longínquos rincões deste País de dimensões continentais.

O crime de Cuenca: ele noticiou que o governo brasileiro (na época, o presidente era Jair Bolsonaro) iria subsidiar canais e emissoras de igrejas evangélicas, mesmo que estas estivessem em dívida com o estado.

Houve reação, felizmente. E partiu do próprio Judiciário. No início deste ano, o Ministério Público Federal moveu processo contra a Igreja Universal por “assédio judicial”.

Qual foi o crime que Leo Lins cometeu? Nenhum. Ele contou piadas. Você não gosta das piadas dele? Elas são de péssimo gosto, abjetas? É simples; não vá às apresentações dele; não veja os vídeos nas redes sociais.

Como disse o Estadão, em seu editorial inspirado: “O Brasil precisa resistir a esse impulso regressivo e repressivo. Piadas ruins devem ser criticadas, e não criminalizadas. Discursos odiosos devem ser desmoralizados, e não aniquilados com prisão. O riso – inclusive o cruel, ácido, perturbador – é uma válvula essencial das sociedades livres. Retirá-lo do espaço público é sufocar a liberdade”.

Espero que uma próxima instância judicial derrube a sentença da juíza substituta. Caso percorra todas as instâncias, sem sucesso, e chegue ao STF (Supremo Tribunal Federal) caberá aos ministros, que são guardiões da Constituição, preservar a letra da lei, conforme assinala o Artigo 5º, parágrafo nono. Censura nunca mais. Mesmo! 

Leia a íntegra da sentença da juíza Barbara de Lima Iseppi:

https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2025/06/sentenca-Leo-Lins-discriminacao-show-stand-up.pdf


Comedian Leo Lins is censored by the Federal Court

 The starting point is obvious: The Constitution of the Federative Republic of Brazil, Article 5, which deals with Individual and Collective Rights and Duties. Paragraph nine states:“The expression of intellectual, artistic, scientific, and communicative activity is free, independent of censorship or licensing.”If the expression of artistic activity is free from censorship or licensing, how can a comedian be convicted for simply doing his job?This happened to Leo Lins. In 2022, he performed a show called “Perturbador” (Disturbing). 

The video of the performance ended up on social media (YouTube – 3 million views), and the Federal Public Prosecutor’s Office didn’t like what they saw. As a result, they filed a lawsuit against the comedian.Three years later, on June 3 of last week, substitute federal judge Barbara de Lima Iseppi sentenced the comedian to eight years and three months in prison, plus a fine of 303,000 reais.The decision was applauded by many: intellectuals, journalists, people from all walks of life, and even fellow comedians like Pedro Cardoso, who played the character “Agostinho” in the TV Globo show “A Grande Família” (The Big Family).In a lengthy Instagram post, Pedro Cardoso associated stand-up comedy (where the comedian performs in front of an audience) with fascism and called Leo Lins’ performance “hate speech.

The newspapers, however, opposed the conviction. In an editorial titled “When Jokes Land You in Jail, Run for Your Life,” the venerable Estadão wrote:“Punishing jokes is a sign of institutional weakness, not justice. Humor is part of the freedom that protects what offends us, and a pluralistic society cannot survive the criminalization of laughter.” The editorial continued:“More than a mistaken verdict, this is the most grotesque expression of a growing trend: the criminalization of uncomfortable speech under the pretext of protecting the vulnerable. The judge’s robe has become ideological armor, and the Penal Code, an instrument of censorship.”O Globo wrote: “They’re jokes—not crimes.”

In her ruling, which contained at least two serious citation errors (the judge referenced Law 7,719, which establishes a functional category for the Superior Electoral Court, instead of Law 7,716, which deals with racism), the judge acknowledged that the comedian was performing a character:“Nevertheless, even if it is a character and not LEONARDO himself, it does not exclude the crime (...) the fact that it is humor does not grant a free pass to commit crimes, just as an artistic performance does not.”And she sentenced the defendant:

*“Combining both penalties under Article 69 of the Penal Code, the defendant is sentenced to a definitive term of 08 (eight) years, 03 (three) months, and 09 (nine) days of imprisonment, in addition to 39 (thirty-nine) days-fine (...) The sentence shall initially be served under a closed regime.”*Punishing comedians is nothing new. The court jester Triboulet (1479–1536) was sentenced to death by King Francis I (some versions say King Louis XII). During a performance, Triboulet slapped the king’s rear end. His Majesty didn’t appreciate it and ordered the jester’s execution. Triboulet apologized: “My mistake, sire. I thought it was your wife’s, the queen’s, rear.

Even more outraged, the king confirmed the death sentence but granted Triboulet one privilege: he could choose his method of execution. Triboulet then said: “Then I choose to die of old age.” 

The king found the joke amusing and pardoned him.At 42, comedian Leo Lins is not funny. His jokes are crude, cheap, and in poor taste. I would never leave my house to watch his show, nor would I waste my time watching his videos on antisocial media.As the judge noted in her ruling, the comedian makes jokes targeting minorities: Black people, the obese, the elderly, people with HIV, Indigenous people, homosexuals, Jews, Northeasterners, Evangelicals, and the disabled.“Are Lins’ jokes prejudiced? So what? Freedom of expression doesn’t exist to protect popular or elegant speech that needs no protection, but rather what offends, challenges conventions, irritates, and even hurts sensibilities,” argued Estadão in its editorial.Brazil’s judiciary is running a serious risk: becoming a censorship body. During the Military Dictatorship, censorship was used to silence dissidents and regime opponents.In the 1990s, São Paulo prosecutors considered the newspaper Notícias Populares unfit to be sold at newsstands. NP, as it was called, had sensationalist headlines and published photos of corpses on its front page. The prosecutors argued that the newspaper should only be sold if wrapped in plastic, which would have made publication unviable—since NP relied on newsstand sales and needed to catch readers’ attention.

Last May, appellate judge Íris Helena Medeiros Nogueira ordered the newspaper Zero Hora and journalist Rosane de Oliveira to pay 600,000 reais in moral damages. The journalist’s crime? Reporting that the judge had received 662,000 reais in a given month—a true story, backed by data from the Transparency Portal.In another case of judicial silencing, journalist and writer João Paulo Cuenca faced 140 lawsuits filed by pastors of the Universal Church across Brazil’s vast territory.Cuenca’s crime? Reporting that the Brazilian government (then under President Jair Bolsonaro) would subsidize evangelical TV channels and radio stations—even if they owed money to the state.Fortunately, there was pushback—from the judiciary itself. Earlier this year, the Federal Public Prosecutor’s Office sued the Universal Church for “judicial harassment.”What crime did Leo Lins commit? None. He told jokes. Don’t like his jokes? Find them tasteless, vile? It’s simple: don’t attend his shows; don’t watch his videos.

As Estadão eloquently argued in its editorial: “Brazil must resist this regressive, repressive impulse. Bad jokes should be criticized, not criminalized. Hateful speech should be discredited, not crushed with prison. Laughter—even cruel, biting, disturbing laughter—is an essential pressure valve in free societies. Removing it from public life is suffocating freedom.”I hope a higher court overturns the substitute judge’s ruling. If the case reaches the Supreme Court (STF), it will fall to the justices—guardians of the Constitution—to uphold the law as stated in Article 5, Paragraph 9. No more censorship. Ever.Read the full ruling by Judge Barbara de Lima Iseppi:

https://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2025/06/sentenca-Leo-Lins-discriminacao-show-stand-up.pdf




Violência no Brasil e lentidão governamental

  É um desafio: criminosos ocuparam as favelas do Rio de Janeiro e criaram um país à parte. Não é mais o Brasil. É um país dominado por band...