Nunca soube o nome do meu primo Russo. Sei que ele morava no Bom Retiro e trabalhava no centro de São Paulo. Todos os meus parentes o chamavam de Russo, porque ele era ruivo. Não um ruivo opaco. O cabelo era vermelho mesmo, em chamas.
Russo era um primo que chamava a minha avó de "tia". Eu devia ter uns dez anos e achava estranho a minha avó ser tia de alguém. O Russo gostava de beber. Era o alcoólatra da família. Ficava uns meses sem aparecer e quando aparecia era um deus nos acuda.
Tinha as roupas sujas e amarrotadas. O cabelo grudento. Sua transpiração era puro alambique. A barba um amontoado de fios sem direção.
Então, tinha início o processo de recuperação do Russo. Minha tia o levava ao banheiro e o obrigava a entrar no chuveiro. Meu avô era chamado às pressas e arrumava uma muda de roupa: meias, calças, cueca, camisa e até um paletó. Alguém pegava os sapatos dele e levava para engraxar, com Nugget. Depois do banho, minha tia fazia a barba dele. Pegava a lavanda Atkinsons e dava umas borrifadas gerais no Russo.
De banho tomado, barba feita, cabelo penteado para trás, roupa limpa e todo cheiroso, Russo chegava na cozinha e era celebrado por todos. Era um novo Russo que aparecia.
Ele se sentava à mesa e minha avó montava um prato tridimensional para ele, com spaghetti, porpetas, frango e polenta. Só que, antes da primeira garfada, o Russo começava a tremer. Eu achava que ele estava com frio e dizia: "Vó, o Russo tomou banho gelado, por isso está tremendo". Não era frio. O Russo precisava tomar alguma coisa mais forte, algo com teor alcoólico próximo dos 40%. Meu avô enchia um copo de vinho chianti Ruffino e entregava nas mãos trêmulas do Russo que virava de uma vez o conteúdo. Não sobrava nem uma gota como testemunha.
Às vezes, no final da tarde, o Russo me acompanhava na padaria Santa Tereza, para comprar uma bengala de pão. No caminho, a gente parava no vendedor ambulante de doces e ele me oferecia com generosidade: "Escolhe o que você quiser", ele dizia, como se a gente estivesse no Fasano. Eu escolhia sempre o mesmo: Diamante Negro.
O Russo ia embora e demorava meses para aparecer. Quando aparecia, era novamente o deus nos acuda, do banho, da barba, das roupas, da lavanda Atkinsons. Até que um dia veio a notícia: o Russo tinha morrido. Ele havia sido preso. Ficara uns dias apanhando dos policiais e morreu, deitado na cama de algum parente, enquanto dormia.
Muitas décadas depois, é a minha vez de enfrentar a síndrome do Russo. É o meu cachorro que costuma desaparecer de vez em quando. Não sei se ele vai em algum boteco de cachorro encher a cara; não sei se é a polícia dos cachorros que pega no pé dele; o fato é que ele costuma voltar pra casa quase sempre faltando um pedaço. É o focinho perfurado, o couro do peito aberto, patas machucadas, orelhas feridas.
Aí, a gente dá um banho nele para tirar o barro, a sujeira e limpar as feridas com sabão preto daquele que mata até pensamento ruim. Terminado o banho, vem a fase seguinte que é costurar o couro, colocar bálsamo nos cortes, ministrar remédios (vários) e botar perfume nele. Não, a colônia Atkinsons.
O infeliz fica deitado, recuperando as energias. Ao invés do vinho chianti Ruffino, ele toma água filtrada, come ração do primeiro time e um bandejão igual àquele que matava a fome do Russo.
Amanhã, ele vai estar novamente em pé e a gente sabe que fugirá outra vez. Não adianta pôr cerca elétrica, arame farpado, trincheira, mina subterrânea, ele vai dar um jeito de passar por cima (ou por baixo) dos obstáculos e irá novamente para a farra.
O miserável incorporou a alma do meu primo Russo. Não há o que fazer. É esperar com os medicamentos prontos, a agulha de costurar cachorro e a colônia Atkinsons, por que não.
Por falar na Atkinsons, tenho certeza que a lavanda adocicada vai fazê-lo lembrar da vida passada.
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