domingo, 23 de fevereiro de 2025

"É Carnaval"

 


Um dos mistérios da minha vida é o Carnaval. Este ano, cai na terça-feira, dia 4 de março. Em tese. Na prática, parece que já começou. Os telejornais, o jornalismo eletrônico dos portais de notícias, as lojas, os desfiles, as postagens nas redes antissociais, tudo leva a crer que o Carnaval começa bem antes do dia marcado. Carnaval é um mistério, porque tem data e lugar para você ser feliz, cantar, beijar e dançar. A pessoa está parada no lugar, olhando para lugar nenhum e, de repente, começa a tocar uma música e ela sai pulando, dançando, gritando. 

A palavra Carnaval vem do latim - carnem levare - que significa "eliminar a carne", numa referência à quarta-feira de cinzas, primeiro dia de um período de abstinência (Quaresma), durante o qual ninguém estava autorizado a comer carne. 

O carnavalesco Paulo Barros, de Vila Isabel (RJ), causou polêmica ao dizer que o público não entende os desfiles de temática africana. "Posso te garantir que 90% das pessoas não vão entender nada." E ele diz: "Qualquer imbecil sabe que raiz de escola de samba é africana". De fato, para quem não tem formação em religião africana, é complicado entender aquelas divindades e demais referências. E é verdade que a a escola de samba tem muita influência da cultura africana. Na realidade, houve uma apropriação dessa temática africana sobre o Carnaval brasileiro. O Carnaval originou-se na antiga Roma. O famoso Carnaval de Máscaras de Veneza visava, nos primórdios, nivelar ricos e pobres, em pelo menos um único dia do ano. Todos estavam mascarados. Ninguém sabia quem era rico ou miserável.  

No passado, o Carnaval era um momento de frouxidão da censura moralista. A moça recatada, frequentadora da missa, tímida e avessa aos avanços da garotada, quando punha uma fantasia e ia ao salão "pular o Carnaval", perdia os freios, como se dizia antigamente. Beijava deus e o mundo. Deixava a pulsão sexual falar mais alto que a repressão da igreja e familiares. Do ponto de vista religioso, na quarta-feira de cinzas, as moças que haviam transgredido iam na igreja receber o perdão na forma de cinzas, que o padre lhes passava na testa, como forma de penitência. Nove meses depois, as maternidades acusavam os efeitos da "folia". 

Quando era criança, o Carnaval era ficar na rua, esperando passar um carro. Morava em São Paulo e, nos anos 1960, não havia tantos carros assim passando nas ruas. Ainda mais onde eu morava, na periferia, que era a Vila Clementino (só tinha uma linha de ônibus que ligava o bairro ao centro, era o 47). Vinha um carro, a molecada pegava serpentina e atirava por sobre o veículo. Era legal quando a serpentina enroscava na antena e o carro saía com o papel tremulando. 

Depois, ficou mais violento: a gente atirava água nos carros. Dava banho em quem tinha o desplante de passar pela nossa rua. Vez ou outra, o motorista parava e descia correndo atrás da gente. A molecada saía em disparada. Cada um para um lado, dando risada. Para falar a verdade, era mais legal, quando o carro parava e o motorista, muito doido da vida, corria atrás da gente.

Com o tempo, os motoristas e passageiros ficaram mais espertos. A gente chegava com a seringa cheia de água e eles disparavam o extintor de incêndio. Tinha virado um conflito entre motoristas e moleques. A garotada foi além da água. Alguém inventou o "sangue de boi", uma mistura de água com anilina, corante e sabão. A vítima era atingida no peito, sujando a coitada da camisa branca. Parecia sangue. 

Não sei por que fui levado pelos familiares para "pular o Carnaval". Era um salão de um clube (provavelmente, o Tênis Clube, na Aclimação). Devia ter uns dez, 12 anos. Começou o barulho. Ensurdecedor. Pessoas, que estavam paradas conversando, começaram a cantar e saíram dando voltas no salão. O lugar era um retângulo. Então, você via o folião passar e depois de uns cinco minutos aparecia ele novamente. Passavam cinco minutos e lá vinha o infeliz outra vez. Assim, sem parar. Exaustivo.

Me deram um lança-perfume para atirar nas pessoas. Minha primeira vítima foi um menino. Acertei os dois olhos dele. O infeliz ficou irritado. Ele tinha uma espécie de bolsa a tiracolo e foi puxando lá de dentro uma arma semelhante à minha. Depois de muito sacrifício, conseguiu tirar o lança-perfume e me acertou. Olho por olho... Fiquei parado, esperando o ataque, porque achei que fazia parte da festa. Pra dizer a verdade: era sem graça. 

Não tinha a menor vontade de sair cantando aquelas músicas. Odiava o barulho, aquele pessoal feio, suando. Minha vontade era sair correndo dali. Até que o parente, que havia me levado, desistiu e me reconduziu à salvação. Na rua, o som da banda continuava dentro dos meus ouvidos. O inferno sobre a terra é a música que você não quer ouvir e é obrigado a escutar.

Como repórter, cobri ensaios de escola de samba e desfiles. Esse mundo é desconhecido da maior parte das pessoas. Tem gente que ganha a vida, produzindo carros alegóricos, fantasias e sei mais o quê. A rainha da bateria, o compositor, o mestre-sala, o puxador do samba, todo esse pessoal têm status elevado no meio, embora os leigos não tenham a menor ideia de sua existência e importância.

Como leigo que sou, não consigo diferenciar um samba-enredo do outro. Para os meus ouvidos sofridos, todos parecem muito iguais. Talvez sejam mesmo iguais. 

Outro mistério profundo é o carro-alegórico. Eles preparam durante um ano o tal do carro-alegórico. Um ano! Trezentos e sessenta e cinco dias (ou seis, nos anos bissextos). E mesmo assim na hora do maldito carro-alegórico entrar na avenida, ele quebra. Como assim? Vocês tiveram um ano para fazer um carro-alegórico, para ele só fazer aquilo: entrar na "passarela do samba", percorrer os 500 metros (mais ou menos) e só. Mesmo assim, ele quebra. Às vezes, o carro-alegórico, talvez enlouquecido pela barulhada, decide fugir dali por conta própria e, em sua fuga, passa por cima de um ou outro folião.

Hoje, o escritor Marcelo Rubens Paiva, autor de "Ainda estou aqui", foi alvo de uma agressão, enquanto participava de um bloco em São Paulo. Um imbecil atirou uma mochila bem pesada em Marcelo, que é cadeirante. Na Vila Madalena, quem não gosta de Carnaval, precisou mudar de bairro, por causa dos blocos e da bagunça generalizada. Os foliões urinam na rua, espalham lixo, promovem algazarra, consomem drogas e bebidas alcoólicas. O pobre morador do apartamento não consegue sair de casa; ou, se tiver feito a bobagem de ir ao mercado, não tem mais como voltar. De manhã, as ruas da Vila Madalena fedem. 

Carnaval em São Paulo acontece no Sambródomo, construído pela então prefeita Luiza Erundina; e nas ruas, pelos blocos, que atrapalham a circulação dos carros. Se você tiver a sorte de sua rua não ser usada por blocos, nem saberá que tem Carnaval. 

No ano passado, fiquei preso no centro, por causa de um bloco. Quando passou, eram umas dez pessoas, pobremente fantasiadas e batendo um bumbo. O Sambródomo fica vazio o ano inteiro. São 100 mil metros quadrados de área construída e inteiramente vazio o ano inteiro. É utilizado em eventos raros e, brevemente, durante os desfiles. É o caso clássico de elefante branco. 

Ao ler os portais de notícias, as manchetes se transformam em gigantescos pontos de interrogação: "Milhares vão as ruas, com Suvaco e Boitatá". "Foliões usam fantasia de Gracyanne Barbosa", "Modo surto: Sonza usa transparência"... 

Deus meu, o que será que essa gente está falando?          

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