A equipe de reportagem que vai para a rua é formada pelo repórter, por um repórter-fotográfico e pelo motorista, que o "reportariado" chama de "motora". O "motora" é peça essencial. Cabe a ele encontrar o melhor caminho, chegar mais rápido e retornar mais rápido ainda a tempo do fechamento.
O repórter-fotográfico costuma se sentar no banco da frente, ao lado do "motora". Por quê? Se acontecer algo que garanta a primeira página do jornal, o repórter-fotográfico estará atento e vai pular do carro e fará a foto consagradora.
Na realidade, é só o repórter-fotográfico entrar no carro, se sentar para começar a cochilar. Alguns até roncam. Batem a cabeça na janela do carro. Babam. Mas ai de você, repórter, se quiser se sentar na frente. Eles ficam muito bravos.
"O fotógrafo senta na frente. Se acontecer alguma coisa, a gente faz a foto no ato", eles costumam justificar. Mas a maioria dorme. Acredite.
Às vezes, o "motora" pede ajuda para a reportagem. Quando trabalhava no "Jornal da Tarde", o carro quebrou. Não pegava de jeito nenhum. O "motora" virava a chave e a ignição fazia aquele rê-rê-rê-rê e o motor não funcionava. O "motora", usando de sua experiência, virou-se para mim e falou:
"Sai fora e empurra o carro".
Empurrei o desgraçado até ele tossir e dar um estouro no escapamento e o motor voltar a funcionar.
Há casos excepcionais, em que o "motora" manda a equipe esvaziar o carro. Estávamos no "corredor polonês", que era uma área de 35km² entre Santo André, São Bernardo, Mauá e Ribeirão Pires, onde anos atrás ninguém sabia exatamente onde começava um município e terminava outro. As ocupações desordenadas eram constantes. A mata derrubada. O esgoto lançado a céu aberto. Enfim, o de sempre. As ruas eram precárias e havia subidas íngremes. Tão íngremes que o carro do "motora" parou na metade. Não sei se eu estava fora do peso, se o repórter-fotográfico havia exagerado na feijoada, o fato é que o carro não conseguia subir. Também não sei se o "motora" estava de sacanagem com a gente.
"Não sobe mais", disse o "motora", um senhor dos seus 60 anos, cabelo branco, que usava o seu carro - um veículo popular 1.0 - para transportar a gente pra cima e pra baixo.
"Como não sobe?", o fotógrafo protestou. "Tem que subir."
"Não sobe. Está muito pesado. É um carro 1.0. Não consegue subir."
Descemos - eu e o fotógrafo - enquanto o "motora" arrancava e foi nos esperar lá no alto, um quilômetro adiante. Foi bem gostoso subir pela rua de terra, por volta de 15h, sol a pino, queimando o cérebro da gente.
Às vezes, o repórter erra de carro e de "motora". Eram 18h35. Saí "voando" da Câmara de São Caetano. Tinha de chegar rapidamente ao jornal e escrever a matéria, que seria a capa da edição. O carro que estava me esperando era cinza e me aguardava em uma rua lateral, ao lado de uma banca de jornal. Fui andando depressa, em direção ao carro. Avistei o veículo, parado exatamente no mesmo local. Abri a porta. Sentei e falei para o "motora":
"Vam'bora, vam'bora. Rápido. Preciso chegar no jornal".
Um rapaz virou-se, muito assustado, e me disse, quase chorando:
"Vamos embora pra onde, meu deus?"
Era o carro errado e o "motora" errado.
Em 1984, o uso do cinto de segurança era visto com desconfiança pelos "motoras". A obrigatoriedade do uso do cinto só viria em 1997, juntamente com o Código de Trânsito Brasileiro. Na década de 1980, quem quisesse pôr o cinto de segurança teria um trabalho danado. O cinto ficava amarrado e sujo, debaixo do banco. Era cheio de nós e poeira.
Quando comecei a trabalhar de repórter no "Diário Popular", toda vez que entrava no carro da reportagem (na época, a frota era própria do jornal), procurava o cinto. Sujava as mãos, a roupa, mas nunca deixava de andar sem o cinto de segurança (tinha estado na Europa antes e lá todo mundo usava cinto). Os "motoras" não se conformavam. Diziam:
"Você não confia em mim?"
Um belo dia, na verdade, era uma tarde chuvosa e fria de sexta-feira, entrei no carro de reportagem, uma Brasília, com dois anos de uso. Procurei o cinto lá embaixo. Afivelei e aconselhei o "motora":
"Põe o cinto, Vanderlei. Não anda sem cinto".
"Isso é coisa de viado", ele disse. Era um rapaz moreno, com a barba por fazer, com seus 30 anos.
Saímos da rua Major Quedinho, em direção a rua Haddock Lobo. Íamos em uma casa noturna, muito famosa na época, para uma entrevista com uma celebridade.
Chegamos na rua Haddock Lobo e a chuva apertou. Três quarteirões antes do nosso destino, o sinal fechou na travessa com a Alameda Itu. Paramos, aguardando o verde. Um maluco veio a toda velocidade e entrou na traseira da Brasília. Como o banco era menor e não tinha proteção no pescoço, minha cabeça foi jogada com força para trás, dando aquele estalo perigoso no pescoço. O carro infrator deu ré. Saiu detrás da nossa Brasília e saiu acelerando rua Haddock Lobo abaixo.
O Vanderlei, indignado, engatou a primeira e foi atrás do maluco. Pedaços da traseira da Brasília e da frente do carro do maluco despencavam pela rua. Duas travessas depois, o sinal fechou novamente para nós. O maluco passou no vermelho, mas o Vanderlei, em alta velocidade, não quis saber de frear. Foi em frente. Uma kombi atravessou a nossa frente. O Vanderlei desviou da kombi e saiu derrapando, batendo nos carros estacionados nos dois lados da rua. Era uma bola de boliche desgovernada, até perder o controle e entrar em um poste de cimento. Vi as ferragens se amontoando, se envergando, vindo em direção ao vidro dianteiro. Até que tudo se imobilizou.
O caríssimo Vanderlei - sem cinto de segurança - tinha se chocado contra o painel da Brasília e destruído o joelho em um rádio automotivo, que, na época, servia para a chefia de reportagem se comunicar com o repórter (celulares não tinham sido inventados). Desafivelei o cinto de segurança e saí da Brasília, em destroços. Era a famosa PT, "perca total", como diziam os "motoras", usando o subjuntivo ao invés do substantivo.
Consegui tirar o Vanderlei da Brasília, com a ajuda de populares. Minha roupa ficou toda ensanguentada. Liguei para o jornal e pedi um carro para me resgatar. O "motora" foi levado para o pronto-socorro mais próximo. Trêmulo, sujo, as roupas manchadas de sangue, com uma dor insuportável no pescoço, cheguei na Redação e levei maior bronca do chefe, o "Pitico", por ter "abandonado a pauta".
O "motora" é muito importante, durante as "perseguições". Tínhamos recebido a informação de que um vereador usava o carro oficial para ir até a Baixada Santista nos finais de semana. Como os veículos não tinham qualquer evidência de que se tratavam de carros oficiais, os nobres edis faziam a festa.
Cheguei na casa do vereador no final da tarde de uma sexta-feira. Paramos o carro mais acima e ficamos de "campana". O vereador e a esposa saíram de casa. Abriram o porta-malas do carro oficial, um Corsa verde claro, e começaram a enchê-lo de malas e sacolas.
Eles fecharam a porta da casa. Entraram no carro e saíram. Falei para o seu José, o "motora":
"Seu José, vamos atrás deles. Vamos flagrá-los chegando em Santos."
O seu José, que era um senhor tranquilo e extremamente paciente, ponta firme, concordou.
Iniciamos a 'perseguição". O carro oficial foi em direção a uma avenida movimentada que fazia a ligação com a via Anchieta. No entroncamento com a estrada, era carro, ônibus, caminhão, moto, todo mundo tentando entrar ao mesmo tempo na Anchieta.
Meu celular tocou (nessa época, já tinham inventado celular; era um "tijolo"). Atendi. Alguém no jornal me pediu um retorno. Falei o que estava acontecendo e que provavelmente eu iria até Santos. O pessoa na Redação ficou animado.
Já na via Anchieta, desligo o celular e olho para a frente, tentando localizar o carro oficial. No lusco-fusco do final do dia, achei que estávamos atrás de um Corsa vermelho claro. Apertei os olhos. Tirei os óculos. Limpei as lentes e voltei a tentar localizar o "nosso" Corsa.
"Seu José", eu disse, "parece que estamos atrás de um Corsa vermelho. O nosso Corsa não era verde?"
"Era verde?", ele perguntou.
A minha manchete tinha ido para o vinagre, graças ao seu José, que, vim a descobrir, era daltônico.
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