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A postagem foi acusada de homofóbica |
A ex-miss Brasil Renata Fan é a apresentadora de "Jogo Aberto", um programa de esportes, transmitido, na hora do almoço, diariamente, pela TV Bandeirantes. Começa com a âncora falando sobre os clubes de futebol, ao lado de um comentarista. Antes, era o ex-jogador Denílson, apelidado de "Denílson Show". Atualmente, ela faz dobradinha com o também ex-jogador o ex-goleiro do Corinthinas Ronaldo Giovanelli. Depois desse "esquenta", tem início o debate, com vários comentaristas falando ao mesmo tempo, cada um tentando gritar mais alto que o outro. O telespectador não consegue entender direito os posicionamentos, em meio aos gritos. É uma barafunda. A apresentadora dá muita risada e deixa o caos tomar conta do pedaço. Na virada do ano, "Denílson Show" trocou a Band pela TV Globo. Vai ganhar 300 mil reais por mês, segundo li no noticiário, "mais do que o dobro do que ele ganhava na Bandeirantes".
Esta semana Renata Fan postou uma arte, que lhe foi enviada supostamente por um fã. A postagem mostra a apresentadora ao lado de Denílson, na época da Band; e agora, na Globo o mesmo Denílson, com leiaute diferente (de barba e bigode) ao lado da cantora Pabllo Vittar (assim mesmo com dois eles e dois tês no nome). Para bom entendedor, Denílson teria trocado a mulher e ex-miss Renata por uma travesti.
Renata achou engraçada a postagem: "Chorei de rir". Pabllo Vittar acusou a apresentadora de ser "homofóbica". A também cantora e youtuber Leo Áquila cobrou satisfação da apresentadora da Band: "E aí, linda, vamos explicar isso?".
No Brasil, homofobia é crime. O culpado não tem direito à fiança, nem há prescrição da ofensa. O termo foi cunhado por um psicólogo judeu e norte-americano George Weinberg (1935-2017), em 1971, aglutinando os termo "homo" e "phobos" (medo).
Quando a gente lê que alguém foi espancado apenas por ser homossexual, isso significa homofobia. Quando um parente, "amigo" ou "colega de trabalho", usa palavras agressivas ou tenta menosprezar o outro, por causa de sua orientação sexual, isso é homofobia. Também, nos almoços de família, quando o tio do pavê faz piada sobre o "viado", a "lésbica", a "trava", é também caracterizado de homofobia. Também é homofobia quando alguém deixa de contratar um funcionário, por ele ser LGBT.
No caso da apresentadora da Band, houve homofobia, porque Denílson Show não vai apresentar o programa ao lado de Pabllo Vittar. Denílson participará de produções do SporTV e também do Globo Esporte, na TV aberta. Ou seja, foi um "meme", uma "brincadeirinha", indicando que Denílson "trocou" a mulher "de verdade" pela trans.
Na prática, Denílson trocou o programa apresentado por Renata Fan por um contrato de seis cifras com a Globo. Renata foi passada para trás e se "vingou" publicando aquela postagem que visava ridicularizar o seu parceiro de programa, que a deixou a ver navios. Denílson era figura de proa no "Jogo Aberto" e faz falta.
A homofobia está em todo lugar. Não apenas no "meme" "engraçadinho" de Renata Fan. Ele perpassa a sociedade brasileira. É capilar. Reportagem do Uol, assinada pela repórter Victoria Bechara, informa que o vereador Lucas Pavanato, do partido de Jair Bolsonaro (PL), nem bem esquentou a cadeira na Câmara Municipal e já mandou ver em três projetos contra pessoas trans: 1) impede que pessoas trans participem de atividades esportivas em categorias que sejam diferentes de seu sexo de nascimento; 2) proíbe hospitais e clínicas de realizar tratamentos de redesignação sexual em menores de 18 anos; 3) impede que mulheres trans utilizem banheiros femininos (ou homens trans, os banheiros masculinos). Essa questão dos banheiros era sua "bandeira de campanha", informa a reportagem. Pavanato tem 26 anos e 161 mil votos que o colocaram na Câmara.
As pessoas trans parecem ser fantasmas que assombram o vereador "mais votado de São Paulo". A cidade tem 90 mil pessoas vivendo nas ruas. Outras 3 milhões e 600 mil vivem em agrupamentos precários, em favelas, à beira de córregos imundos. Mas toda essa gente em situação de miséria está fora da mira do nobre edil. Quem tira o sono dele são as pessoas trans.
O vereador não é uma voz solitária, evidentemente. Ele representa, com objetivos eleitorais, uma parcela significativa da população brasileira que odeia pessoas trans. O Brasil, como informam os números, é líder mundial na morte violenta de pessoas trans.
A série "Transparent", de 2014, tem uma cena que ilustra o drama da pessoa trans na utilização de banheiro público. A personagem Maura Pfeffer (vivida pelo ator Jeffrey Tambor) é uma crossdresser. Ela está em um shopping e entra no banheiro feminino. Uma mulher se desespera e começa a gritar. Situação semelhante ocorreu, em 2012, com a cartunista Laerte, que estava em um banheiro feminino de uma pizzaria e foi repreendida pelo dono do local. Sua presença no banheiro causaria "incômodo" às mulheres. Na época, os veículos de comunicação o chamavam de "o cartunista que se veste de mulher".
O ideal de toda pessoa trans é "passar". Isso significa que a mulher trans, por exemplo, gostaria de ser notada apenas como mulher e não como "um homem que se veste de mulher". A pessoa trans sofre, porque o mundo externo a enxerga de forma diferente daquilo que ela sente dentro de si. Ela se olha no espelho e vê uma mulher, enquanto os demais vão enxergá-la, depreciativamente, como um homem "fantasiado de mulher".
Certa ocasião, estava no supermercado Master, que funciona dentro do Shopping Frei Caneca, escolhendo frutas. O supermercado tem uma grande variedade de frutas de época. Próximo de mim, estava uma travesti negra, seios pronunciados em decote, cabelo liso caído até as costas, minissaia e sandália de salto alto. Dois rapazes que repunham frutas nas prateleiras começaram a rir da travesti. Eles olhavam para ela e riam, balançando a cabeça, em sinal de desaprovação. A travesti chamou a atenção deles em altos brados. Ameaçou chamar a polícia e a gerência do mercado. Essa cena, isolada, acontece à exaustão no Brasil. A pessoa trans é vista como uma ameaça, alguém que vai perturbar a tranquilidade da Nação, por isso precisa se alvo de infâmia.
Entre vários filmes e séries que abordam o tema, "Crônicas de São Francisco", estrelado por Olympia Dukakis, Laura Linney e Elliot Page, conta a história de uma mulher trans que tenta passar por "mulher de verdade" na conservadora São Francisco dos anos 1950 e 1960. Ela chega a se relacionar com um policial e é até recebida na casa da família do namorado como "mulher". Depois, ela é presa em uma batida policial, juntamente com outras travestis, e, ao sair da cadeia, toma uma medida drástica: se apropria de um fundo de dinheiro e o utiliza para a cirurgia de redesignação sexual e a compra de uma propriedade, que viria se transformar em uma espécie de centro de acolhimento de LGBTs. "Crônicas de São Francisco" baseia-se, em nove livros, do escritor Armistead Maupin.
A homofobia é crime no Brasil, desde 2019. A lei reprime um desejo substantivo da sociedade brasileira de eliminar a pessoa trans da paisagem. Pode ser um problema de educação, de atavismo religioso. O Brasil tem 600 mil igrejas e apenas 7 mil bibliotecas e livrarias. É muita gente semialfabetizada, "bitolada", como se dizia nos anos 1970, lendo apenas um único livro.