domingo, 16 de abril de 2023

Filme sueco coloca privilégios em debate


"Triângulo da tristeza" é uma produção sueca

O ser humano adora privilégios. Desde criança, o privilegiado sempre me incomodou. É o carro da madame com chofer. É a melhor mesa do restaurante para o "comendador". É a barraca situada no melhor local da praia, para aquele pessoal do hotel...

Os privilegiados adoram usufruir dessas regalias. Uma vez, quando fazia um curso de filosofia oriental na Nova Acrópole, fomos visitar um local de retiro no interior de São Paulo. O responsável pelo "ashram" era um tipo entojado, metido a guru. Havia no lugar uma sala de meditação e o guru nos levou até lá, mas apenas o dono da Nova Acrópole teve a entrada permitida. Os demais - alunos e participantes da visita - foram barrados.

Só para você ver como tem privilegiado em tudo quanto é buraco, até mesmo em um "ashram" caipira. O filme "Triângulo da tristeza", que, infelizmente, só pude assistir na semana passada pela Amazon Prime, é um discurso contundente sobre os privilégios. 

Diferente da linguagem de roteiro característica da indústria americana, que sempre arruma um vilão na história e um "mocinho" ou "mocinha", o filme sueco, dirigido por Ruben Östland, conquistou os jurados de Cannes e levou a Palma de Ouro, sem recorrer a esses recursos mais do que batidos.

Deveria ter levado o Oscar também, mas a Academia de Hollywood preferiu entregar a estatueta aos alemães que fizeram "Nada de novo no front". Por sinal, se você leu o livro de Erich Maria Remarque, vai achar que o pessoal que fez o filme não leu o livro. A obra de Remarque é absolutamente pacifista. Os melhores momentos do livro é quando os soldados estão longe do campo de batalha. Em uma das cenas, dois amigos combatentes refugiam-se em uma agrícola abandonada. Matam um pato e o cozinham lentamente, aproveitando cada segundo desse momento em que não precisam dar tiros em alguém. Um amigo oferece o melhor pedaço para o outro e eles se divertem, felizes, podendo matar a fome e se alimentar com algo que não seja a ração insossa oferecida pelo exército. Remarque era alemão e combateu na primeira guerra mundial. Diante da ascensão de Hitler e dos nazistas, fugiu para os Estados Unidos, por entender que viria mais um conflito gigantesco na Europa. 

O termo "Triângulo da tristeza" refere-se àquele espaço entre a sobrancelha e o nariz. O filme começa com uma seleção de rapazes para um desfile. E um dos selecionadores dos modelos não escolhe um deles, por causa do acentuado triângulo da tristeza. 

Esse modelo, que não foi escolhido, e a namorada, que é uma "influencer", ganham passagens para uma viagem de navio, por locais paradisíacos. A embarcação é uma réplica da estrutura social: tem os privilegiados, que comem do bom e do melhor; tem os funcionários (classe média?) que puxam o saco dos ricaços; os tripulantes e os trabalhadores do "chão de fábrica", a quem cabe limpar o chão do vômito e da merda.

Em um dos momentos mais hilários do filme, o jantar é interrompido por uma tempestade. Os bilionários começam a vomitar por tudo quando é canto; as privadas entopem e um rio de merda escorre pelos corredores e quartos da embarcação. Uma das ricaças perde os sentidos, pondo o jantar para fora, sofrendo com a diarreia, enquanto é arrastada pelo rio de cocô.

Alheios aos que estão pondo as tripas pra fora, o capitão do navio, interpretado pelo ótimo Woody Harrelson, e um russo, que enriqueceu vendendo fertilizante ("eu vendo merda", ele proclama aos quatro ventos), travam um debate ideológico divertido. O russo, que foi educado na antiga União Soviética, odeia marxistas, leninistas trotskistas, comunistas etc. E o capitão do navio, que é americano, é comunista convicto. O russo cita frases do mundo capitalista, nem sempre modelo de inteligência, como Ronald Reagan. E o capitão elenca bordões comunas. Nem o capitão, nem o russo parecem sofrer com o balanço do navio. Se você pensar bem, é uma metáfora inteligente.

Acontece um ataque de piratas incompetentes, o navio vai a pique e meia dúzia de sobreviventes conseguem chegar a uma ilha. Lá, os papéis vão se inverter. A responsável pela faxina sabe pescar, sabe acender uma fogueira e chegou à ilha a bordo de um escaler, do qual não abre mão para uso exclusivo.

Invertem-se os papéis. A privilegiada é agora a ex-faxineira, que dorme bem protegida em seu escaler e escolhe para uso sexual o modelo do triângulo da tristeza, que ela chama de "bonitinho". Uma tripulante, que era líder dos funcionários puxa-sacos, passa a servir a ex-faxineira e se coloca à disposição para o que der e vier.

Na Suécia, os lixeiros costumam passar suas férias em viagens pela Europa. Não é que os lixeiros sejam privilegiados e ganhem mais do que outros trabalhadores. É que naquele país a distância entre os salários é mínima.

No Brasil, com seus 30 milhões de miseráveis que mal conseguem completar as três refeições, o que não falta são privilegiados. Eles se escondem em mansões de milhões de dólares, cercadas por muros medievais, concertina a dar com pau e câmeras de vigilância. Andam a bordo de carros blindados e nunca - nunca mesmo - "usufruíram" do deteriorado e fedorento transporte público. 

Nesse País, que remunera mal seus trabalhadores e aposentados, não faltam estamentos de privilegiados de primeiro escalão. São representantes do judiciário, do executivo, do legislativo, das forças armadas sempre ganhando mais do que o povo poderia lhes pagar. Mas eles não abrem mão de seus privilégios. Eles vão morrer agarrados às benesses, aos seus tronos dourados, vomitando e cagando e - para sorte deles e nossa inveja - o que vão expelir será a soberba refeição à base de medalhões de lagosta ao molho de manteiga, bacalhau à Gomes de Sá, arroz de pato, tudo regado, é claro, a vinho tinto Merlot da melhor safra. Bom demais morrer assim.

     
  

    

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