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"Triângulo da tristeza" é uma produção sueca |
Os privilegiados adoram usufruir dessas regalias. Uma vez, quando fazia um curso de filosofia oriental na Nova Acrópole, fomos visitar um local de retiro no interior de São Paulo. O responsável pelo "ashram" era um tipo entojado, metido a guru. Havia no lugar uma sala de meditação e o guru nos levou até lá, mas apenas o dono da Nova Acrópole teve a entrada permitida. Os demais - alunos e participantes da visita - foram barrados.
Só para você ver como tem privilegiado em tudo quanto é buraco, até mesmo em um "ashram" caipira. O filme "Triângulo da tristeza", que, infelizmente, só pude assistir na semana passada pela Amazon Prime, é um discurso contundente sobre os privilégios.
Diferente da linguagem de roteiro característica da indústria americana, que sempre arruma um vilão na história e um "mocinho" ou "mocinha", o filme sueco, dirigido por Ruben Östland, conquistou os jurados de Cannes e levou a Palma de Ouro, sem recorrer a esses recursos mais do que batidos.
Deveria ter levado o Oscar também, mas a Academia de Hollywood preferiu entregar a estatueta aos alemães que fizeram "Nada de novo no front". Por sinal, se você leu o livro de Erich Maria Remarque, vai achar que o pessoal que fez o filme não leu o livro. A obra de Remarque é absolutamente pacifista. Os melhores momentos do livro é quando os soldados estão longe do campo de batalha. Em uma das cenas, dois amigos combatentes refugiam-se em uma agrícola abandonada. Matam um pato e o cozinham lentamente, aproveitando cada segundo desse momento em que não precisam dar tiros em alguém. Um amigo oferece o melhor pedaço para o outro e eles se divertem, felizes, podendo matar a fome e se alimentar com algo que não seja a ração insossa oferecida pelo exército. Remarque era alemão e combateu na primeira guerra mundial. Diante da ascensão de Hitler e dos nazistas, fugiu para os Estados Unidos, por entender que viria mais um conflito gigantesco na Europa.
O termo "Triângulo da tristeza" refere-se àquele espaço entre a sobrancelha e o nariz. O filme começa com uma seleção de rapazes para um desfile. E um dos selecionadores dos modelos não escolhe um deles, por causa do acentuado triângulo da tristeza.
Esse modelo, que não foi escolhido, e a namorada, que é uma "influencer", ganham passagens para uma viagem de navio, por locais paradisíacos. A embarcação é uma réplica da estrutura social: tem os privilegiados, que comem do bom e do melhor; tem os funcionários (classe média?) que puxam o saco dos ricaços; os tripulantes e os trabalhadores do "chão de fábrica", a quem cabe limpar o chão do vômito e da merda.
Em um dos momentos mais hilários do filme, o jantar é interrompido por uma tempestade. Os bilionários começam a vomitar por tudo quando é canto; as privadas entopem e um rio de merda escorre pelos corredores e quartos da embarcação. Uma das ricaças perde os sentidos, pondo o jantar para fora, sofrendo com a diarreia, enquanto é arrastada pelo rio de cocô.
Alheios aos que estão pondo as tripas pra fora, o capitão do navio, interpretado pelo ótimo Woody Harrelson, e um russo, que enriqueceu vendendo fertilizante ("eu vendo merda", ele proclama aos quatro ventos), travam um debate ideológico divertido. O russo, que foi educado na antiga União Soviética, odeia marxistas, leninistas trotskistas, comunistas etc. E o capitão do navio, que é americano, é comunista convicto. O russo cita frases do mundo capitalista, nem sempre modelo de inteligência, como Ronald Reagan. E o capitão elenca bordões comunas. Nem o capitão, nem o russo parecem sofrer com o balanço do navio. Se você pensar bem, é uma metáfora inteligente.
Acontece um ataque de piratas incompetentes, o navio vai a pique e meia dúzia de sobreviventes conseguem chegar a uma ilha. Lá, os papéis vão se inverter. A responsável pela faxina sabe pescar, sabe acender uma fogueira e chegou à ilha a bordo de um escaler, do qual não abre mão para uso exclusivo.
Invertem-se os papéis. A privilegiada é agora a ex-faxineira, que dorme bem protegida em seu escaler e escolhe para uso sexual o modelo do triângulo da tristeza, que ela chama de "bonitinho". Uma tripulante, que era líder dos funcionários puxa-sacos, passa a servir a ex-faxineira e se coloca à disposição para o que der e vier.
Na Suécia, os lixeiros costumam passar suas férias em viagens pela Europa. Não é que os lixeiros sejam privilegiados e ganhem mais do que outros trabalhadores. É que naquele país a distância entre os salários é mínima.
No Brasil, com seus 30 milhões de miseráveis que mal conseguem completar as três refeições, o que não falta são privilegiados. Eles se escondem em mansões de milhões de dólares, cercadas por muros medievais, concertina a dar com pau e câmeras de vigilância. Andam a bordo de carros blindados e nunca - nunca mesmo - "usufruíram" do deteriorado e fedorento transporte público.
Nesse País, que remunera mal seus trabalhadores e aposentados, não faltam estamentos de privilegiados de primeiro escalão. São representantes do judiciário, do executivo, do legislativo, das forças armadas sempre ganhando mais do que o povo poderia lhes pagar. Mas eles não abrem mão de seus privilégios. Eles vão morrer agarrados às benesses, aos seus tronos dourados, vomitando e cagando e - para sorte deles e nossa inveja - o que vão expelir será a soberba refeição à base de medalhões de lagosta ao molho de manteiga, bacalhau à Gomes de Sá, arroz de pato, tudo regado, é claro, a vinho tinto Merlot da melhor safra. Bom demais morrer assim.
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